NORMAL : OU QUANDO A MALDADE É ATO COTIDIANO


FOTOS/PEDRO MURAD

"Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?”(Hannah Arendt).

Seria o mal parte intrínseca da condição humana ao contrário do estado bruto dos animais que só matam pela necessidade da auto sobrevivência e não pela ausência da faculdade do pensamento? Ou seria um mero resultado do desajuste social?

O que direciona esta compulsão por violentos e incontroláveis surtos criminais sequenciais em homens sob uma aparência de absoluta normalidade ou a verdade estaria, quem sabe, no verso de Caetano Veloso “de perto ninguém é normal”?

 o contrassenso de uma consentida normalidade para um cotidiano de caótica perversidade. Preenchido pela insanidade das intolerâncias em todas as suas formas. Da gratuidade de atos assassinos do âmbito familiar a um macrocosmo da violência, na insensata desigualdade de condições para o livre exercício do oficio da vida.

Este encaminhar à beira do caos em compasso pré-apocalíptico vem sendo abordado com perceptível frequência pela dramaturgia contemporânea. E outra vez surge como um referencial, na temática da peça Normal, do dramaturgo escocês Anthony Neilson (em cartaz há pouco com O Censor), sob direção de Luis Furlanetto e um elenco tríplice integrado por Ricardo Soares, Fifo Benicasa e Nara Monteiro.

Tendo como tema o caso verídico do serial killer alemão Peter Kürten (Ricardo Soares), acusado pela brutalidade de seus atos em nove homicídios entre crianças e adultos, meninas e mulheres em sua maioria, crueldade com animais, além de incêndios criminosos na segunda década do século XX.

E sobre as instâncias de defesa pelo advogado Justus Wehner (Fifo Benicasa), até sua condenação à pena capital em 1931, com episódicas intervenções do terceiro personagem  Frau Kürten (Nara Monteiro).

Tendo funcional e criativo aproveitamento de minimalista espaço cênico (José Dias), com um design luminar (Rogerio Medeiros) acentuando os aspectos in tenebris da narrativa quase como numa lembrança dos efeitos, entre luz e sombras, do cinema expressionista alemão dos anos 20.

Completando-se nos sutis traços de época dos figurinos (Patrícia Tenius) que servem bem à climatização soturna da trama, sob sublinhados acordes incidentais da trilha autoral (João Schmid), extensiva às marcações da mascaração e do gestualismo (Stefano Giglietta).

Na convicta contextualização sensorial de Ricardo Soares como um psicopata acreditando ser normal tudo que fez sem lugar para qualquer remorso. Como o dimensionamento psicológico presencial em Fifo Benicasa, na missão defensiva pelos crimes de um louco, mas descobrindo-se, também, portador de visceral confusão mental.

Enquanto por seus próprios papeis femininos de subjacente interveniência no conflito condutor dos dois personagens masculinos, Nara Monteiro tem menor prevalência na progressão dramática da trama.

Com detalhado realce nas súbitas passagem dos estados emocionais, de irônico tratamento subjetivista, nestas transmutações psicofísicas da normalidade entre os personagens, sob um competente comando diretorial de Luis Furlanetto.

Em espetáculo que, por sua assumida mas funcional simplicidade como saída de crise e carências, é capaz, mesmo assim, de dar seu oportuno recado para dias inquietos e de pesadelo.

Onde Normal é a insanidade ser confundida com a inocência, o porte de armas ser a solução para a criminalidade e o ato de matar se equiparar ao simples lance de dados do prazer, num destes jogos virtuais de vida e de morte.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


NORMAL está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim/Espaço Rogério Cardoso/Ipanema, terças e quartas, às 19h. 70 minutos. Até 26 de junho.

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