ZECA PAGODINHO-UMA HISTÓRIA DE AMOR AO SAMBA: VENHAM TODOS VADIAR


FOTOS/RENATO MANGOLIN

Quando se esperava mais um musical biográfico onde as canções serviriam de pretexto, “pra variar”, impulsionando  a progressão dramática , no formato alterativo de fatos entremeados por acordes vocais e instrumentais, Gustavo Gasparani surpreende com seu Zeca Pagodinho-Uma História de Amor ao Samba.

Desta vez, fazendo uso de seu vasto dossiê de passagem artística e existencial pelos terreiros, quintais  e passarelas, para mostrar-se muito além do lídimo conhecedor/lutador , de vida e de arte, pela nobre  causa sambista , como o fez em SamBra após seus muitos carnavais.

Agora, na convergência quadrupla como autor/ator/cantor/diretor, nesta outra incursão nas sagas da cultura popular carioca, assumindo uma singular identificação psicofísica com o personagem titular.

Precedido pela reveladora representação de Peter Brandão como Jessé o moleque arteiro que induz à personificação adulta do Zeca Pagodinho, ora em solilóquios ora em paralelos cênicos.

E que vai se desincumbindo  em sugestiva lembrança corpórea/afetiva , do biografado criança  às aproximativas marcações assumidas, outrossim, por seu correspondente na fase adulta(Gustavo Gasparani). Num metafórico significado pirandelliano com postural verismo – eu sou eu, tu és tu, nós não somos nós, somos ele.

E Ele, o Zeca,  também participa deste lúdico jogo de teatralidade ao surgir, via projeções, em depoimentos dialetais com sua dúplice representatividade especular. Incitando, com interação irônica e cativante, à adesiva cumplicidade palco/plateia.

A concepção cenográfica (Gringo Cardia) , com sua estética tropicalista de aquarelado referencial pop/primitivista(em seus painéis de elementos gráficos e de azulejaria), estende-se ao seu rompante figurino(Marcelo Olinto) de tons carnavalescos/religiosos. 

Que, no colorido compasso coreográfico  de Renato Vieira, faz lembrar o teatro de revista , gênero assumido pela montagem, ora com brilho ora com pequenos entraves na linha narrativa que, vez por outra, incorre em ligeiras obviedades na explanação temática.

O desenho de luz ( Paulo Cesar Medeiros) psicodeliza esquentando  a imaginária suburbana com seus “Clóvis”, bate-bolas, sereias e São Jorges. Ou na “santificação” humorada da dupla Cosme e Damião, pela empática performance de Édio Nunes e Bruno Quixotte.

Anna Velloso, Beatriz Rabello, Douglas Vergueiro, Flávia Santana, Lu Vieira, Milton Filho, Psé Diminuta, Ricardo Souzedo e Wladimir Pinheiro completam numa funcionalidade quase coral , preenchendo com vozes, corporeidade e muito swing,  esta teatralidade de espontâneo carisma propugnado por seu criador mor (Gustavo Gasparani, com Cristiano Gualda, na codireção).

Que , ao lado de um élan musical de apelo popular, no enérgico desempenho do naipe do quinteto instrumental de João Callado e seus contagiantes arranjos, conclama a cada espectador  -  vai vadiar. E quanto a vida , deixa esta te levar...

                                                Wagner Corrêa de Araújo




ZECA PAGODINHO-UMA HISTÓRIA DE AMOR AO SAMBA está em cartaz no Theatro Net Rio/Copacabana, quinta e sexta, às 21h;sábado, às 17h30m e às 21h;domingo, às 20h. 120 minutos. Até 29 de outubro.

GHOST - O MUSICAL: QUANDO O MILAGRE FÍLMICO NÃO CHEGA AO PALCO


FOTOS/CAIO GALLUCCI

Ghost, o original cinematográfico de 1990(Jerry Zucker) com sucesso comercial , dois  Oscars (Roteiro , + atriz coadjuvante- Whoopi Goldberg) e dossiê de apoio crítico como típica trama romântica hollywoodiana, nunca emplacou  em sua versão musical para o palco(Bruce Joel Rubin). Com suas  turnês internacionais, desde sua première britânica em Manchester (2011), não conseguiu mais que quatro meses em cartaz na Broadway.

Na concepção inglesa apostou-se na potencialização dos efeitos técnicos para sugestionar o fantasioso enredo post mortem sobre Sam( André Loddi),um jovem bancário assassinado por inveja financeira e ciúme amoroso pairando, espiritualizado, na fantasmagoria de  um anjo protetor da inconsolável namorada, a ceramista Molly (Giulia Nadruz).

E que insistindo  em sua permanência no plano  terreno, sob a égide da farsa mediúnica de Oda Mae Brown(Ludmilla Anjos), tudo faz para esclarecer a incitação traidora do colega de trabalho Carl (Igor Miranda)ao assalto homicida, através do marginal Willie(Franco Kuster), numa lúgubre esquina do Brooklyn nova-iorquino.

Mas se os sofisticados recursos luminares da montagem inglesa (do mistificador mor Paul Kieve) ampliaram os resultados de ilusionismo aproximando-os das facilitações  tecnológicas da obra fílmica, na produção brasileira eles aparecem em proporção minimizada.

Limitando-se, praticamente, às mobilidades e sobreposições do vistoso Led cenográfico de Renato Theobaldo,  com o apoio de extensa equipe de designers de luz e projeções. Completada, também, com uma funcionalidade recatada de seu figurino(Miko Ashimoto).

Perdida, assim, parte significativa da criação original e que  , de certa maneira, era sua maior valoração para vencer uma equivocada trilha musical(D.Stewart/G.Ballard), de rareado  acerto inventivo/melódico. Com a única excepcionalidade na  canção leitmotiv Unchained Melody, retomada de um clássico, anos 50, da canção americana(H.Zaret/Alex North). Preservada no inglês integral da sua letra pela adaptação do roteirista e produtor geral Ricardo Marques.

A dedicada conduta musical   de Paulo Nogueira , ao mesmo tempo que encontra cuidadosos ecos no gestual e no convencionalismo coreográfico(Floriano Nogueira), não evita desequilíbrios na vocalização do elenco principal. Fazendo este destacar-se melhor na performance teatral que na musical. Com mais perceptível alcance na singular entrega de Ludmillah Anjos à representação, com um sotaque humorado de baianidade, na armada personagem da vidente.

No caso específico da dupla Loddi/Narduz a indefinição de tessituras na zona alterativa entre graves ou agudos, apesar do relevante esforço para alcançar um maior ajuste qualitativo de tonalidades, não atinge uma unicidade interpretativa nos solos e  nos duos.

Sublimada, aqui,  na compensação positiva da presencial fisicalidade e da perceptível busca de uma convicta carga emotiva para seus papéis. Com diferentes gradações de acordo, ainda, com as interferências cênicas de Igor Miranda e Franco Kuster.

Onde, mesmo com sua assídua e maturada trajetória pelo musical pátrio, do autoral às remontagens do que vem de fora, a direção de José Possi Neto, desta vez, teve o desafeto de não poder preencher os vazios de um débil score sonoro e dos riscos pela incomoda comparação fílmica, com o anseio do superativo retorno dramatúrgico pelo milagre cênico.

                                                 Wagner Corrêa de Araújo



GHOST , O MUSICAL está em cartaz no Teatro Bradesco/Village Mall/Barra, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h. 150 minutos. Até 5 de novembro.

CÍRCULO DA TRANSFORMAÇÃO EM ESPELHO:SOB CLÍNICA TEATRALIDADE

FOTOS/RODRIGO CASTRO


A tentativa de diversos eus ficcionais(que Pirandello realizou brilhantemente) leva a pôr novamente em questão a alternativa absoluta entre o eu autêntico e o eu representado, a colocar o sujeito num jogo permanente de eus e de espelhos”.

Reflexão do teatrólogo Patrice Pavis que pode ser um referencial para a proposta dramatúrgica de “Círculo da Transformação em Espelho”, de Annie Baker. Uma das vozes mais personalistas da nova dramaturgia norte-americana e que chega , agora, aos nossos palcos numa bela iniciativa e cuidadosa tradução por Rafael Teixeira, sob original concepção teatral de Cesar Augusto.

Onde desde o prólogo, para uma sequencial narrativa em seis segmentos, há uma singularizada proposição de um jogo de identidades, numa espécie de sessão de psicodrama e num convencional exercício lúdico/terapêutico envolvendo verbalização e gestualidades. E que, na  prevalência desta progressão dramática, armada com um inventivo olhar diretorial(Cesar Augusto), vai impactando pela inusitada exploração de seu conceitual rotineiro e de suas injunções de cotidianidade . 

Estabelecendo um parâmetro crítico, ora para   a especificidade de espectadores integrantes do universo teatral profissionalizante com seu perceptível reflexo especular, ora para o público leigo na transparência ilusória de que o visto contexto  poderia não lhe trazer maiores expectativas e significados pessoais. 

Em caráter distinto, pela peculiar construção de uma textualidade propositalmente superficial, plena de lapsos, interrupções e silêncios, em que a autora enfatiza  o confronto do mais comum situacionismo comportamental de cinco atores/personagens numa sala/academia de ensaios.

Assumindo ali, simultaneamente, diante da mobilidade de um  formato cenográfico(Mina Quental) circundado por  espelhos, o reflexo dos caracteres da representação de fatos inconclusos e fragmentários, entre suas vidas cotidianas e o ato da teatralidade. Em indumentária (Ticiana Passos) de eficaz simplicidade por sua não tipificação rigorosa de personagens, sob luminares(Adriana Ortiz) efeitos, gradativos de temporalidade ambiental e pulsões emotivas .

Neste exercício teatral do desempenho , entre a arte e a vida, há um absoluto domínio artesanal de um elenco que sabe como bem transcender as passagens, instintivas ou ficcionais, veristas ou falsas, dos relatos dia-a-dia  em introspectiva dramatização de um conflito de egos e vontades.

Direcionados pelo controle disciplinar/sensorial de Marty (Fabianna de Mello e Souza) vão, assim, se sucedendo, alterativos, em grupos ou solilóquios, os papéis e as performances. Em pontuações de psicologismo tais como o hesitante emocional do rústico James (Alexandre Dantas)marido da professora, a ferida solidão do recém divorciado Schultz(Sávio Moll), a fragilizada perspectiva de uma ex-atriz Theresa(Julia Marini) e as radiações da teenager Lauren(Carol Garcia) sonhando com as glórias do palco.

Todos dimensionados, em convicta psico/fisicalidade , na internação desta "clínica" trama de dúplice enunciado entre o ficcional e o real, com seus sugestionamentos implícitos ou explícitos, teatro dentro do teatro, numa comédia/espelho da vida privada que pode ser a de qualquer um de nós.

                                          Wagner Corrêa de Araújo


CÍRCULO DA TRANSFORMAÇÃO EM ESPELHO está em cartaz no Sesc/Copacabana, de quinta a sábado, às 20h30m; domingo, às 19h. 100 minutos. Até 29 de outubro.

OS SETE GATINHOS: GROTESCA LITURGIA FAMILIAR


FOTOS/DALTON VALÉRIO

É uma peça atroz ...Faço dela, como autor, meu salto-mortal dramático”. Assim Nélson Rodrigues definia “Os Sete Gatinhos” às vésperas de sua estreia em outubro de 1958, tendo sido concluída no ano anterior e completando , agora, seu aniversário sexagenário.

Na sua linhagem dramatúrgica integrante das “tragédias cariocas”, com seu conceitual de melodrama suburbano, tem sua ambiência no recato familiar de um  antigo e pacato bairro Grajaú.

Trazendo, ainda, elementos referenciais da tragicidade clássica grega  em sua tessitura da culpa paterna com punição fatalista, mais as nuances freudianas de tabus sexuais , além de um episódico traço espírita numa sutil lembrança dos oráculos.

Com uma curiosa justificativa para a sub/titulagem ( A Última Virgem), no lugar do original Os Sete Gatinhos(como acabou sendo conhecida até hoje) , temendo-se o risco do engano de espectador destinatário: “Eu , menos progressista e pra frente, não estou interessado em que o público infantil veja um texto como  A Última Virgem”.

Sua trama se desenvolve a partir da ilusória virgindade da  filha caçula Silene(Louise Marrie) do Sr. Noronha( Tonico Pereira ou Lourival Prudencio),aqui simbolizada como remissão pela castidade, para uma família devastada por sórdido decadentismo moral.

Onde a mãe Aracy(Alice Borges),para sublimar o desprezo afetivo/sexual do marido, posta desenhos eróticos na parede do banheiro. Enquanto as outras quatro filhas/irmãs(Ingrid Gaigher, Karen Coelho, Luiza Maldonado, Patrícia Kallai) se prostituem, com aquiescência paterna, para financiar o casamento, com véu e grinalda, da “pura” Silene.

A descoberta de sua gravidez impacta  o núcleo doméstico e o social, com a intervenção de outros personagens:Bibelot(Gustavo Damasceno),Seu Saul(Jaime Lebovitch),Dr. Bordalo(Luiz Furlanetto) e Portela(Thiago Guerrante).   Numa progressão dramática de cafajestismo, insanidade e obsessão absurda que conduzem, em compasso  tragicômico,  a uma grotesca solução final.

Na concepção diretora de Bruce Gomlevsky a teatralidade  alcança a plateia, desde  o proscênio inicial, na apresentação de Bibelot, às entradas e saídas de alguns dos personagens, exteriorizando o  circuito residencial da família Noronha. Este último arquitetado em cenografia realista(Fernando Mello da Costa), meio carregada na simultaneidade de dois planos (sala e quartos), sob um desenho de luzes vazadas (Wagner Pinto).

A indumentária equilibra um sotaque de discricionário cotidiano paralelo a certa erotização nos figurinos das cinco “meninas”. A trilha incidental pontua-se, em acordes secos e breves, na frugalidade  de dois percussionistas ao vivo(Felipe Cotta/André Silvestre).

O elenco alcança uma perceptível  identificação de postura comportamental e dimensionamento  psicológico, com naturais destaques de acordo com o  maior ou menor potencial de seus papéis.

Com inegável relevância, pelo confronto de irreverência, manipulação mental e  tensão física, na irrepreensível performance de Tonico Pereira. Sem deixar de citar,entre outros, o envolvente presencial representativo de Alice Borges, Gustavo Damasceno e Karen Coelho.

Conduzidos os onze personagens com intencional firmeza pelo comando diretor de Bruce Gomlevsky , para evitar o risco de exageros ou estereótipos numa narrativa folhetinesca/melodramática anos 50. Contemporizando um enredo de menor teor provocativo no contexto atual, com vigoroso e eficaz contraponto crítico ao seu tempo cronológico.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


OS SETE GATINHOS está em cartaz, no Teatro da Caixa Nélson Rodrigues, Centro,RJ,  quinta e sexta, às 20h; sábado, às 19h;domingo, às 18h.90 minutos. Até 29 de outubro. 

EUFORIA: REVÉS E RESGATE DA SEXUALIDADE

FOTOS/RODRIGO TURAZZI

Há  momentos existenciais em que a sexualidade é colocada em choque , ora por uma causalidade corpórea  cronológica ora por um infortúnio do destino. Nas duas situações deixando um lastro de dor solitária,  no difícil dimensionamento psicológico da subjetividade diante da auto estima fissurada.

Numa sociedade que potencializa os atributos da fisicalidade e onde a “beleza é fundamental”, a valoração será sempre dos priorizados por estas atratividades no comportamento sexual. E  ai dos que em sua trajetória são afetados, subitamente, por  um acidente de percurso ou algum  mal que os torne, hora para outra, deficientes/insanos - portadores, enfim,  do senso da ‘’repulsiva” feiura.

Outrossim, quando a jovialidade é considerada o maior dos bens num meio social cada vez mais preenchido por “sobreviventes” da terceira idade, de visceral crueldade é a situação dos destinados de últimos anos ao abandono familiar e dos relegados às casas de repouso e asilos.

E neste situacionismo pior ainda é , nos albores da despedida da vida, quando um gay ancião tem que renegar sua identidade , ocultando dos outros residentes e de cuidadores o memorial dos afetos da diversidade. Aumentando os padecimentos geriátricos com mais silenciares da lubricidade que ,desde os anos da infância, trouxera-lhe  reprimendas , vergonha e  desprezo em seus convívios .

Partindo destes pressupostos, Julia Spadaccini alcança, em  sua escritura teatral no entremeio da poesia e do pânico, uma progressão textualizada em dois segmentos sequenciais, em tom de monólogo/confessional,  titulado Euforia . Em projeto de idealização coletiva junto ao ator Michel Blois  e numa tessitura cênica ,com incisivo élan sensorial, no resultado do artesanal comando diretor por Victor Garcia Peralta.

Inicializando com a narrativa dramática, ora em off ora ao vivo, sobre um idoso aos 87  que, em tom confessional e sob os cuidados de um enfermeiro, reflete sobre a descoberta de sua tendências homoeróticas nos primeiros anos da juventude.

E que, diante da inexorabilidade do tempo, enfrenta o desafio do disfarce sobre a verdade de seu passado lascivo, no seu contato dialogal com o cuidador  e suas falsas insinuações de que vivera aventuras eróticas com mulheres.

Seguindo-se, em sutil passagem cênica, com a trama de uma jovem paraplégica com perda das faculdades sensitivas após um acidente de carro e que, mesmo assim, entre o espanto da não aceitação e a confiança na superação , consume finalmente a retomada de sua libido por intermédio de seu acupunturista. Um embate menos doloroso, no seu resgate das perdas das voluptuosidades afetivas , que o vivenciado pelo oprimido personagem da primeira parte.

Com o protagonismo solo  de Michel Blois enquadrando-se, num conceitual de participação corporal, no oficio de marcenaria construtiva da minimalista estrutura cenográfica (Elza Romero),materializada na mobilidade alterativa de uma maca e uma cadeira de rodas. Ora numa indumentária básica(Ticiana Passos), ora quase desnudo sob recatada luz ambiental(Wagner Azevedo). 

Nestes  dois momentos de melancólica poética existencial, no seu confronto entre segregação e reinclusão social, na perda e na ocultação das práticas homoafetivas de um provecto octogenário e do medo de uma jovem cadeirante feminina  nunca mais ser desejada por um homem, Michel Blois sintoniza, com raro brilho, o clima da representação.

Com um presencial irrepreensível o ator, ao irradiar em cada gesto o sofrido desalento da personagem masculina e a transmutação do anseio sensual remissivo no papel feminino, torna cúmplice a pequena plateia na simplicidade funcional deste despretensioso mas inspirado inventário cênico.

                                             Wagner Corrêa de Araújo



EUFORIA está em cartaz no Teatro Café Pequeno, sexta e sábado, às 22h. 50 minutos. Até 28 de outubro.

A FESTA DE ANIVERSÁRIO: OS ENCURRALADOS


FOTOS/DUETTO COMUNICAÇÃO

O que pode estar por trás da mais corriqueira das situações domésticas de um casal discutindo banalidades cotidianas na sua decadente pensão de um só hóspede até que cheguem dois estranhos turistas para um pernoite? E que razões – filosóficas!!! , políticas!!!- podem decifrar a enigmática comemoração, em compasso de pânico e pesadelo,  do aniversário simulado daquele inquilino solitário?

Pois é a partir de um discurso verbal de aparente naturalismo narrativo, entre amenidades, lugares comuns e estereótipos caseiros do dia-a-dia de um ser humano qualquer, que se constrói a textura dramatúrgica do universo realista de perversa metafisica, exposto por Harold Pinter em The Birthday Party ( A Festa de Aniversário).

Esta contextualização do absurdo teatral em Pinter alcança um patamar de visceral extremismo pela ambiguidade com que confronta o dito pelo não verbalizado, o real pelo imaginário, o físico pelo abstrato.

Classificadas como “comédias de ameaça” as peças da primeira fase do autor britânico exigem, por isto mesmo, um incisivo delineamento dos caracteres de corporeidade  e de dimensionamento psicológico na escolha de seus intérpretes.

O que Gustavo Paso, em sua dúplice concepção diretorial/cenográfica, soube bem conceitualizar  de um hermético território textual.  Com autoridade cênica e veemência necessária para torná-lo acessível , tanto na sua conotação metafórica como na sua percepção realística.

Materializada numa detalhista figuração ambiental desde os figurinos(Luciana Fávero) domésticos aos fantasiosos, como no favorecimento de simbólica obscuridade no desenho de luz (Bernardo Lorga) . E ainda na fluência de uma cativante  trilha pianística ao vivo (André Poyart).

Na adequação da fisicalidade dos  personagens e no acerto de seus componentes de verdade interior , destaca-se um elenco sintonizado na representação de um processo claustrofóbico e de submissão à irracionalidade .

Desde  o retrato  comportamental do casal anfitrião, na irrestrita caracterização da ingenuidade em Andrea Dantas (Meg),como no convincente alheamento de Petey, por Marcos Ácher. Na patética mas ironizada  aniquilação do sentido existencial, em convicta entrega de Alexandre Galindo(Stanley) ao mais enigmático papel da peça .

E, ainda, no protótipo da  vilania e da paranoica dominação em Rogério Freitas(Goldberg) com a permissiva assistência de MacCann( Guilherme Melca). Contando ,também, com a interferência episódica mas significativa de Raiza Puget(Lulu).  

E são exatamente estes confrontos entre o ficcional e o verismo, o afirmativo e o no sense, que tem o impacto provocativo de um soco no estomago de cada espectador.

Que por mais que se questione jamais encontrará uma resposta lógica e estará sempre no risco de sair, ao final, portador dos mesmos mistérios e identificando-se no estranhamento, encurralado, enfim, como cada uma destas personagens.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


A FESTA DE ANIVERSÁRIO, de Harold Pinter,  está em cartaz, no Teatro Poeira, terças e quartas, às 20h30m.80 minutos. Até 25 de outubro. 

A SALA LARANJA - NO JARDIM DE INFÂNCIA: ENTRE PAIS E FILHOS

FOTOS/JÚNIOR MARINS

Cinco anos de sucesso absoluto nos palcos argentinos, numa original incursão dramatúrgica de Victoria Hladilo, a partir de um tema que está presente no cotidiano de cada um de nós, a vida escolar na meninice e seus reflexos especulares entre pais e mestres.

A Sala Laranja: No Jardim de Infância retoma uma destas reuniões disciplinares sobre o comportamento que foi nosso e é de nossas crianças no universo estudantil, com avaliações pedagógicas, no entremeio de inovações, elogios, reprimendas, queixas ou  acerto de contas.

Enquanto espera a diretora que nunca chega, o encontro vai acontecendo sob o comando  da inspetora  Inês(Isabel Cavalcanti) que , na sua função substituta vai passando recados , via celular, da responsável ausente aos parentais participantes.

Aqui representados, na entrega irrestrita de um elenco aos seus embates psico/físicos, pelo paternalismo detalhista e exigente de Martin(Robson Torrini),pelas obsessões em sanidades naturalistas/veganas – na alternativa Gabriela (Priscilla Baer), e pelo casal em contraponto postural - dos complexos nervosos de  Verônica (Daniela Porfírio) ao absentismo de seu marido Diego( Rafael Sieg).

Além dos instáveis questionamentos impositivos  da professora Sandra(Renata Castro Barbosa) que se faz representante oficial de todos. Guiados em extraordinária espontaneidade,  bem-humorada espiritualidade e envolvente  acionamento dramático, nas artesanais “decupagens” do olhar armado/diretorial de Victor Garcia Peralta.

Numa  informal assembleia , entre didatismos radicais e risíveis atitudes, em cenário realista(Dina Salem Levy), reprodutor fiel de uma sala de creche abarrotada de referenciais infantis. Brinquedos, desenhos, livros e até cadeirinhas, aqui ocupadas ludicamente pelos pais.

Em clímax de unicidade palco/plateia, via luzes claras/vazadas(Daniel Gálvan)  e figurinos dia-a-dia( Luiza Fardin),no favorecimento da proximidade cenográfica. Identificando-se na progressão narrativa, ora no discurso de comicidade, ora impactando-se  pela agressividade verbal e na adrenalina dos descontroles gestuais dos personagens.

Com sua abordagem de estereótipos dos estágios da escolaridade paralelos ao sistema familiar, A Sala Laranja  aos poucos, vai transmutando as personificações individualizadas dos  pais pelo substitutivo nominal de cada filho/criança. Escondendo, sob um aparente superficialismo de diversão fugaz, uma sátira visceral de um microcosmos da sociedade contemporânea.

Com suas tipificações sociais , com seu retrato ironizado dos anseios da classe média nas idealizações filiais, na perda progressiva do controle doméstico sobre o futuro de seus continuadores consanguíneos e na crise de poder familiar e de autoridade escolar, é uma peça que ,enfim, faz reflexionar rindo de nossas misérias.
                                     
                                                Wagner Corrêa de Araújo



A SALA LARANJA:NO JARDIM DE INFÂNCIA está em cartaz no Teatro Cândido Mendes/Ipanema, sexta e sábado, às 20h30m; domingo, às 20h. 70 minutos . Até 29 de outubro.

NEDERLANDS DANS THEATER: A ENÉRGICA JOVIALIDADE DA CIA. DOIS




Desde 1975, por aqui, pôde se conferir a expansiva criatividade de companhias  holandesas como o Het National Ballet e o Nederlands Dans Theater . Seguindo-se também as turnês da NDT 2 que já passou, mais de uma vez,  por nossos palcos e volta agora em breve temporada, em ano de escassas opções internacionais.

Enquanto a original NDT é de 1959, a partir dos anos 80, atua paralelamente a ala juvenil da NDT 2 comandada, em longo percurso,  por Jiri Kylian  , sucedido por Paul Lightfoot e Sol Leon. Seus integrantes/bailarinos tem idade variável entre 17 e 23 anos e , certamente, farão parte um dia da companhia mor.

Eles não atuam como meros iniciantes,  pois apesar da pouca idade impressionam, sobretudo,  pela maturidade técnica, graças a um exigente treinamento. E pela enérgica graciosidade virtuosística em  criações idealizadas para a maior e melhor revelação   destes talentos jovens.

Em suas inúmeras turnês, o repertório mostra uma perceptível conexão alterativa entre obras narrativas ou simplesmente abstratas , mas sempre na prevalência de abordagens contemporâneas com espiritualidade juvenil.  Desde o gestual espontâneo, instintivo  e extremamente comunicativo para as plateias de quaisquer idades,  como na sua entrega à representação (coreo)dramática.

Em obras curtas e, com raríssimo ultrapasse da média 20>30 minutos, projetando-se, assim, cada  programa entre três a quatro obras. Exceção é Cacti, de Alexander Eckman , de proposição estética mais ousada com sua densidade conceitual de dança/teatro e substituída, infelizmente, apenas na dúplice performance no Municipal do Rio.

I New Then,de Johan Inger, é inspirada nas sensações psico/físicas provocadas por acordes pop/blues/rock do cantor/ compositor irlandês Van Morrison, num ironizado contraponto às buscas de afeto e companhia.

Um casal sugestionado em minimalista cenário claro /escuro, em sutis incidências eróticas, confronta a divertida reação masculina de ciúme, em solilóquio vocal com um tom histérico acima. E em humorados sequenciais de desnudamento literal de cada intérprete, em duos, solos e trios, numa fluída fisicalidade em cinco segmentos.

O que se torna presencial ainda nas impulsivas mutações  e na instantaneidade de movimentos de Mutual Comfort, de Edward Clug, numa linguagem estilística com traços de William Forsythe.

O tom caricatural aparece ainda  na coreografia Sad Case (Sol Léon/Paul Lightfoot) incursão em ritmos latinos sob atmosfera burlesca, com críticos referenciais de sensualidade melancolizada, mas que soou com exagero e não impediu certa frieza numa frustrada expectativa.

Já em Midnight Raga, de Marco Goecke, a partir de sonoridades orientais de Ravi Shankar, há  uma perceptível nuance gótica na transmutação corpórea da imaginária sacra da Índia milenar.

Com expressivo dramatismo facial e rica gestualidade no seu contorcionismo escultórico. Em  duo coreográfico de imediata adesão da plateia para a mais visceral e compensadora  performance  da noite carioca do NDT 2

                                                  Wagner Corrêa de Araújo


O NEDERLANDS DANS THEATER apresenta-se em turnê nacional, desde o dia 29 de setembro em São Paulo, seguindo para o Rio de Janeiro ( 03 e 04 de outubro) e Belo Horizonte (7 de outubro).



COMPANHIA URBANA DE DANÇA:TRINCHEIRAS COREOGRÁFICAS



Aquilo  que sorve ou devora. E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso numa vertigem. Repito hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. Qualquer abismo”.

A partir de inspiradas passagens de Caio Fernando Abreu, de transcendente significado, entre a poesia e o caos, sobre a difícil interatividade humana na ambiência coletiva, citadina ou de comunidades, a diretora/coreógrafa Sônia Destri Lie idealizou “Cinco Passos Para Não Cair no Abismo” para a Companhia Urbana de Dança.

No seu conceitual temático  há uma perceptível equivalência entre um inquieto dimensionamento psicológico e a exposição de um incisiva fisicalidade gestual, num percurso coreográfico entre trincheiras e em campo minado.

Exponencial pela resistência social, no viés da criação artística, destes bravos lutadores/bailarinos das periferias cariocas(Allan Wagner, André Feijão, Jessica Nascimento, Johnny Brito,Júlio Rocha, Miguel Fernandez, Rafael Balbino e Thiago Williams).

Há mais de uma década empenhados na entrega ao ofício redentor de seu status de marginalizações materiais e raciais, com um vitorioso alcance nos rounds das arenas coreográficas além   fronteiras.  Instintivo nas suas origens de morro ou de raízes      suburbanas, funkeiro/sambistas, ou incentivado pelas sólidas bases do comando estético  de Sônia Destri Lie.

O que os torna capazes de aceitar o desafio de uma obra de nuance narrativa quase metafórica e exigente estilismo que foge à habitual e direta comunicabilidade palco /plateia, tão presencial em suas incursões.


O risco demanda esforço físico e persistência na busca da carga emotivo/dramática necessária a esta proposta à beira do “abismo cenográfico”, num palco nu sob luzes vazadas (Renato Machado)sobre os bailarinos e os espectadores. “Desguardado do anjo com suas mornas asas abertas” protegendo suas perigosas quedas solares e seus viscerais descompassos corpóreos, entre “farpas e trapos”.

Se um certo hermetismo criou  distanciamento do público descontraído(grande parte  desacostumada à linguagem do contemporâneo) que abarrotou o Municipal numa vesperal de domingo, a retomada de um dos maiores êxitos internacionais da CUD - Na Pista -  levou o teatro à apoteose.

Numa composição cênica  entre oito cadeiras, guiada por um envolvente score musical(Rodrigo Marçal) de sotaque soul/hip hop/samba e até com acordes de E. Satie.  Favorável a uma irrestrita troca de interações gestuais, ora em formações grupais,ora em solos enérgicos de clássica mobilidade breaking .

No feeling alterativo de quebras de quadris e ombros, referenciais robóticos, saltos espaciais e corpos giratórios  atirados ao chão. Em carismática performance de cumplicidade e adesão da plateia, transubstanciada numa ritualística celebração espontânea da liberdade, em tempos de acelerado preconceito artístico.
                                   
                                              Wagner Corrêa de Araújo


A Companhia Urbana de Dança apresentou-se, pela primeira vez, no palco do Theatro Municipal/RJ, na vesperal do primeiro domingo de outubro.

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