A Falecida, de Nélson Rodrigues. Sergio Módena/Direção Concepcional. Fevereiro/2024. Fotos/Victor Hugo Cecatto. |
Desde sua criação dramatúrgica, com estreia polêmica no
Theatro Municipal pelos idos de 1953, A
Falecida, de Nélson Rodrigues tem inspirado marcantes versões, entre estas a
de Gabriel Vilela, em 1994, atravessando fronteiras e surpreendendo de vez o
público vienense.
Enquanto o emblemático filme de Leon Hirzsman, protagonizado
por Fernanda Montenegro na estreia fílmica da atriz em 1965, acabou se tornando
um clássico do Cinema Novo Brasileiro, com um sucesso absoluto de público sob
repercussão crítica de alcance internacional.
A narrativa no entorno de “uma provável Bovary suburbana”,
segundo palavras conceituais de Sábato Magaldi, caracteriza bem esta Zulmira, personagem patética do subúrbio
carioca que só vê saída para suas frustrações cotidianas através de seu obsessivo caminhar para a
morte, à causa de uma tuberculose terminal.
Vendo como forma de compensação da sua vida vazia, ao lado da medíocre ambiência de uma baixa classe média ampliada no monótono convivio marital com Tuninho, torcedor fanático de futebol e que só pensa nas próximas vitórias vascaínas. Crendo ela em poder vencer apenas pelo sonho ilusório de ter um enterro de luxo, capaz de provocar a inveja em sua vizinha e prima Glorinha, motivo maior de seus desafetos segundo previsão de uma cartomante.
A Falecida/Nélson Rodrigues. Sergio Módena/Diretor.Com Camila Morgado e Thelmo Fernandes. Fevereiro/2024. Fotos/Vicor Hugo Cecatto. |
A Falecida reaparece em cena por intermédio de
uma diferencial concepção cênica/diretorial de Sergio Módena que depois do
sucesso inicial na paulicéa chega, agora, ao Rio. Reunindo um elenco de
craques, do trio protagonista encabeçado
pela maestria interpretativa de Camila Morgado (Zulmira) em coesiva atuação junto a Thelmo Fernandes (Tuninho), além do brilho de Stella
Freitas, dividindo-se como a cartomante Crisálida
e a mãe de Zulmira.
Ao lado de uma trupe afinada de coadjuvantes, com um destaque
mais que especial para Gustavo Webner no papel do agente funerário, malandro e
sedutor, ressaltando típicos e perspicazes
caracteres suburbanos, continuados pelo bicheiro
e dono de uma frota de ônibus Pimentel (Alcemar Vieira) que leva à surpresa do epílogo, na revelação do intrigante segredo condutor da
trama.
Em montagem dimensionada com rubricas antirrealistas, por
indicação textual do próprio dramaturgo Nelson Rodrigues, a direção de Sérgio
Módena imprime à performance tonalidades
gestuais expressionistas. A começar do prólogo tendo ao fundo a simbologia
funesta de uma representação cenográfica (André Cortez) da cavidade de um
túmulo cemiterial ladeado por azulejos.
Entre os efeitos ora sombrios ora luminares (Renato Machado),
o acompanhamento de acordes sinfônico/corais de um tema sacro, com inserções
profanas, induz à audição simultânea na trajetória narrativa, dos recortes de
canções imortalizadas por Dalva de Oliveira.
Na funcionalidade da trilha idealizada por Marcelo H. e dos
figurinos (Marcelo Olinto) com certa sugestão de época, alternados pela entrada
ritualística de personagens mascarados
que tanto podem remeter a espectros da morte como a personagens do carnaval carioca.
Classificada originalmente como uma tragédia carioca, A Falecida poderia também ser uma
espécie de comédia de costumes ou até de farsa trágica. Mas, antes de tudo, a
sua volta à cena no entremeio dos dissabores políticos que estamos vivendo nos últimos
tempos é mais do que oportuna. Não só por seu recado de alerta
ecoando até hoje, sete décadas após ter causado um escândalo na época em que
veio à luz.
E na realidade contemporânea de um país fanatizado cada vez
mais por extremismos religiosos, falsos moralismos, hipocrisia política e
retrocessos comportamentais, seu retorno aos palcos estabelece, além de seu
qualitativo ideário estético/teatral, a identificação de um conservadorismo
radical que, infelizmente, ainda teima em resistir...
Wagner Corrêa de Araújo