CHICA DA SILVA - O MUSICAL: TRANSCENDENDO ESTEREÓTIPOS

FOTOS/JANDERSON PIRES
       

Contemplai, branquinhas, /na sua varanda,/a Chica da Silva/
A Chica que manda! Coisa igual nunca se viu./Don João Quinto,  rei famoso, nunca teve mulher assim!” – Cecília Meirelles, versos finais do Romance XIV, do Romanceiro da Inconfidência.

Assim como Cecília Meirelles, inspirada pelo personagem mítico/histórico, descoberto e inicializado nas Memórias do Distrito Diamantino, 1868, pelo mineiro Joaquim Felício dos Santos, Chica da Silva vem povoando um vasto universo da literatura, do cinema, do carnaval, do cancioneiro popular e do teatro musical.

É nesta ultima trilha que incursiona, agora, a dramaturga Renata Mizrahi com “Chica da Silva, o Musical”. Onde, ao contrário de se ater ,mais uma vez, nos assaz explorados traços fictícios ou reais , lendários ou da oralidade, faz  desta mulher um símbolo atemporal dos embates libertários do amor sublimado pela consciência racial.

Assim, sua teatralização transcende os limites do estereótipo de um personagem feminino, marcado apenas  pelos signos da luxúria, da lascívia e  da altivez, especialmente na sua convivência com aquelas mulheres que não  lograram a sua exitosa condição redentora.

A autora faz de sua Chica da Silva uma ponte entre duas épocas, da ancestralidade histórica à contemporaneidade, em dois paralelos dimensionamentos psicológicos. Com   poesia e  verdade, visibiliza uma rebeldia capaz de fissurar os limites entre escravidão e liberdade, negritude e branquitude, domínio  e submissão , pela prevalência da condição feminina numa contextualização político/social.

A corporificação de duas Chicas estabelece uma perceptível coerência no sequencial dramático em que todo o elenco se mantem em cena, ao lado do conjunto musical. No urdimento de arquitetadas e imperceptíveis  passagens entre dois períodos , abrindo mão de desnecessárias identificações de rigorismo cronológico.

Estas sutis modulações de tempos dramáticos é alcançada, ainda, pelas mãos condutoras de Gilberto Gawronski na exploração filigranada de todos os contornos da personagem. E mesmo adotando uma linha de prevalente  intensificação da protagonização titular, o espetáculo consegue manter o ritmo e o equilíbrio quando dá voz ao elenco coadjuvante.

Onde as nuances dramático/musicais de Vilma Melo(Chica da Silva) revelam uma solidez absoluta na indisfarçável emoção de sua performance. Em unidade interpretativa, Ana Paula Black mostra luminosidade tanto na técnica de sua fisicalidade como no domínio de seu talento de atriz.

Ainda que com menores chances de brilho, há um generoso esforço na entrega dos outros atores(Antonio Carlos Feio/Luciana Víctor/Tom Pires)  a  um convicto desempenho coletivo. Onde também o quarteto de instrumentistas, sob a acurada direção musical de Alexandre Elias, tem irrepreensível atuação.

Completando o significativo cuidado estético da montagem, a concepção cenográfica com sua  indumentária artesanal (dupla criação de Karlla de Luca) e a funcional dosagem  de seu desenho de luz( Renato Machado).

Tudo, enfim, na sua coesa integralidade, capaz de favorecer o clima da representação tornando Chica da Silva-O Musical, tanto na simplicidade bem resolvida de seu aspecto formal como na especificidade de sua textualidade teatral, uma das mais gratas surpresas dos palcos cariocas. 

                                      Wagner  Corrêa de  Araújo



CHICA DA SILVA - O MUSICAL em nova temporada,no Teatro Sesi, Centro/RJ, de quinta a sexta, às 19h30m; sábado ,às 19h.70 minutos. Até 8 de abril.

JACQUES E A REVOLUÇÃO : OS QUE MANDAM E OS QUE OBEDECEM

FOTOS/ MARCO ROCHA E F LÁVIA FAFIÃ
É por natureza que a maioria dos seres comanda ou obedece”, propugnava Aristóteles em sua Política.

E esta dicotomia –dominados e submissos - capaz de colocar uns acima e outros abaixo, feitores e escravos, patrões e criados, maridos autoritários e mulheres “domesticadas”, torturadores ou vítimas, continua como uma marca cínica  do processo  evolutivo civilizatório.

Mas não houve, afinal, em 1789, a surpresa histórica do  propício questionamento da abusiva legitimidade divina do poder, até então consentida e resignada? Envolvendo, entre outros, luminares escritores/filósofos como o iluminista Denis Diderot.

E ,no esteio das comemorações bicentenárias 1789/1989 deste marco zero ,foi onde  surgiu o ideário da peça de Ronaldo Lima Lins – Jacques e a Revolução ou Como o Criado Aprendeu as Lições de Diderot.

Uma escrita dramatúrgica que se viu espelhada na fundamental obra de Diderot “Jacques o Fatalista e o Seu Amo”,  dos anos de aproximação  da Revolução Francesa. Como o fizera, em 1971, o escritor Milan Kundera em sua única incursão teatral “Jacques e Seu Amo”.

Remetendo ainda,referencialmente, a uma precursora abordagem desta relação patrão><empregado no Bertold Brecht de “O Senhor Puntila e Seu Criado Matti”, em tempo de comédia política.

Enquanto no texto de Kundera é retomada a simbologia da viagem, elo  condutor original do romance  de Diderot, a concepção de Ronaldo Lima Lins envereda pelas relações   clássicas do poder, transubstanciadas na contemporaneidade dos domínios de substrato econômico/empresarial.

A dualidade regimental estabelecida via patrão/empresário (Luiz Washington) e criado/empregado Jacques(Abilio Ramos)contrapõe-se entre o senso da subordinação e o pensar libertário do personagem titular. Dissimulando um desejo, comum a ambos, da convicção de serem apenas eles os donos de si mesmos.

Que alternativamente perpassa numa narrativa dialogal de afeto e ambição , lembranças e atitudes comportamentais ,envolvendo e cruzando suas vidas também com personificações do elemento feminino( Ana Luiza Accioly/Katia Iunes).

Onde a incisiva e cativante performance dos dois papéis masculinos ( Abilio Ramos/Luiz Washington)tem sintonia perfeita num jogo mordaz e irônico de ataques  e parcerias. Mantendo-se o ritmo da representação,mesmo  em papéis coadjuvantes e quase incidentais, no sensível empenho do elenco feminino (Ana Luiza Accioly/Katia Iunes).

Correntes de ferro e cordas sugestionam domínio e prisão, ao lado de figurinos sóbrios ( Mariana Ladeira/Thais Simões) e uma bem dosada fisicalidade(Carmen Luz). Tudo, enfim, ambientado sob os belos efeitos do  desenho de luz( Renato Machado) e da trilha sonora(Caio Cezar/Christiano Sauer).

O comando diretorial qualitativo de Theotonio de Paiva confere um olhar crítico e avança, assim, com energia , no desafio de transformar um discurso textual de prevalência  da palavra  em convicta e reveladora ação dramática.

A ecoar, reflexivamente, a instigante e laminar fala/signo de Jacques e a Revolução:

Quem é mais digno de pena? O que bate ou o que apanha?...


JACQUES E A REVOLUÇÃO está em cartaz no Parque das Ruínas, Santa Tereza, De sexta a domingo, 19 h. 80 minutos. Até 30 de outubro.

NOVA TEMPORADA ( 2017 ) no Teatro Municipal Ziembinski, sábado e domingo, às 19h30m. 80 minutos. Até 30 de julho.

LO SCHIAVO : VALOROSA VOLTA ÀS ORIGENS


FOTOS/JULIA RÓNAI

Desde o tempo de sua composição até sua estreia em 1889, a derradeira ópera de Carlos Gomes, Lo Schiavo, enfrentou polemicas, conflitos, revisões, em relação à sua pretensa abordagem do escravagismo brasileiro.

Em sua trama operística, entre equívocos e acertos, via diversificadas fontes literárias que vão do  poeta romântico brasileiro Gonçalves de Magalhães  ao romancista Alfred de  Taunay, passando por Alexandre Dumas Filho , à finalização pelo  libretista italiano Rodolfo Paravicini.

Sem deixar de lembrar a insistência de Gomes,  ao  incluir um Hino à Liberdade , estranho ao enredo de Paravicini, e que interrompeu o ciclo de estreia de suas óperas em palcos italianos. E onde o formato decisivo acabou optando pela escravidão indígena à época dos anos iniciais do Brasil. 

Aqui, Iberê(Rodolfo Giuliani) o cacique tamoio, é forçado pelo português invasor – o Conde Rodrigo(Saulo Javan),  a se casar com a índia Ilara(Adriane Queiroz), também escrava, com a única finalidade de esfriar a paixão que o fidalgo Américo(Fernando Portari), seu filho, nutre por ela e para  preservar seu futuro compromisso conjugal com a Condessa de Boissy (Cláudia Azevedo).

Por outro lado, nesta  retomada de prevalentes personagens indígenas, sem significativa  narrativa inédita e gerando um conflito étnico/histórico, é com a partitura de Lo Schiavo que  desponta uma escrita musical amadurecida. Capaz de incluir à sua habitual influência verdiana,de um certo  traço wagneriano( no Prelúdio e na Alvorada) à inclusão de harmonias,  de nuance  mais nacionalista, nas danças nativas. 

O maior diferencial da atual montagem é o resgate do que teria sido a ópera em sua integralidade cênica/musical ,sem as omissões que vem marcando sua trajetória. Meritório esforço do maestro Roberto Duarte, complementado no rico dimensionamento que imprimiu ao seu comando da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal/RJ.

A concepção tradicionalista de Pier Francesco Maestrini misturou projeções aos cenários naturalistas (Juan Guillermo Nova) servindo bem à sua proposta estética. Com uma ressalva apenas na passagem da Alvorada, onde as imagens rochosas cinzentas, fugindo ao verde florestal, prejudicaram o explodir aquarelado do amanhecer solar.

Os figurinos(Alberto Spiazzi)  - corretos ,entre tons recatados ou cores tropicalizadas (nas danças indígenas),  com irregularidade no desenho de luz claro /escuro de Fábio Retti, ao provocar sombras ocasionais.

No elenco, o grande destaque é do papel titular com o barítono Rodolfo Giugliani, com sua sólida tessitura e bonito fraseado no Sogni d’amore. Aos quais se juntam a bela vocalidade do tenor Fernando Portari( Américo) ,na seu equilibrada incursão entre os pianíssimos e agudos na celebrada  Quando Nascesti Tu, e os ascendentes matizes dos  recursos líricos/dramáticos da soprano Adriane Queiroz (Ilara), na ária O Ciel di Parahyba.

Além da notável intensidade das cenas corais, a grande surpresa da performance é a enérgica mobilidade da coreografia de João Wlamir. Que,  sem jamais cair no estereótipo do falso gestual indígena academizado pelo clássico, empolga pela plasticidade inovadora de sua configuração rítmica. Com  apurado conjunto de bailarinos e elegante  solo de Karen Mesquita.

Mesmo com seu extensivo prolongamento através de sua partitura revisada, Lo Schiavo soube emprestar dignidade artística e favorecer a representação ,sendo  capaz, assim, de  dominar  e atrair  a cumplicidade da plateia.


LO SCHIAVO  está em cartaz no Theatro Municipal do RJ, dias 21,25  e 27, às 20h;dia 23 de outubro,às 17h. 180 minutos, com intervalo entre os Ato II e Ato III.

AMOR EM DOIS ATOS: ENTRE SOCOS E BEIJOS


FOTOS/ELISA MENDES


“Como termina um amor? O que? Termina. (...) Uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna”.

Ao escrever seu livro Fragmentos de um Discurso Amoroso,  Roland Barthes incursiona nas duas instâncias que permeiam o fenômeno do amor – o princípio e o fim, a construção e o desmoronamento, a alegria e a mágoa.

E é neste reflexionar–se que o dramaturgo francês Pascal Rambert, num quase referencial temático, escreveu duas peças , de distanciamento cronológico e não necessariamente sendo continuidade uma da outra.

E quando a direção de Luiz Felipe Reis resolve reuni-las numa mesma performance, sob o sugestivo título de Amor em Dois Atos, é como se estivesse a propor um lance mallarmaico de dados, inteligente e incisivo na maturidade  estética de sua  concepção.

Onde o alcance crítico se torna maior ainda com a justaposição sequencial do Encerramento do Amor (2011) como o primeiro ato, e O Começo do A. (2000) como o ato seguinte.

E mesmo com este formato, entre o peso da nuance mais dramática e a leveza de sotaque poético, e sendo os textos entregues a um dialogal encontro de dois atores na representatividade de dois confrontantes momentos do (des)amor, o que perpassa sempre, aqui, é a visceral percepção da prevalência de um crepuscular discurso da solidão.

No prólogo deste encontro o que está a acontecer, no despojamento de seus  artifícios cênicos(José Dias), entre o realismo do palco ou da vida, é o fator da representação se apoiar na presença de um casal , na ambígua simultaneidade de  personagens teatrais ou seres humanos.

Quando começa este round em solilóquio e sem toques corporais, pela entrada de um ator ( Otto Jr) , seguido sequencialmente da atriz( Julia Lund), tem inicio uma partida a dar voz apenas às amarguras , de tons áridos e agressivos, do elemento masculino.

No jorro impulsivo de um palavrório de dominação,sem tréguas e pausas, capaz de acirrar a ilusória perplexidade da plateia diante do silencio submisso da atriz( Julia Lund), como se fora esta uma prisioneira tumular acuada por uma baioneta.

Numa  potencial e emotiva liberdade instintiva de entrega, Otto Jr surpreende pelos efeitos de progressão dramática que tira do personagem. Silenciado com a intervenção da mulher ( Júlia Lund) que , em sua irônica irreverencia de  tons ascendentes , revela sensíveis recursos de densidade e frieza, na sua  exploração dos contornos psicológicos de seu papel.

Na segunda parte, O Começo do A., o comando diretorial de Luiz Felipe opta pela concorrência de linguagens artísticas diversas, num incidental tributo ao múltiplo talento de Rambert ,como diretor de dança e ópera contemporânea. 

Desde um gestual  quase coreográfico( Lu Brites) a efeitos de video/clipagem(Marcelo Grabowsky), luzes(Tomás Ribas)e experimentações sonoras( Luiz Felipe Reis/Thiago Vivas),além de insinuantes figurinos(Antonio Guedes), para expressar plasticamente os desafios a que conduzem as declarações afetivas e os atos sensoriais da paixão amorosa.

Todas as situações desta teatralidade, entre o pesadelo e o insólito das suas rupturas e o acordo de vontades, do desejo introspectivo à fisicalidade erótica, viabilizam,assim, na integralidade de Amor em Dois Atos, uma convicta e valorosa busca pelos avanços de novas e desafiantes dramaturgias.


ENCERRAMENTO DO AMOR , de quinta a sábado,às 19h;domingo,às 18h.
O COMEÇO DO A. , de quinta a sábado,às 21h;domingo,às 20h. No Espaço Sesc, Copacabana. Duração total 140 minutos, com intervalo entre as peças. Até 23 de outubro.
NOVA TEMPORADA : no Teatro Poeirinha, de quinta a sábado, 20h. Até 02 de abril.

CÉUS : COMO UMA FACA NO PESCOÇO

FOTOS / LÉO AVERSA

“Um artista é um besouro que encontra nos excrementos da sociedade  os alimentos necessários à produção das obras que fascinam e revolucionam seus semelhantes”.

Esta reflexão do dramaturgo libanês-canadense Wajdi Mouawad marca sua tetralogia - “Sangue das Promessas”- ao cruzar segmentos ligados à origem filial perdida, aos embates pela conservação da identidade e aos extermínios  nas guerras político/religiosas.

Estreada em 2009, no Festival de Avignon, a quarta peça – Céus - é permeada pelo cruel questionamento da iminência dos terrorismos sombrios  e das contradições da condição humana entre o bem e o mal, entre a percepção da beleza e o confronto da morte.

Ao contrário de Incêndios, o mote aqui não é a exploração do microcosmos de  um tempo familiar passado, mas do que está por vir no macrocosmos do  próprio destino civilizatório.

A tragicidade metaforizada no que vem dos Céus incursiona por uma narrativa de mistérios , indagações  e pistas, buscadas numa resignificação da tela A Anunciação , de Tintoretto. Onde os querubins seriam os arautos  do terrorismo se opondo à redenção da “merda  do mundo" pelo parto, de  um Salvador nascido da Virgem, ou pela  arte como única luz na escuridão.

Reunidos numa espécie de bunker, sem clarificada  localização física e cronológica, estão cinco personagens de especificidades tecnocráticas, através de um elenco de exemplar representatividade, no seu  dimensionamento psicológico e na sua presencial fisicalidade.

Na frieza calculista de Blaise Centier(Isaac Bernat), no amor paternalista de Charlie Eliot Johns(Charles Fricks),nos abafamentos  secretos de Dolorosa Achê (Silvia Buarque), no escárnio mordaz de Vincent Chef-Chef(Rodrigo Pandolfo) e na interiorização da dúvida em Clément Szymanovsky ( Felipe de Carolis).

E que, cercados de recursos computadorizados  de última geração,convictos implodem pensamentos e atos, na tentativa de bloquear a ameaça de um  nascituro ataque de células  islâmicas.

Completando a performance, em projeções alternativas , as falas do suicida Valéry Masson(Aderbal Freire –Filho desdobrando-se no comando diretorial da peça)  e do pré-adolescente Viktor Eliot Johns( Antônio Rabelo), simbolizando a adesão de uma juventude vitima e algoz de uma guerra ideológica, sem eiras nem beiras.

Revelando, ainda, uma  arquitetura sólida em seus elementos técnicos,  do realismo cenográfico((Fernando Mello da Costa), direto e seco, à composição dos figurinos (Antonio Medeiros). Como no alcance da envolvência  das  projeções e efeitos visuais(Maneco Quinderé) e do incisivo sotaque da trilha sonora ( Tato Taborda).

Com uma gramática teatral arrojada de pulsão cinematográfica , o comando mor de Aderbal Freire –Filho está sintonizado entre a expressão do caos civilizatório da contemporaneidade e o resgate pela  contemplação estética.

Onde materializa, reflexivamente, as palavras de Wajdi Mouawad:

O artista, tal qual um besouro, se nutre da merda do mundo, para o qual ele trabalha, e deste alimento abjeto faz jorrar a beleza”.


CÉUS está em cartaz no Teatro Poeira, Botafogo, de quinta a sábado, 21h;domingo, às 19h. 100 minutos. Até 18 de dezembro.

NU DE BOTAS: SEM A MESMICE NA TEATRALIZAÇÃO DA MENINICE



FOTOS/RENATO MANGOLIN

Como eram engenhosos os adultos: para cada doença um remédio, para cada problema uma solução, cada coisa no mundo tinha uma função”.

A singularizada abordagem literária do olhar infantil é desenvolvida na escrita de Antônio Prata com uma peculiar narrativa confessional. Capaz de dar à sua personagem/criança um viés reflexivo como se o seu pensar fosse, assim, meio adulto, meio pueril.

A narrativa memorialista das crônicas que integram seu livro Nu de Botas faz da revelação do mundo que o cercou criança, entre os anos 70 /80, um retrato aproximativo, no seu dimensionamento psicológico, de quaisquer gerações.

Não importando, aqui, qualquer prevalência  do contexto factual de citações da especificidade,por exemplo, da Copa do Mundo 82, de uma outra passagem do cometa Halley, de Bozo e dos programas de tv.

Pois, em paralelo, este pode ser, sim, um instante coletivo de nossas meninices, com seus folguedos de quintal, suas travessuras domésticas, a monotonia das férias prolongadas, as primeiras descobertas sexuais e as perplexidades sobre o mundo, a vida e a morte.

E é o consenso entre o mistério e o real, entre a fantasia e a concretude cotidiana, desta visão em solilóquio que a versão dramatúrgica, de Cristina Moura e Pedro Brício, com similar titulação do livro, preserva com um resultado estético de pintura teatralizada.

Na especular distribuição via cinco atores( Inez Viana,Isabel Gueron,Pedro Bricio, Renato Linhares, Thiare Maia Amaral), do alcance da verdade ,de unicidade autoral, de um personagem/escritor(Antônio Prata).

Materializada, ainda, na visibilidade da transmutação de lembranças, em convicto e coeso conluio da direção(Cristina Moura) e elenco, no  desdobramento paralelo da sinceridade das falas e da consistente gestualidade .

Entrecortando o belo desempenho coletivo e o domínio do espetáculo, os traços de uma trilha incidental(Domenico Lancellotti), nunca invasiva do sutil espalhar-se de objetos de remessa nostálgica, no imaginário espaço cênico do Radiográficos.

Além  de um figurino (Ticiana Passos) longe da obviedade,  no seu retrato de meninos e meninas. Tudo sob uma luz ( Francisco Rocha) vazada, mas sem perda da instauração do clima exigido. 


Nu de Botas representa , enfim, uma sólida contribuição pelo investimento na construção de uma nova dramaturgia, capaz de perdurar como as memórias da infância em cada um de nós.


NU  DE  BOTAS está em cartaz no Teatro III do CCBB, Centro/RJ, de quarta a domingo, às 19h30m. 75 minutos. Até 16 de outubro.

LADY CHRISTINY: A APRENDIZAGEM DO SER NÃO SENDO


FOTOS/JANDERSON PIRES

Promíscuos, irreverentes, vagabundos, desajustados , desavergonhados, doentes, são termos comuns  classificatórios dos transexuais nos parâmetros do convencionalismo social.

E quando recorrem a procedimentos cirúrgicos pelo alcance da fisicalidade  sexual a que aspiram, esta  aversão amplia o constrangimento e a intimidação contra o sonho de ser feliz fora de seu determinador genético nascituro.

Fugindo ao estereótipo do travesti como um ser marginalizado na sua natural inclinação a um  comportamento , assaz vulgar e agressivo, quando confrontado em sua opção vocacional por outra genitália, há aqueles que se afirmam por uma postura mais  intelectualizada.

E é assim que , através do deboche verbalizado e de um irônico e mordaz ato do “desmunhecar ” fazem valer sua transgressividade psicológica,   de vivência afirmativa de sua verdade e de seu desejo homossexual.

No enfrentamento das ameaças, através da valoração de seu presencial público como expoentes de aptidões  artísticas, em moldes singularizados, nas personificações   de seu próprio vir a ser em palcos e casas noturnas.

Em outro plano,  no seu cotidiano, trajam-se à moda feminina, muitas vezes numa domesticidade matrimonial quando encontram, para o seu convívio,  o “homem certo”. 

Mas a Lady Christiny ,da concepção dramatúrgica de Daniel Porto, é um personagem transexualizado a partir de sua viva inspiração existencial, com uma trajetória diferenciada por seu pensar e por atos ancorados no conservadorismo moral e religioso.

E é ao “perceber os limites de um personagem e o pertencimento de quem o conta”, que  Alexandre Lino , com fluente e cativante performance, faz da representação de narrativo solilóquio, um dialetal jogo lúdico com a plateia.

Pleno de inesperados e  bem humorados achados onde os “desaforos” comportamentais do personagem tem um tratamento de instintiva  e  simpática malícia capaz, assim, de atenuar as suas exacerbadas e quase incomodas  nuances tradicionalistas.

Com  pausas  gestuais de eficaz mimetização e  entremeado por cenas do curta metragem documental(também da lavra de A. Lino), de teor verista e  com similar titularidade da peça Lady Christiny.

Nessa proposição (Daniel Porto/Alexandre Lino)da  teatralidade de “pertencimento” entre o ser e o não ser , também o  desenho alterativo de luz ( Renato Machado) e figurinos recatados, integralizam uma gramática cênica comandada convictamente   por Maria Maya e que vale ser conferida. 

                                                         Wagner Corrêa de Araújo



LADY CHRISTINY está em cartaz no Teatro Café Pequeno,Leblon, de sexta a domingo, 20h. 60 minutos. Até 30 de outubro.
Em  nova temporada, no Teatro Sesi/Centro/RJ, segundas e terças,às 19h30m. Até 18 de abril.

THE PRIDE : SOB O CONSENSO DA SEXUALIDADE DISSIDENTE


Desde a ancestralidade greco-romana vem se levantando  vozes reflexivas, entre prós e contras, sobre as transgressões dos limites fronteiriços no status comportamental da sexualidade humana.

Fugindo aos lugares comuns de uma  teatralidade erotizada na abordagem desta dissidência sensorial, o dramaturgo grego Alexi Kaye Campbell(visto, também ,como roteirista do filme A Dama Dourada) ao estrear sua segunda peça –The Pride, nos palcos londrinos, em 2008, quis buscar outra especificidade.

Quando, aqui, ele  propõe a priorização do questionamento psicológico do aceitar-se ou não , do conflito opcional de seus personagens para assumirem, pelo coração ou pela razão, a sua diversidade sexual.

Ao dividir o enredo dramatúrgico numa formatação de simultânea alternatividade  de épocas – os anos 1958 e 2008 – o autor, colocou em cena três personagens com similaridade nominal Philip(Arthur Brandão),Oliver(Michel Blois) e Sylvia ( Julia Tavares). Aos quais se junta um quarto ator ( Cirillo Luna) em papéis de titulação profissionalizante  (michê, editor e médico).

Por outro lado, o divisionismo em duas eras é representativo do que sempre impulsionou esta “guerra suja” contra os conflitos da vida dupla , na sua manifestação expositiva dos mais íntimos desejos desta sensualidade instintiva.

Em 1958, com a exacerbada  polarização de princípios discriminatórios  da homo-afetividade, relegada ao expurgo do que poderia ser  dito de um segredo proibido. E em 2008, mesmo após as conquistas das frentes de libertação gay, com a perigosa manipulação das demonizações fundamentalistas e dos extremismos politico/ideológicos.

Com uma perceptível uniformidade interpretativa em tempo duplo, destaca-se a reprimida introspecção da dúvida em  Arthur Brandão, paralela à  espontaneidade dos recursos de irreverência afirmativa nas aventuras eróticas em Michel Blois.

Sem banalização de personificações de fatores  exploratórios e de opressão do contextual  gay , uma surpreendente ação coadjuvante de Cirillo Luna. Enquanto a concisão dramática e precisa  gestualidade em Julia Tavares, como porta voz do elemento feminino mediador, completa este naipe de presencial irrepreensível . 

O artesanal comando inventor de Victor Garcia Peralta sabe como tirar efeitos estéticos de uma concepção cenográfica  (Dina Salem Levy) comedida no uso da mobilidade de um único banco/mesa/armário, com figurinos elegantes ( Carol Lobato) sob um desenho de luz ( Tomás Ribas)que assinala bem o constante entra e sai, numa visibilidade cronológica diversificada.

Instaurando um contraponto crítico na questão LGBT, marcado ainda pela rigorosa tradução e versão de Ricardo Ventura, Pride  consegue, assim, com contundência , consistência, convicção, se tornar um programa obrigatório da atual temporada teatral.

                                                 Wagner Corrêa de Araújo



THE PRIDE está em cartaz no Espaço Cultural da Caixa, Centro/RJ, de quinta a domingo, 19h. Até 09 de outubro.
NOVA TEMPORADA: THE PRIDE , em nova temporada, no Teatro Ipanema,quarta e quinta, às 20h. 100 minutos. Até 11 de maio.

RJ REFÚGIO: TEATRALIDADES DO EXÍLIO

FOTOS /VÍTOR MANO

“Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma” , esclarecedor pensar de Hannah Arendt sobre um dos mais trágicos contextos que afligem a humanidade – o trauma da imigração.

Quando partir para o estrangeiro, em caráter definitivo, não é uma questão opcional, mas forçada por razões políticas, religiosas ou étnicas e o fugitivo é um proscrito em seu país de origem e um marginalizado na terra que escolheu.

O que faz constatar uma singular ocorrência nos palcos paulistas e cariocas com uma pulsão incursional em tema de tanta essencialidade. Especialmente no momento em que o Brasil já conta com mais de  oito mil refugiados, por barbarismos político/religiosos ou absoluta impossibilidade de sobrevivência material.

Abordagens afetivas e nostálgicas,ora com um profundo e melancólico lirismo, como foi o caso de Brimas, de Beth Zalcman e Simone Kalil, em 2015 , sob o prisma árabe/judaico e sob o acerto do  comando de Luiz Antonio Rocha.

Ou, mais recentemente, em dois espetáculos que vieram da Paulicéia, com enfoque entre a reflexão poética sobre  costumes culinários e lembranças da geração ancestral dos avós, refletidas num solilóquio feminino (pela envolvente  performance de Valéria Arbex) em Salamaleque, com direção segura de Denise Weinberg e Kiko Marques.

E, ainda, Cartas Libanesas, inventário memorialístico de um imigrante em 1914 , do seu aporte ao país adotivo à sua descendência, numa formato monológico  de sotaque mais leve e bem humorado (com atuação de Eduardo Mossir, dramaturgia de José Eduardo Vendramini e Marcelo Lazzaroto na direção). 

E, agora, com RJ Refúgio, numa encenação mais documental insuflada pelo pesadelo confessional de três atores(Elise Garcia,Ériko Carvalho,Conrado Dess, este último dublê de autor/diretor) e dois amargos depoimentos de imigrantes(Hadi Bakhour e Tresor Muteba).

Se, por um lado, o enredo carece  de ritmo e progressão dramática , quebrando as nuances de tensão com o despropósito da cena de um jogo lúdico com a plateia, e aconteçam falhas ocasionais no alcance vocal do elenco, interferindo no domínio da unidade interpretativa.

Em contraposição, há uma sintonização sóbria, na linha diretorial de criação coletiva(Grupo Performatron) proposta, com o drama do “não lugar” destes personagens realistas, na dor da transitoriedade de vidas provisórias, entre a solidariedade e a exclusão.

Onde o palco , ao expor a crueza destas narrativas de exílio, cumpre enfim , uma necessária postura de resistência, denúncia e reflexão sobre este grande mal.

No seu eterno retorno ao fatal status de náufragos sem identificação, impedindo-os , repetindo Arendt, de “não pertencer ao mundo de forma alguma”.



RJ REFÚGIO está em cartaz no Espaço Sesc/Copacabana, de quinta a domingo, às 19h. 80 minutos. Até 16 de outubro.

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