CHACRINHA, O MUSICAL : NADA SE CRIA, TUDO SE COPIA


FOTOS/CAIO GALLUCCI

Na tentativa de ter sua própria cara, seu estilo, e deixar de ser simples cópia a la Broadway, o musical brasileiro vai experimentando, vai testando, mas ainda não conseguiu escapar da biografia meramente cronológica, com score musical apenas ilustrativo ou meramente incidental.

Como também não houve o grande investimento na trilha sonora temática, composta especialmente para o palco, como tivemos , com tanto brilho, por exemplo, com os antigos e já clássicos musicais de Chico Buarque de Holanda.

Chacrinha, O Musical repete a fórmula mas já mostra um significativo avanço quando o texto a quatro mãos de Pedro Bial e Rodrigo Nogueira, tenta , ainda que dentro da habitual sequência de fatos existenciais, promover um confronto metafórico entre o jovem Abelardo e o futuro fenômeno , o animador de palco e plateia com a marca criativa de suas atitudes anárquicas em irreverentes bordões.

Neste primeiro ato,  Leo Bahia (na época como grata revelação do musical The Book of Mormon) dá lugar a Thiago Marinho ( visto , há pouco, em irrepreensível performance em Tudo o que há Flora ). E que busca a mesma linha interpretativa ,  mantendo a espontaneidade e adequada nuance, na bem dosada ingenuidade que imprime às veredas nordestinas iniciais do Velho Guerreiro.

Mas é na segunda parte que acontece o toque transformador e mágico do cineasta/dublê de diretor teatral Andrucha Waddington ao alcançar , mimética e feericamente , o clima ao vivo dos auditórios do popular comunicador .

Isto tudo acentuado com a simbológica encarnação assumida pelo ator Stepan Nercessian, realmente o ponto alto do musical quando, na entrega absoluta ao papel , recria num misto de documental e quase sobrenatural incorporação, a presença do Chacrinha e sua inusitada fábrica de sonhos populares.

Mesmo com o presencial de um vasto elenco coadjuvante , inteiramente reformulado nesta retomada, o olhar de cada espectador fica armado sempre neste carismático personagem titular.

Vale , outrossim, ressaltar o requintado conceitual do cenário (Gringo Cardia) entre o cordelismo e a aquarela tropicalista , com o suporte preciso dos figurinos de Cláudia Kopke , da ambientação climática da luz de Paulo César Medeiros e do cuidadoso score musical de Délia Fischer.

Em sua possível proposta de “ vir não para explicar mas para confundir”, Chacrinha - O Musical abre, afinal, alguma perspectiva para este gênero dramatúrgico, e embora nele ainda “tudo se copie” , certamente há de deixar um desafio : “Vai para o trono ou não vai?

                                                Wagner Corrêa de Araújo


CHACRINHA, O MUSICAL está de volta, em curta temporada no Teatro Riachuelo/Centro/RJ, quinta e sexta, às 20h30m; sábado, às 16h30m e às 20h30m; domingo, às 18h.200 minutos. Até 11 de outubro.

TOSCA: COM ORIGINALIDADE FUNCIONAL


FOTOS/JÚLIA RÓNAI

Na história da ópera, a quinta criação de Giacomo Puccini – Tosca -  tem um caráter emblemático. Se sofreu críticas por uma certa indefinição  estilística,     no entremeio entre o verismo italiano  e uma tímida tentativa de avanço na estética wagneriana, por outro lado está ligada a fatos curiosos em torno de sua concepção.

Em primeiro lugar sua origem teatral . Do então popular dramaturgo francês Victorien Sardou que, ao lado de outra peça sua - Fedora ,foram marcos na carreira da atriz Sarah Bernhardt . Tendo ambas inspirado, ainda, os libretos de óperas com titularidade similar , a de Puccini e a de Umberto Giordano, esta última de 1898.

Na especificidade da Tosca, sua nuance de forte aporte teatral, tornou-a extremamente exigente no que se refere à sua representação de ópera como drama. O que, muitas vezes, é deixado de lado com a priorização apenas melódica. Por isto mesmo, memorável é a  performance da Callas no papel , com a densa sincronicidade de seus dotes de atriz e cantora.

Outrossim, é interessante constatar que , embora composta em 1900, nos albores da arte cinematográfica, na sua progressão dramática há indeléveis traços desta linguagem. 

Quase como num thriller de climas policialescos/políticos e drama psicológico em suas pulsões de sexualidade, violência, vilania, cobiça e vingança, satanismo e religião. Variado cromatismo sensorial que  pode ser muito bem explorado por uma direção cênica pontuando, em contínua intensidade, trama e música.

Nesta Tosca ,  há uma perceptível intenção crítica de sua direção e concepção cênica (André Heller-Lopes) de imprimir –lhe estas características. Não só na prevalência do aspecto formal como nas suas investidas no território emotivo da representação, buscando a fuga da perigosa atração pelo melodramático /folhetinesco.

Com um belo resultado na arquitetura cenográfica (Juergen Kirner/Manoel Puoci) que sintoniza alterativo realismo e essencialidade plástica. Da ambiência sacra do primeiro ato à imaginária cristã do gabinete de Scarpia à soturna ambientação da cela prisional de Cavaradossi e do terraço do castelo, numa mix transubstanciação religiosidade/criminalidade.

Todos eles sob o transcendente referencial metafórico de um “leitmotiv visual” – o busto de um Cristo fragmentado, sob incidências luminares(Fábio Retti) entre sombras.

Com uma rica indumentária(Marcelo Marques) , apenas com um tom acima na exorbitância aquarelada do coro no Te Deum e no desacerto do figurino “mouro” de Spoletta( Geilson Santos ) qual um Otello verdiano invadindo a cena pucciniana .

A condução musical de um experimentado maestro (Marcelo de Jesus) de óperas revelou segurança ao sublinhar a modulação das passagens lírico /dramáticas e a diversidade de coloridos tonais pela OSTM. Com mais um apurado resultado de Jésus Figueiredo frente ao Coro do TM, num sublimado Te Deum.

Priorizando, sem esquecer a contribuição valiosa, entre altos e baixos, do elenco coadjuvante, o tríduo protagonista  expandiu-se em cena com dignidade, irradiando-se tanto como cantores/atores , tanto como personagens.

O tenor Eric Herrero , a cada dia crescendo mais em sua maturação técnico/vocal, mostrou consistência nos ardentes arroubos do seu Mario Cavaradossi, com harmônico alcance lírico na incorporação de suas projeções dos agudos,  de Recondita ArmoniaEt Lucevan le Stelle.

O Scarpia do baixo/barítono cubano Homero Pérez-Miranda tem uma textura de virilidade vocal impositiva no registro de seus matizes para um papel que requer um pathos de maldade e frieza, especialmente no segundo ato ( Già Mi dicon venal).

Com um timbre vocal de gradações ainda cativantes para sua idade, a soprano Eliane Coelho deu a esta Tosca o necessário presencial de uma prima donna, mesmo com os naturais desafios para uma artista na última fase de uma carreira brilhante.

E mereceu, sem dúvida, a cumplicidade e o aplauso entusiasta do público por um performance  de elegância ,  afinação e de vocalização ainda convincente.

Demonstrando autoridade cênico/musical para enfrentar, com laminar resistência, rounds míticos como o Vissi d’Arte, um instante feroz e um paradigma de bravura na trajetória da ópera .

                                                Wagner Corrêa de Araújo                                                                                                              


TOSCA está em cartaz no Teatro Municipal /RJ, dias 22,23,27,29, às 20hs;domingo, às 17hs. 130 minutos. Até 29 de setembro.

O PRINCÍPIO DE ARQUIMEDES: A TORTURA DA SUSPEITA


FOTOS/AGUINALDO FLOR/FERNANDO CUNHA JR.

O imaginário em torno da dúvida pode levar à suspeição, neste  jogo de aparências entre o que se diz a partir do que se viu e ouviu, estabelecendo-se um insano duelo entre a verdade e a mentira, a indecisão e o esclarecimento. Capaz de abalar a fé mais sólida  e levar ao chão qualquer princípio de esperança.

É, exatamente, sobre o veloz poder circulatório da desconfiança direcionando-se para a calúnia de que trata a trama O Princípio de Arquimedes, do conceituado dramaturgo de origem catalã Josep Maria Miró. E que chega agora aos nossos palcos com a Lunática Companhia de Teatro, sob artesanal direção de Daniel Dias da Silva.

Que, por sua vez, possibilita um discurso cênico, sob o ângulo da contemporaneidade, da manifestação do preconceito ou do "politicamente correto" levado aos extremos.  Além da maledicência verbal, inclusive na avassaladora pulsão das  mídias virtuais , ao disseminar uma denúncia como favorecimento  do bem comum.

Com seu referencial dramatúrgico em duas clássicas incursões do teatro e do cinema norte-americano, a partir de peças originais de Lillian Hellman (The Children’s Hour, 1930) e John Patrick Shanley ( Doubt, 2004), onde o conceitual básico é o dúplice confronto entre a homofobia e a pedofilia.

Numa escola de natação, a partir de um comentário postado no facebook sobre um possível flagrante de assédio sexual a um menino, via um beijo dado por seu instrutor Rubens (Cirillo Luna), estabelece-se um “estado de suspeita”. Sequencialmente, provocando  a revolta de David - o  pai (Sávio Moll), a desconfiança de Heitor - o outro professor( Gustavo Wabner), e o ressentimento de Ana - a diretora(Helena Varvacki) do estabelecimento.

Questionado, o suspeito justifica-se como prática de inocente ato de carinho e de estímulo diante da intimidação pueril da criança no obrigar-se “didático” ao mergulho na piscina.Mesmo diante de um lastro de potencial contundência como a presença de uma sunga infantil em seu armário.

E nesta controversa dialética, entre  pai,  diretora e professores/parceiros, quem é conduzido à cumplicidade, num ato do pensar reflexivo, optando pela culpa ou na certeza, entre o não acreditar ou condenar , é um impactado espectador.

Este é o grande lance de empatia –palco/plateia – que o comando diretorial (Daniel Dias da Silva) conduz com maestria, sintonizando enérgica fisicalidade (Sueli Guerra) e pura emoção, em avanços dramáticos de incisiva ambiguidade.

Onde a própria arquitetura cenográfica (Cláudio Bittencourt), na  inversão da mobilidade ambiental de painéis, amplifica a oposição psicológica dos argumentos, sob luzes(Wallace Furtado/Vilmar Olos) vazadas, com visível opacidade, sobre recatada indumentária(Victor Guedes).  

Em que o elenco, na sua convicta entrega à representação de um conflito de vontades, torna perceptível a coerção dos mecanismos sociais pela irrestrita defesa do establishment, do conservadorismo comportamental aos dogmatismos  político/morais.

Ora pela episódica mas detonadora intervenção paterna por Sávio Moll, ora na inconstância  pela tomada de partido na personificação de Gustavo Wabner. 

Ou no insistente apelo de  inocência e na  recusa de assumir a vulnerabilidade da culpa, em consistente exploração do papel por Cirillo Luna. 

E no doloroso personagem de Helena Varvacki, entre a angústia  de compactuar ou não com a tortura da suspeita, numa das mais cativantes performances da temporada.

                                                  Wagner Corrêa de Araújo


O PRINCÍPIO DE ARQUIMEDES está em cartaz, no Sesc/Tijuca, de sexta a domingo, às 19h. 80 minutos. Até 1º de outubro.

MINHA VIDA EM MARTE: DELICIOSA DESPRETENSÃO

FOTOS/DALTON VALÉRIO

Há doze anos começava uma aventura teatral despretensiosa a partir de uma fórmula básica de comédia romântica, no formato de um monólogo confessional e com uma narrativa sobre lugares comuns do discurso amoroso.

Um inesperado e surpreendente lance de dados nos albores teatrais de Mônica Martelli que, então,  decidiu avançar, além da sua mera inicialização de jovem  atriz, se atirando,  com cara e coragem, na criação dramatúrgica autoral.

Encarada quase como um exercício lúdico  mas que acabou, graças a um talentoso e singularizado acerto, no desafio da representação de uma temática já por demais explorada e , por isto mesmo, de maior exigência inventiva.

Nada mais nada menos que  a ansiosa busca pelo amor e pelo parceiro ideal para uma vida comum a dois, como foi em “Os Homens são de Marte...E é pra lá que eu vou”.

Agora, depois de um recorde de sucesso público, aplauso da critica, versão cinematográfica e série televisiva, Fernanda( Mônica Martelli) está de volta em Minha Vida em Marte,com mais o aporte valioso da irmã/diretora Susana Garcia.

Mudando-se o parâmetro,  na revelação sequencial do desgaste no   outrora tão feliz relacionamento afetivo/sexual e numa consequente procura de respostas, confessionais ou via analista,  ao questionamento de um status conjugal em crise.

Com sua nuance de sutis toques autobiográficos, a progressão dramática se estabelece em contagiante conluio com a plateia, como se esta introspectiva dialetação(personagem/analista) fosse extensiva a cada espectador, observador/participante do embate psicológico  numa imaginária terapia em grupo.

A arquitetura cenográfica(Flávio Graff), sob um desenho de luzes vazadas (Maneco Quinderé), apresenta sofisticado detalhamento na minimalista sugestão de elementos da ambiência de um quarto. Onde com elegância, sem a quarta parede, são trocados figurinos de bom gosto  (Marcella Virzi) e retocados cabelo e maquiagem. Tudo sob o compasso de uma envolvente gestualidade( Márcia Rubin) e dos acordes musicais da dupla Lucas Marcier/Fabiano Krieger.

Com uma funcionalidade plástico/decorativa que apenas favorece visualmente a representação. Já que na interiorização , na sinceridade e no carisma com que Monica Martelli  explora seu eu/personagem, o público tem seu olhar armado e direcionado apenas para sua sensorial presença.

Uma atriz , afinal, no enfrentamento de  todos os eufemismos  de uma trama trivial sobre conflitos do matrimônio, com sua espontânea verdade personalista  na transmissão de um texto capaz, sobretudo, de confundir o alter ego de Mônica na personagem Fernanda.

Sempre sob o convicto comando de Susana Garcia que, na sua gramática cênica de um espetáculo comercial qualificado, sabe como bem dosar drama e riso, sem banalizar a dor de cotovelos e os sentimentalismos que, instintivamente, tem seu reflexo  especular na vida de cada um de nós. 

                                               Wagner Corrêa de Araújo


MINHA VIDA EM MARTE está em cartaz no Teatro das Artes, Shopping  da Gávea, sexta e sábado, às 21h; domingo,às 20h. 70 minutos. Até 29 de outubro.

VILÕES DE SHAKESPEARE: IDENTIFICANDO-SE COM O MAL CONTEMPORÂNEO


FOTOS/GUI MAIA

Enfant terrible
do teatro britânico contemporâneo, Steven Berkoff tem registrada a passagem de seu natalício octogenário na montagem, em nossos palcos, de sua peça Vilões de Shakespeare, com o protagonismo solo de Marcelo Serrado e sob o comando diretorial de Sergio Módena.

A múltipla  incursão artística de Berkoff vai do teatro, onde atua como dramaturgo, ator e diretor, às sua presencialidade no cinema, com prevalência de papéis identificados com a maldade e a vilania. Como os malfeitores em Rambo e no James Bond Octopussy, ou no Kubrick , de Laranja Mecânica e Barry Lyndon.

Mas a encarnação mais polemizada de sua trajetória foi como Hitler em seriado , num contraponto político à sua própria condição judaica. E também quando assumiu o “sujo” judeu Shylock ( do Mercador de Veneza) na performance inaugural de sua peça Vilões de Shakespeare( 1998 ).

Agindo assim, provocativamente, incomodou tanto,  a ponto de uma jornalista inglesa classificá-lo de “horrivelmente feio” e do roqueiro Bryan May abrir uma de suas canções com a frase –“Tenho medo de Steven Berkoff”.

Mas, apesar do radicalismo de afirmações autorais anti-étnicas  como “odeio Israel, odeio o sionismo, mas não odeio os judeus”, ele acabou foi recebendo, com esta peça, o prêmio Laurence Olivier. Uma espécie de investigação teatral em torno de malévolos personagens shakespearianos, entre os rigores da  pesquisa acadêmica e o criticismo irônico de sua nuance stand up, com olhar armado na contemporaneidade.

E é exatamente este confronto alterativo de tragi(comi)cidade na representação destes arquétipos da vilania , de sério embasamento clássico/historicista na trajetória da criação dramatúrgica, que nos faz enaltecê-la por seu teor lúdico/risível ou simplesmente odiá-la pelo risco de um superficial aprofundamento temático.

À convicta concepção de Sergio Módena , a partir de uma cuidadosa tradução/adaptação de Geraldinho Carneiro, não se pode atribuir qualquer desvio de transposição cênica quando, nos interregnos de episódicas passagens dos originais shakespearianos , abre-se uma cumplicidade opinativa palco>plateia( induzida, inclusive, pelo próprio Berkoff).Aqui unificando-se numa indumentária atemporal(Carol Lobato) e no belo desenho de luz de Paulo Denizot.

Sob o alcance da tarimba e maturidade de Marcelo Serrado, neste formato teatral de humor interativo, sabendo quando se  deve preservar a progressão dramática na instantaneidade da personificação destes anti-heróis, “ausentes de amor e compaixão”, como Iago(em Otelo), Macbeth,CoriolanoRicardo III ou Shylock.  E com uma até inabitual e ousada inclusão de outros “não tão culpados” sob as pulsões da fortuna, casos de Hamlet ou Oberon (Sonho de Uma Noite de Verão).

Ou quando  se avança na cumplicidade participativa desta dialetação stand up. Às vezes funcional, às vezes de um imbecilizante vazio, na resposta de cada espectador, com inteligente sutileza ou por ocos lugares comuns. Neste, enfim até propício, referencial identitário da vilania de seus personagens com a implacabilidade maléfica dos mentores de um vergonhoso status político por nós vivenciado.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


VILÕES DE SHAKESPEARE está em cartaz no Teatro dos Quatro, sexta às 21h30m;sábado e domingo, às 20h. 70 minutos. Até 01 de outubro.



CINEQUANON: PERCURSO COREOGRÁFICO EM TEMPO DE CINEMA

FOTOS/PAULA KOSSATZ

A imagem-movimento e a imagem-tempo, conceitualizadas por Gilles Deleuze em seus estudos sobre o “cinema do corpo”, repercutem,na contemporaneidade, a estreita relação estética entre a dança e o cinema.

Desde a inicialização cinematográfica, com suas primitivas experimentações de uma fotografia em “real motion” nas Serpentines Dances (inspiradas pela coreógrafa/bailarina Loïe Fuller) até a ousada animação do Pas de Deux, de Norman McLaren( 1968).

Sem esquecer as primeiras  interferências fílmicas nos anos vinte(do Ballet Mécanique/ Léger ao Entr’acte /René Clair) no ballet Relâche de Francis Picabia. E nos efeitos/cinema , da concepção coreográfica/teatral de Pina Bausch ao mix de takes reais e digitais nas criações da vídeo/dança.

Numa singular proposta de inversão da tela para o palco, a mais recente investida da Focus Cia de Dança, através de seu criador/mor Alex Neoral  , ressignifica  a expressão latina da essencialidade no substitutivo vocabular de “sine” para  a titularidade do seu Cinequanon.

Com seu referencial ao cinema por gêneros, figurinos, trilhas, cenas, títulos, o espetáculo transforma o palco numa tela viva. E ,assim, impulsiona uma trajetória do olhar entre o sensorial onírico e a percepção imagética/sonora dos elementos técnicos, oriundos de uma câmera metafórica em percurso coreográfico.

Na sua retomada documental fílmica que peca  , às vezes, por um excesso de frases (coreo)cinéticas confundindo  a apreensão do écran mental de cada espectador, Cinequanon concretiza , por outro lado, uma inusitada experiência de filme cênico/performático.

Onde a presencial fisicalidade dos bailarinos  (Alex Neoral/Carol Pires/Clarice Silva/Cosme Gregory/Felipe Padilha/Gabriel Leite,/Márcio Jahú/Mônica Burity) estabelece , com elegante e instintiva gestualidade, um lúdico, enérgico e envolvente jogo cine/teatral.

Completado na sintonia das texturas  dos figurinos (André Vital/Mônica Burity) com os efeitos especiais óticos induzidos por um potencial desenho de luz( Binho Schaeffer), ao lado da recriação, entre ruídos, fraseados e citações incidentais, de um amarrado score de trilhas sonoras(Felipe Habib).

Alex Neoral soube explorar o palco com preciso sincronismo orgânico dos  códigos do cinema e da  dança. Fazendo  girar sua “câmera coreográfica”no alcance de  tomadas de ângulos diversos, da projeção de  grandes closes a planos gerais interativos palco/plateia.

Se a esta incursão cinema>dança>tela>palco faltou apenas uma maior decupagem do fragmentário legado fílmico com ocasionais prejuízos do ritmo, como um balé de "planos-sequência"pode a ele ser atribuído, com certeza, o resultado dziga vertoviano de "eficaz coreografia dirigindo e mediando o olhar do espectador pela câmera".

                                                   Wagner Corrêa de Araújo
                                        

CINEQUANON , em nova temporada no Teatro Municipal/Niterói, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. 90 minutos. Dias 22,23 e 24 de setembro.                         

PODEROSA VIDA NÃO ORGÂNICA QUE ESCAPA: ENTRE HUMANOS E MINERAIS



Bato à porta da pedra/-Sou eu, me deixa entrar./Quero penetrar no teu interior,/olhar em volta,/Te aspirar como o ar./-Vai embora-diz a pedra./Sou hermeticamente fechada”.

O poema de Wislawa Symborska ( Conversa Com a Pedra), como  prólogo da peça Poderosa Vida Não Orgânica Que Escapa, retoma os referenciais artísticos/literários, sempre com teor poético/reflexivo, no incursionar dramatúrgico de Diogo Liberano.

Se traços memorialísticos/confessionais materializam em O Narrador, bases do oficio literário pela tradição oral , num mix pensar Leskov/Walter Benjamin , ou na sua releitura do romance/filme Os Sonhadores , entre Gilbert Adair e Bertolucci, desta vez a investigação parte de uma novela gráfica de Will Eisner – O Edifício.

Esta narrativa quadrinizada traz, agora, a marca de Eisner nas suas  abordagens do insólito cotidiano urbano e domiciliar da grande metrópole. Com presenciais recursos da linguagem cinematográfica e das artes gráficas para tematizar, literalmente, a ascensão e a queda de um prédio octogenário e os inquilinos fantasmais dos seus três andares.

Na transposição da companhia Teatro Inominável um tríptico desempenho, alterativo em sua diferencial personificação, estabelece a função performática dos atores André Locatelli, Livs Ataíde e Diogo Liberano, este em  dúplice acionamento, autoral  e interpretativo.

Onde uma singularizada concepção cenográfica, num aporte minimalista, propicia travessias entre o real e o imaginário, através de uma micro/ estrutura em metal. Que, manipulada pelo atores e por efeitos projecionais de contraluzes ( Diogo Liberano/Thais Barros), sugestiona no telão frontal as estruturas de um edifício em processo construtor e demolidor.

No alcance de simplicidade funcional com potencial efeito estético/iconográfico capaz, também, de remeter a um repositório instantâneo de passagens com sutis traços plásticos e cinematográficos.

E possibilitando a integração da performance  num clima verista/metafórico, entre uma simpática e instintiva espontaneidade gestual( Andrêas Gatto/Gunnar Borges/Márcio Machado) e uma convicta entrega à representação por um jovem  e consistente elenco.

Sob o comando diretor de Thais Barros que, sabendo revelar surpresas num jogo teatral de necessária contenção técnico/artística, estabelece o dimensionamento psicológico e o contraponto  critico entre os anseios e a solidão dos personagens.

Dramatizando um conflito de vontades na sua obsessiva busca por portas que se abram para a carência, o vazio e  o anonimato da grande cidade.

Ainda que insistam em “entrar e sair com as mãos vazias" e sem “mostrar nada além de palavras às quais ninguém dará fé”, mesmo  com  as  respostas ôcas da pedra/poesia: ‘sou hermeticamente fechada/não tenho porta/vai embora"...

                                                  Wagner Corrêa de Araújo



PODEROSA VIDA NÃO ORGÂNICA QUE ESCAPA está em cartaz no CCJF, Cinelândia/RJ, de sexta a domingo, às 19h. 60 minutos. Até 24 de setembro.

GUANABARA CANIBAL:SOB O RECALQUE DA VIOLÊNCIA


FOTOS/JULIO RICARDO

Guanabara Canibal
 é o terceiro momento da incursão dramatúrgica no imaginário  das acontecências do que foi caracterizado como “violência legal” na trajetória histórica da cidade do Rio de Janeiro, inicializada com Cara de Cavalo(2012) e, a seguir, com Caranguejo Overdrive(2015).


E é este recalque de uma violência, vivenciada em nosso cotidiano, que é retomado. Desde a chegada dos colonizadores portugueses e dos invasores franceses, no  despontar deste quase meio milênio de uma  cidade maravilhosa e de um país do futuro chamado Brasil. E perceptível tanto no inventário teatral de Pedro Kosovski como na concepção estético/diretorial de Marco André Nunes para Guanabara Canibal.

Ao mostrar a crueldade das  manipulações e a transgressiva ocupação, pelo acionamento físico e pelo psicologismo repressivo, no desmonte dos instintos nativistas , simbolicamente a peça está se referindo ao substrato memorial deste comportamento odioso, entre séculos. Valendo sempre, nesta perpetuação, a infâmia privilegiada dos mais fortes, não importa se na condição  de estabelecidos , aliciadores ou marginais.

Num teatro físico e ritualístico, com seu contraponto de visceral representação de linguagens artísticas diversas, Marco André Nunes (em dúplice concepção com Marcelo Marques) estabelece uma instalação cenográfica impactante.

Dividida a plateia ao meio numa mix ambiência  visual/ sonoro/sensorial propiciadora de uma viagem lisérgico/sideral, mas  capaz de incomodar corações e mentes com sua nuance questionadora, não escapando, outrossim,  de ocasionais excessos  na sua reiteração metafórico/verista.

Onde a indumentária(Marcelo Marques) e o visagismo (Joseff Cheslow) de incisiva atemporalidade sintonizam-se no jogo de luzes entrecortadas (Renato Machado)  e num gestual brusco(Toni Rodrigues) amparado em dissonâncias roqueiras e acordes minimalistas, na sinergia quase agressiva da trilha ao vivo(Felipe Storino e banda).

Deslocando sua fragmentária progressão dramática para um clímax de delírio onírico  e tensão corporal, exige arrojo e exaltação no seu ato de desentorpecer o silencio da história oficial. E contando, assim, com o impositivo  presencial do seu elenco  irradia , com terra, sangue e alma, um desempenho denunciativo/cerimonial.

No componente marcante das vozes e máscara de João Lucas Romero e Reinaldo Júnior, na entrega reveladora do menino Zaion Salomão, e, em situações/limite, na furiosa corporeidade de Matheus Macena e na rompante incorporação da revolta e da dor em Carolina Virguez.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


GUANABARA CANIBAL está em cartaz no Teatro III do CCBB/Centro/RJ, de quarta a domingo, às 19h30m. 80 minutos. Até 15 de outubro.

TUDO O QUE HÁ FLORA: MAS NEM TUDO É COMO PARECE

FOTOS/PAULO HENRIQUE COSTA BLANCA

Entre o ir e o ficar, o desistir ou o persistir, o dizer não querendo dizer sim, o estar perto estando longe, o desgostar fingindo ser feliz...

Ora pelo  imaginário ora na  realidade cotidiana, entre a solidão e o sonhado afeto, com desejo e medo move-se o protagonismo de Flora. Deixando preencher o  vazio afetivo pelas obsessões de seu destino domiciliar - na ansiedade da faxina ou na multiplicação culinária de arrozes diferenciais.

Enquanto vai remoendo sua espera por um marido incomodo  e que só trava seu furtivo encontro com os dois amantes/irmãos. Permissivo apenas nestas ausências abençoadas, no entremeio de um  arriscado mas divertido jogo do engano e da traição amorosa. Revitalizando  sua sexualidade e longe, enfim, do insensato preenchimento presencial com uma enceradeira e um fogão.

E é, assim, nestas curvas e descobertas que se estabelece o metafórico percurso dialetal da peça Tudo O Que Há Flora, singularizada incursão dramatúrgica de Luiza Prado, potencializada na inventividade diretorial de Daniel Herz.

Num eco de teatro do absurdo, no querer quase introspectivo/confessional de Flora (Leila Savary) de ter que estar mais  consigo mesma no contraponto psicofísico com os invasores, consanguineos parceiros de sua paixão (personificados por Lucas Drummond e Thiago Marinho). Diante das episódicas interrupções  de um consorte/marido  oficial(Jorge Renato) que , pela vontade sensorial dela, melhor seria quanto mais demorasse a voltar.

Com um sutil toque de humor negro e além de sua perceptível modulação dramática de lúdico comportamento  amoral,ainda, há uma irônica tessitura referencial do  vazio e do fugaz nas  relações sexo/afetivas.

A habitual competência de Daniel Herz confere uma densidade de farsa poética, entre o risível e o melancólico, neste jogo teatral de ambiguidade de palavras, trocadilhos e ditos populares. Sabendo como dar suporte à ação,  transcendência à  emotividade e intenção crítica a uma teatralidade gramatical dos lugares comuns da ronda amorosa.

Sintonizada no empenho de um elenco jovem, capaz de se destacar com adequação e unicidade interpretativa no papel  duplo dos amantes (Lucas Drummond/Thiago Marinho). Nas instantâneas mas convincentes intervenções de Armando, o marido de Flora(alternando nesta temporada, Jorge Renato><Rainer Cadete).E na espontaneidade do domínio de técnica e talento da irradiante mecânica gestual/vocal de Leila Savary (Flora).

Contando com o substrato criativo de uma instalação cenográfica(Fernando Mello da Costa) conceitual como uma caixa mágica de mistérios e surpresas e materializada, ainda, por figurinos( Antonio Guedes) e luzes (Aurélio de Simoni)que favorecem a representação.

O primado da linguagem corporal(Janice Botelho) mimetiza seus personagens quase como marionetes  que  surgem e desaparecem nas passagens/alçapões entre dois planos de uma casa de bonecas. Onde, na originalidade textual e na energia instintiva  da performance,no mais, tudo é como parece ser  nesta conquista inaugural da montagem primeira da Nossa! Cia de Atores.

                                                   Wagner Corrêa de Araújo
     
                               
TUDO O QUE HÁ FLORA em nova temporada, no Teatro Ipanema, sábado, às 21h;domingo e segunda, às 20h.70 minutos. Até 2 de outubro.

UM PAI(PUZZLE): E QUE PAI É ESSE !!!


Fotos/Renato Mangolin

Elo fundamental na teoria psicanalítica de Jacques Lacan , marcada pelo significado e pelo significante verbal e filosófico do Em Nome do Pai, este vir a ser da paternidade diante do núcleo familiar se desdobra, ali, entre o simbólico, o imaginário e o real.

Um pensar vazio e sem ecos - no que se refere à sua efetiva aplicação à própria e primeira família constituída deste intelectual mor na cultura da segunda metade do século XX.

A sua partida súbita e sem volta, criando uma sensação de desafeto no abandono da mulher e de três filhos pequenos, acaba por afligir de forma contundente a caçula Sibylle.

Acentuando-se mais ainda ,entre o ciúme e a mágoa, pela especial atenção que este pai célebre só concede à filha única do segundo casamento - Judith.

Uma dor que vai atravessar décadas até a morte auto provocada , aos setenta e três anos(2013) ,por excessiva ingestão de remédios.

E pouco mais de duas décadas após o dramático desabafo confessional no livro Um Pai(Puzzle) , que inspira o titulo da peça homônima , com brilhante adaptação dramatúrgica do cineasta Evaldo Mocarzel .

Que tem uma sutil ambiência cenográfica ( Marcelo Lipiani) ,quase soturna em suas tonalidades negras , no recatado clima de luz e sombras( Maneco Quinderé) e na elegante discrição dos figurinos ( Marcelo Olinto).

E a rara particularidade de alcançar uma transcendência ímpar na seminal performance solo de Ana Beatriz Nogueira.

A atriz/personagem estabelece uma emotiva interação reflexiva com a plateia , ainda que presa à aridez de um depoimento/ verdade sem concessões ao sentimentalismo , neste seu clamor de não ser apenas um filho a mais de um pai distante.

A permanente linha inventiva da direção conjunta - Guilherme Leme Garcia/Vera Holtz , concentra os olhares no sensório gestual da protagonista e no equilibrado palpitar das palavras, entre a dor dos afetos negados e o grito de revolta .

Completando a superlativa estética do espetáculo, a música incidental ( Andrea Zeni/Zélia Duncan) tece precisos fios sonoros de exteriorização das vozes secretas de Sibylle Lacan:

Quando eu nasci, meu pai não estava mais conosco. Até poderia dizer que, quando fui concebida, ele já estava em outro lugar [...]. Sou o fruto do desespero. Alguns dirão que sou fruto do desejo, mas não creio nisso..."
                                          
                                                 Wagner Corrêa de Araújo



UM PAI(PUZZLE), de volta ao cartaz, no Teatro Maison de France/Centro/RJ, sexta e sábado, às 20h;domingo, às 19h. 60 minutos. Até 15 de outubro.

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