Uma Peça Para Fellini. Concepção cênico/direcional:Cavi Borges e Márcia do Valle. Abril 2022. Fotos/Cláudia Ribeiro. |
Federico Fellini, num auto retrato do ano (1993) de sua despedida definitiva das telas e da vida, sob o habitual espírito crítico de um cineasta ícone, sentindo ser “habitado por um hóspede obscuro, ...coloco à disposição a minha voz, minha sensibilidade artesanal, minhas tentativas de plagiador ou de autoridade”.
E não seriam estas palavras uma espécie de mágico reflexo
especular capaz de conduzir ao ideário da criação cênico/cinética de Uma Peça Para Fellini, tendo como
referência a provocante trajetória artístico existencial deste mistificador mor?
A tríplice convergência de uma atriz (Márcia do Valle), um cineasta (Cavi
Borges) e um roteirista/dramaturgo (Joaquim Vicente) no conceitual alternativo deste
projeto não estaria muito mais próxima da própria razão estética do ser ou não ser deste
artesão de sonhos?
Se de início o espetáculo pretenda fazer um tributo a posteriori
(por causa pandêmica) ao centenário de nascimento do celebrado cineasta
ocorrido em 2020, acaba também lembrando o telúrico legado de um casal alquímico da
história do cinema, Federico
Fellini/Giulietta Masina, mortos ambos em 1993.
E amplia sua abrangência reverencial ao escolher uma locação
de emblemático significado para o homenageado titular - o saguão de um cinema
estendendo-se ao mesmo tempo, por uma livraria e galeria, expondo livros, cartazes
e registros fílmicos de e sobre Fellini,
além da reprodução de parte de seus manuscritos, caricaturais aquarelas e desenhos
em crayon, em trajetória inteira de vida e de arte.
Onde a caixa cênica é transmutada em espaço cinético sugestionado,
no entremeio de luzes (Djalma Amaral) ambientalistas, por uma tela frontal e outra
lateral onde são exibidos recortes antológicos dos filmes, dos personagens aos
atores, com prevalência de figuras míticas como Marcello Mastroianni ou as eternas mulheres/divas - Giulietta Masina, Anita
Ekberg, Anouk Aimée, Claudia Cardinale.
Uma Peça Para Fellini. Com Márcia do Valle. Roteiro dramatúrgico /Joaquim Vicente. Abril 2022. Fotos/Cláudia Ribeiro. |
Ou do próprio Fellini,
redivivo através de imagens, com “la voce
della luna” ecoando através das estrelas e assumida convictamente na cósmica corporificação
performática de Márcia do Valle. Incluídos os incidentais acordes sonoros (por
Leonardo Miranda) inspirados muito a propósito em variações autorais sob temas
de Nino Rota. Mais a propícia indumentária (Flávio Souza) remetendo, figurativamente através de elementos composicionais (chapéu, xale, túnica, lenços), a
personificações fellinianas.
E, sobretudo, através de uma reprodução em tamanho natural,
uma espécie de totem em papelão e madeira do cineasta, com o qual a atriz
protagonista Márcia do Valle contracena afetivamente, como se ele ali estivesse,
ao vivo, presente de corpo e alma.
Em processo cômico/dramático, sustentado num formato de
monólogo que não se limita a ser apenas uma narrativa confessional dimensionada
como um solilóquio. Sua personagem aqui é desdobrada entre a imaginária fã-faxineira Giuvaneide com sua vassoura num
destes cinemas poeira, ao fascínio da luxuriante representação das mulheres/atrizes, as porta vozes do feminino, e do inquieto espírito inventivo do próprio Fellini, sempre por obra e graça do versátil talento de Márcia do
Valle.
Compartilhando seu carismático papel com cada um dos
presentes, ocupantes de mesas entre as quais a atriz circula, energizada por um
incisivo gestual (Patrícia Niedermeier) conectado a simpático apelo histriônico
e vocal que não deixa indiferente o mais alheio dos espectadores. Questionando,
dialogando, olhos nos olhos, face a face, sob focal e emotiva interatividade.
Como se cada um deles estivesse visualizando metaforicamente a
atriz em big close-up ou simbolizada em
imaginário set de filmagens sob planos gerais ou abertos. Revelando-se, aí, o
sutil sotaque de um experiente diretor (Cavi Borges), ao sublimar o espaço
cenográfico como uma tela, com olhar
armado na linguagem cinematográfica, sempre contando com a valiosa parceria cênica
de Márcia do Valle e de uma potencial textualidade (Joaquim Vicente) que sabe ter muito a dizer.
Remetendo, enfim, Uma Peça Para Fellini, em compasso de um tríptico estético – teatro, cinema, circo - com seu lúdico brilho dramático e burlesca pulsão no riso, ao extasiante universo dos mistérios de um gênio, que acreditando ter “inventado quase tudo”, ao mesmo tempo, teimava em ser definido pela ironia de suas enigmáticas palavras : “Eu sou um grande mentiroso”...
Wagner Corrêa de Araújo