A Sagração da Primavera / Balé do Teatro Municipal/RJ. Junho de 2015. Fotos/Vania Laranjeira. |
Foram os Balés Russos de Sergei Diaghilev que, especialmente
nas duas primeiras décadas do século XX, estabeleceram uma ponte entre o antigo
e o novo.
Esta passagem aconteceu, ora dando outras perspectivas à
tradição técnica coreográfica de base academicista (Les Sylphides), ora
substituindo as temáticas alegóricas pela cultura popular russa (Petrushka e Le Sacre du Printemps) ou, ainda, pela incursão na contemporaneidade
daqueles anos (Jeux).
Les Sylphides, na versão 1909 de Michel Fokine, é um tributo ao balé
branco, presente nos segundos atos de La
Sylphide e em Giselle. Sem um
enredo delineado, sugestiona um bosque onde “sílfides” dançam em torno de um poeta. Mas apesar da leveza de suas
linhas, de seu figurino e cenários de inspiração romântica, já revela maior
liberdade gestual em sua concepção.
A sucessão de obras pianísticas de Chopin orquestradas (Prelúdio,
Noturno, Valsa, Mazurka, Grande Valsa e Polonaise) teve seu simetrismo
detalhista preservado, com a segura e luminosa performance das bailarinas do Corpo de Baile do Theatro Municipal do RJ.
Além do brilho no desenho das formas, quase em arabesco, dos grupos, o rigor técnico necessários nas atuações individuais (Márcia Jacqueline e Mel Oliveira) e no superlativo pas-de-deux com Felipe Moreira e Karen Mesquita.
Tenha-se em mente, diante da expressiva qualidade demonstrada pelo BTM, que tudo isto é um herança do inestimável trabalho de uma vida inteira de Tatiana Leskova (remontadora de Les Sylphides) dedicada à preservação do culto à base clássica, no país que adotou. Afinal, há que se reconhecer nela a primeira e grande responsável pela profissionalização da dança no Brasil.
O "Grand Pas–de-Dix" de Raymonda não foi
incluído aleatoriamente no programa, pois era um trecho apresentado pelos Balés Russos de Diaghilev em noites de “divertissements”.
Aqui ele tem a recriação de Galina Kravchenko e segue, com
fidelidade, o esteticismo original. E também tem sua precisa exibição pelo BTM, com um destaque absoluto para as
entradas de Cícero Gomes, pelo visível apuro e sensibilidade artística .
Longe de “jetées,
pirouettes e arabesques”, A Sagração da Primavera, com seus pés para
dentro, joelhos dobrados, braços rebaixados, além da sua dissonância sonora,
fechou, em grande estilo, a “soirée“
russa. Em primorosa reconstituição de Millicent
Hodson, a partir de Nijinsky, com
cenografia de Kenneth Archer,
inspirada em Nicolas Roerich.
Obra já cativa do repertório do Ballet do TM, prova a maturidade de sua interpretação e demonstra o
alcance da Cia., capaz de manter uma significativa energia em criação
coreográfica, com um parâmetro estilístico tão diverso das peças anteriores.
E, onde, o solo instintivo e arrebatado da Jovem Eleita, aqui
em energizada representação por Karen Mesquita, envolve,
em pulsão de emotividade, palco e plateia.
E, enfim, remetendo às palavras do próprio Nijinsky sobre a Sagração, em 1913, ano de sua
polemizada estreia, talvez possam ser elas o referencial para um novo tempo do Balé do Theatro Municipal, na
fundamental missão de ser polo entre a tradição e a vanguarda:
“Ela abrirá horizontes novos, iluminados pelos raios do sol. Tudo será, então, diverso, novo e belo”.
Wagner Corrêa de Araújo