OUTRO LANCE "MALLARMAICO" DE DADOS DA SÃO PAULO CIA DE DANÇA

SPCD. Les Sylphides. Remontagem por Ana Botafogo. Junho 2021. Fotos/Charles Lima.


Final de semana, com brilhantismo ímpar para tempos pandêmicos, da São Paulo Cia de Dança em dois envolventes momentos coreográficos disponíveis nas plataformas digitais.

De um lado, uma visceral parceria virtual une duas cias do maior relevo no universo contemporâneo da dança: a São Paulo Cia de Dança e o Ballet Am Rhein, de Dusseldorf, com apresentação simultânea das coreografias Come In, da canadense Aszure Barton, e Inquieto, da lavra de Henrique Rodovalho. As duas obras funcionando como um provocativo experimento dos jogos de movimento num contexto cênico.

A primeira destinada a uma amostragem das aptidões psicofísicas de um jovem elenco masculino, em processo de ascensão e sob assumido didatismo. Por sugestão de Mikhail Baryshnikov para aproveitar um guia musical camerístico de Vladimir Martynov, da época (2006) em que  Aszure Barton era uma artista residente do Baryshnikov Arts Centre. Aqui, com uma referência especial para a participação do bailarino brasileiro Gustavo Carvalho.

E a segunda revelando, num direcionamento gestual mais lúdico, as inquietudes frente aos questionamentos de um mundo em ebulição. Dimensionada, na criação de Rodovalho, pela sinuosidades dos acordes musicais de André Abujamra e ressaltada por dinâmica instalação plástica com uso de fios que vão linearizando o espaço cenográfico (Shell Jr).

Por outro, sob surpreendente ideia da diretora Inês Bogéa, o confronto clássico romântico na releitura de Ana Botafogo para Les Sylphides (Chopiniana) e o clima contemporâneo brasileiro de Só Tinha de Ser Com Você, obra de exemplar substrato inventivo de Henrique Rodovalho, abrindo, assim, a temporada 2021 presencial da SPCD no Theatro São Pedro.


SPCD E O BALLET AM RHEIN. Inquieto, por Henrique Rodovalho. Junho 2021.Foto/William Aguiar.

Onde a remontagem, a partir do original (1909) de M. Fokine, de Les Sylphides (Chopiniana) representa a estreia da bailarina Ana Botafogo no universo da experiência coreográfica, no desafio de uma lição de fluida leveza e suavidade gestual, transubstanciada em compasso etéreo pelas bailarinas da Cia e pela alternância de dois potenciais solistas masculinos (Vinicius Vieira e Yoshi Suzuki).

Com acertos absolutos na sutil modernização em detalhes da indumentária (Tânia Agra) e numa releitura da ambiência cenográfica (Fabio Namatame) sob os efeitos luminares (André Boll), acentuando tons mais crepusculares no lugar habitual dos fogs de transparência invernal.

Enquanto os figurinos em tons clean (Cássio Brasil) e a cenografia minimalista (Letycia Rossi) para Só Tinha de Ser Com Você contribuem com rara eficácia para a atmosfera de mais energética corporeidade, sem deixar de lado um sotaque sensual de romântica brasilidade.

Através do uso das composições de Aloísio Oliveira, Tom Jobim e Vinicius de Moraes no antológico disco "Ellis & Tom", direcionadas a uma diferencial concepção cênico/coreográfica de Henrique Rodovalho, a partir da versão inicial (2005) da obra para sua Quasar Cia de Dança.

Onde valem ser destacadas as ótimas soluções da captação cinética nas imagens vistas de frente, dos lados e pelo alto, em sensoriais planos gerais e intimistas close ups.

Conectando tradição e vanguarda mais uma vez, com resultado invulgar na exibição do aparato técnico/artístico da São Paulo Cia de Dança, em performance que traz salutares emoções estéticas para um tempo de tantos dissabores, redimindo a pânica incerteza e a patética dor trazidas pelo surto pandêmico.  

                                                          Wagner Corrêa de Araújo


SPCD. Só Tinha de Ser Com Você, de Henrique Rodovalho. Junho 2021. Fotos/Charles Lima.

(A disponibilização nas plataformas digitais acontece até este domingo, às 17 horas no caso do espetáculo da SPCD no Theatro São Pedro. Pelo link YouTube da São Paulo Cia de Dança - Temporada 2021. Enquanto o evento virtual SPCD/ Ballet Am Rhein, em horários diversos, se estenderá apenas até o dia 21, segunda-feira próxima).


BALLET GULBENKIAN : O INCENTIVO À DANÇA EM TERRAS LUSITANAS E A AFETIVA CONEXÃO BRASILEIRA

TRIBUTO AO BALLET GULBENKIAN, pela Companhia Nacional de Bailado. Será Que é Uma Estrela, por Vasco Wellemkamp. Março 2015. Foto/Acervo Gulbenkian.


A Fundação Calouste Gulbenkian, sediada em Lisboa, sempre se destacou por sua intensa atuação a favor da arte, especialmente a literatura, a música e as artes plásticas. Mas também na dança ela alcançou um de seus pontos altos, a partir da criação, em 1965, do Grupo Gulbenkian de Bailado.

Walter Gore, coreógrafo inglês, se incumbiu em dar ao recém-formado conjunto, categoria e nível internacional. O grupo estabeleceu uma linha de trabalho e de pesquisa em que o repertório sempre se compunha de obras modernas, mas sem deixar de lado obras clássicas fundamentais. Em 1970, a direção artística foi confiada ao coreógrafo esloveno Milko Sparemblek que, então conceituou seu ideário estético frente ao grupo Gulbenkian como “um balé contemporâneo e criativo, partindo de técnicas clássicas e modernas para realizar um trabalho de vanguarda”.

Em setembro de 1972, quando a Cia esteve pela primeira vez no Brasil, ela era integrada por 37 bailarinos de 12 nacionalidades, além de seu variado staff de dirigentes e coreógrafos. O repertório incluía obras desde Massine e Serge Lifar a nomes então emergentes da cena coreográfica, a partir dos anos 60/70, como Lar Lubovitch e Sparemblek. Dando prioridade, na trilha sonora, a partituras musicais contemporâneas, inclusive obras eletrônicas.

Pareceu estranho ao público brasileiro a denominação do conjunto como Grupo Gulbenkian de Bailado, já que a palavra Bailado, para nós, era mais associada à dança folclórica, ou aos bailes e danças de salão, e não a uma forma de arte erudita como é o ballet. Mas não sendo o grupo de destinação específica como “clássico” e nem exclusivamente como “moderno’, a palavra Bailado era totalizadora, não demarcando fronteiras e possibilitando uma perspectiva mais experimental na qual se fundiam todas as tendências da arte da dança.

As criações do Grupo Gulbenkian de Bailado tinham como característica marcante o espírito de contemporaneidade, com o objetivo de situar-se dentro de uma linha de pesquisa e renovação, embora calcada em bases neoclássicas. Ritmo e movimento, vigor e dinamismo, técnica e expressão corporal, efeitos de cores, sombras e luzes, ausência de cenários pesados ou figurinos luxuosos, inter-relacionamento da música e das artes plásticas, despojamento para dar a exata sensação da dança como “o puro ato das metamorfoses”(P. Valéry).

Com a preocupação de atualizar, expressando o nosso tempo, mesmo na encenação de obras que pareciam distantes da contemporaneidade como o Messias de Haendel, transformado em revolucionária peça moderna na coreografia quase abstrata de Lubovitch.

Ou, em “Antigas Vozes de Crianças”, sob música de George Crumb, concepção cênico/coreográfica de Vasco Wellenkamp, com base em poemas de Garcia Lorca, usando avançados efeitos sonoros numa trilha sonora quase aleatória, conectando instrumentos de percussão a um canto vocal de dicção decomposta. Onde as palavras não se completavam e o objeto plástico, simbolizando um totem, também se desfazia para se recompor em seguida por efeitos de projeção espacial, produzindo uma atmosfera de total envolvimento mágico do espectador.

Depois de ter assistido à Cia pela primeira vez, em 1972, no Palácio das Artes (BH), tive a oportunidade de acompanhar a trajetória deste grupo da Fundação Gulbenkian em outras turnês brasileiras. Como as dos anos 82 e 87, desta vez nos palcos cariocas, trazendo várias obras de  Olga Roriz, que começara, depois de ser bailarina na Cia, uma surpreendente carreira de coreógrafa.

GRUPO  GULBENKIAN DE BAILADO. Sinfonia dos Salmos, de Milko Sparemblek. 1972. Foto/Acervo Gulbenkian.

Vinte anos depois quando tive a chance de percorrer presencialmente todos os incríveis espaços da Fundação Gulbenkian, já não pude mais ter a emoção de reencontrar alguns de seus integrantes que conhecera desde sua première brasileira, como os então bailarinos Ger Thomas, Armando Jorge, Margery Lambert e Carlos Fernandes com os quais realizei uma longa entrevista para o Suplemento Literário do Minas Gerais (10/09/1972). Com inclusão dos então assistentes - Bernadete Pessanha - de “maitre de ballet” e de coreografia - Carlos Trincheiras. Este último optara por residir no Brasil a partir de contrato como coreógrafo/diretor do Balé da Fundação Teatro Guaíra em 1979, vindo a falecer, por aqui, catorze anos mais tarde. 

Além de Trincheiras, que deu ao Balé Guaíra status de cia internacional, a primeira bailarina do Gulbenkian - Isabel Santa Rosa - radicou-se no Rio, inicialmente em 1977, como assistente de direção de Jorge Garcia no Balé do Theatro Municipal, seguindo-se, nos anos 80, como “maitre de ballet” no Grupo Corpo e na Cia. do Palácio das Artes, além de dirigir o Balé Guaíra, após a morte de Trincheiras. Enquanto isto, em Lisboa, a conceituada bailarina e diretora paulista Iracity Cardoso assumia o comando artístico da Cia, entre 1997 e 2003. 

Por outro lado, entre os brasileiros que integraram o Ballet Gulbenkian, estão  o bailarino  Jair Moraes, este como um dos seus  primeiros solistas por quase uma década e futura personalidade relevante na arte coreográfica, especialmente em Curitiba. Além do mineiro Tíndaro Silvano que iniciou ali sua  trajetória de formação internacional como bailarino, seguida de brilhante carreira como coreógrafo brasileiro, com particular referência, entre os que o influenciaram mais de perto, entre outros, ao português Vasco Wellemkamp.

O Ballet  Gulbenkian tinha chegado ao seu fim, sem voltas após algumas tentativas, a partir de 2005, deixando um legado coreográfico que não só marcou a história da dança contemporânea em Portugal como também a nossa memória afetiva por seus intercâmbios artísticos com reflexos estéticos no Brasil.

                                            Wagner Corrêa de Araújo

                                          

BALLET GULBENKIAN. Ensaio de Hans van Manen, com os bailarinos Graça Barroso, Jair Moraes e Carlos Trincheiras (ao fundo). Foto/Acervo Gulbenkian.

JOSÉ ROBERTO JARDIM, DESTAQUE BRASILEIRO NO GLOBAL FORMS THEATER FESTIVAL (NY)

    BELEZA, de José Roberto Jardim, um video-poema dedicado à Semana de 22. Foto/ PUC/SP


Venho acompanhando os registros virtuais dos experimentos cênicos do dramaturgo e diretor José Roberto Jardim. Que  tem sido frequentes nas visitas às plataformas digitais como forma de compensador escape a este claustrofóbico estado sanitário pré-apocalíptico em dimensão global.

E não é por menos que ele acaba de ser convidado como representante brasileiro no Global Forms Theater Festival, de Nova York, iniciado a partir desta primeira semana  de junho, 2021.

Através de transcrição fílmica do espetáculo estreado, na Temporada Paulista 2019, Há Dias Que Não Morro. Oportuna e incisiva proposta temática dando continuidade à sua pesquisa plástico/cinético/dramatúrgica que vem, com raro apuro, desenvolvendo nos últimos anos.

Possibilitado o acesso à transmissão virtual a partir de inscrição e recebimento de um link, a saber:

(https://www.eventbrite.com/.../global-eye-ha-dias-que-nao...)

Só no atravessamento da reclusa trajetória 2020/2021, houve uma sucessiva postagem de instigantes obras fílmico/cênicas, citando entre estas sua autoral releitura beckettiana em ELA+B+ECKETT, em dúplice performance verbal e física com a atriz Fernanda Nobre, mais o  vídeo/poema  BELEZA, inspirado em Menotti Del Picchia e dedicado à próxima comemoração centenária da Semana de 22.

Além do enfoque do seu processo dramatúrgico através de Criação, outro envolvente  vídeo/confessional, prenúncio de sua próxima incursão, inclusive em torno de mais uma de suas releituras como mentor mor na decifração da obra de Matéi Visniec.

CRIAÇÃO. Experimento digital sob conceitual teórico Janeiro de 2021.

Em maio de 2017, uma das melhores surpresas da Temporada paulista em palcos cariocas, foi a de sua versão para Adeus Palhaços Mortos, montagem sobre a qual, ao escrever sobre na época, não contive o aplauso, também extensivo ao público, a outros críticos e às inúmeras indicações a prêmios:

Concepção provocadora pela abertura de seu comando diretorial (José Roberto Jardim), de inventividade direta e seca, a um teatro de contestação. Capaz, assim, de se arriscar, com folego gestual e densidade psicológica, num espetáculo tenso mas revelador.

Desfigurando a formatação convencional, pontuado no desnudamento da ação em inação, de metafórica verbalidade, deixando perguntas sem respostas, mas refletindo, visceralmente, sobre o imponderável da aventura humana”.

Depois de assistir a este último vídeo (Criação), no formato de depoimento com potencial enunciado teórico, não há como deixar de registrar, aqui, a  habitual pulsão da criatividade em José Roberto Jardim, no compasso de sua indomável e incansável busca investigativa.

Cada vez revelando maior tônus qualitativo e descortinador da maestria de seu pensamento. E mais, ainda, na transmutação cênica de tudo isto. Exigindo-se, assim, por necessária urgência, a publicação de um livro conceitual sobre seu processo de criação e de seu ideário dramatúrgico/diretorial.

Com o qual não há como não concordar ou se identificar (no meu caso específico, ao transitar criticamente entre o teatro e a dança) por acreditar, sobremaneira, nesta sua instigante fusão na diversidade de linguagens artísticas.

Conluio entre o gesto e a palavra direcionado a uma espécie de teatro coreográfico, conectado na abertura de novos caminhos sob visceral sustentação estética pelo pensar reflexivo de José Roberto Jardim :

“Penso o espaço de representação como um limbo prisional, um “não lugar” de (in)ação geométrico, exato, inorgânico; um polígono de múltiplas possibilidades para além da razão. E vejo que tive muito isso nos espetáculos que dirigi”.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

HÁ DIAS QUE NÃO MORRO. Criação de José Roberto Jardim, no Global Forms Theater Festival. NY,Junho de 2021.
 https://www.eventbrite.com/.../global-eye-ha-dias-que-nao...

SWING LOW : "ANJOS" BRASILEIROS EM PREMIÈRE VIRTUAL NO JOFFREY BALLET

        SWING LOW. The Joffrey Ballet. Chicago, estreia em 28 de maio 2021. Foto/ Todd Rosenberg.

Estreou nas plataformas digitais, no último dia 28, o breve espetáculo SWING LOW (inspirado em conhecido spiritual Swing Low, Sweet Charity), na versão da coreógrafa americana de ascendência latina Chanel da Silva. Para o Joffrey Ballet, Chicago, com um elenco masculino de cinco bailarinos onde a grande surpresa é o protagonismo dos brasileiros Fernando Duarte, Edson Barbosa e Stefan Goncalvez.

É uma performance marcada por energizado gestual e uma visceral releitura de um cântico religioso de súplica e perdão, transcendido aqui com um olhar armado em radical contemporaneidade, da abordagem temática à concepção coreográfica. Embora a proposta, por vezes, chegue a tornar-se bastante reiterativa.  

A partir de provocador confronto entre fé e dúvida, corporeidade e espiritualidade, numa configuração de anjos ao mesmo tempo homens e demônios, à beira do abismo apocalíptico. Revelando, inclusive, um subliminar teor gay quase referencial da celebrada peça Angels in America.

O score sonoro/autoral da violoncelista Zoë Keating vai transgredindo as linhas melódicas do spiritual com incisivos acordes e batidas de música eletrônica. Extensivo a um figurino que faz uso crítico de penas e asas angelicais cobrindo os dorsos nus de cinco jovens arcanjos, transviados e rebeldes.


FERNANDO DUARTE, bailarino brasileiro protagonista em  Swing Low, Maio de 2021. Foto/Todd Rosenberg.

Dimensionados plasticamente num retrato cênico entre luzes e sombras, pés descalços e calças jeans, em  pulsão gestual com estética plástica de assumida desconstrução erótica da pureza celestial.

O protagonista, como o anjo caído, é Fernando Duarte e que é desafiado pelo assédio dos  quatro "anjos terríveis", entre estes o de dois outros intérpretes brasileiros Edson Barbosa ao lado de Stefan Goncalvez, além dos bailarinos Evan Boersma e Hyuma Kiyosawa.  Lembrando que, tanto Duarte como Barbosa, ambos se formaram como bailarinos no Rio de Janeiro, enquanto Goncalvez, de ascendência brasileiro/uruguaia, teve sua iniciação de carreira em São Paulo, tanto no Grupo Raça como no Pavilhão D, antes de partir de vez para Chicago.

Fernando Duarte tendo passado pela Escola Estadual de Dança Maria Olenewa e, radicado nos EUA, desde 2008, com trajetória vitoriosa de solista, tanto em personagens clássicos ou em criações contemporâneas e, ainda, como integrante do Joffrey Ballet

Enquanto Edson Barbosa, de Tocantins para a Ilha do Governador através do Grupo Cultural de Patrícia Marques, também não ficou longe de destacada carreira internacional desde que foi o vencedor masculino do Prix de Lausanne, em 2012 e está, hoje, no elenco do Joffrey.

Não deixem de conferir Swing Low e certamente sentirão orgulho pela meritória atuação de mais três brasileiros que alcançaram sua hora e vez nos palcos do mundo.

                                              Wagner Corrêa de Araújo

                   Swing Low, The Joffrey Ballet, World Première. Maio de 2021 Foto/Todd Rosenberg.

                                             
                                            https://www.youtube.com/watch?v=IyWN5p_C4-4

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