PARA OS QUE ESTÃO EM CASA. Fevereiro 2015. Foto / Julia Rónai. |
Desde 1876, quando Graham Bell testou sua invenção com D.
Pedro II que replicou surpreso“esta
máquina fala”, parte substancial das relações presenciais começou a ser
substituída pela audição técnica verbalizada, em detrimento do face a face.
Num prenúncio da tecnologia virtual contemporânea, que invade
as relações sociais e aprisiona seus usuários no espaço domiciliar,
interferindo nos reflexos emocionais e na tomada de decisões sentimentais, o compositor italiano Gian Carlo Menotti escreveu sua ópera
para um solista, O Telefone, nos idos
de 1947, em que a soprano dialoga, solitária e musicalmente, apenas com o seu aparelho falante.
O incômodo susto causado às audiências operísticas da época,
não passaria hoje de um lugar comum no incontrolável processo de convívio
afetivo do núcleo comunitário, sob o domínio compulsivo das chamadas redes sociais.
Diante desta realidade presente no cotidiano de cada um de
nós é de sensível oportunidade a ideia do roteiro dramatúrgico desenvolvida
através de “Para os Que Estão Em Casa”, onde Leonardo Netto inicia,
com brilho e originalidade, sua trajetória de autor, acumulada também com seu
acertado comando cênico concepcional.
A partir de uma festa, combinada via laptops e celulares, em que ninguém aparece, sequencialmente vai se
delineando um quadro tragicômico, carregado de culpa, mentira, estranhamento e
solidão, de sete interlocutores de faixas etárias próximas, num simulacro
alienante da comunicabilidade.
Numa coesa performance, em que as inusitadas situações (sexo,
morte, nascimento), às vezes, favorecem mais um ou outro ator (Adassa Martins,
Anna Abbot, Beatriz Bertu, Cirilo Luna, Isabel Lobo, João Velho e Renato
Livera) e a ocupação de claustrofóbicas células domésticas, em caixa cênica (José
Dias) quase prisional, é acentuada pela precisa individualização emotiva das
luzes (Aurélio De Simoni) sobre cada personagem.
Este retrato sem retoques da ansiedade contemporânea, reclusa
na defesa virtual do acerbado individualismo e no isolacionismo da proteção residencial, faz destes personagens bestas ou anjos sugestionando, tecnologicamente,
pela omissão corpórea um certo falseamento de relações afetivas não presenciais.
Ou, quem sabe, aleatoriamente, remetendo em clima metafórico ou como um possível ideário à reflexão poética de Schiller:
“Em
um naufrágio quem está só ajuda-se mais facilmente”...
Mudam-se tempos, mudam-se os costumes, mas os labirintos da
alma humana haverão, todavia, de serem sempre os mesmos.
Com o referencial talvez do pensar de Cervantes, pós quase meio milênio, de que “o ciúme olha com lentes de aumento, que fazem de pequenas, grandes
coisas, transformam anões em gigantes
e suspeitas em verdades”.
Podendo, com certeza, servir de guia conceitual ao texto teatral
primeiro de Álvaro Campos - “O Branco de
Seus Olhos”, aqui, sob a convicta responsabilidade diretora de Alexandre
Mello.
Em tempos de amores virtuais, o tramado reencontro, via redes
sociais, de uma antiga amiga Karina (Amanda
Vides Veras) de quase imemorial amizade, entre os folguedos infantis e as
descobertas adolescentes, com o já adulto e agora bailarino Lauro (Fabiano Nunes) em sua ambiência vivencial, leva ao espanto
de uma incômoda situação.
Por um erro de cálculo cronológico quando Karina ao usar a chave, deixada por
Lauro em lugar secreto, é surpreendida com a inesperada presença de sua atual consorte Raquel (Karine Teles), despertando,
entre questionamentos, dúvidas e uma nuance de sádica neurose, um duelo moral e
quase físico entre as duas mulheres.
Construída artesanalmente por segura direção, a peça tem seu
maior mérito no embate dúplice das personagens femininas, com uma exacerbada
performance das atrizes, da submissão ao domínio, diante dos conflitos de um
tempo/memória e um tempo/presente, direcionado a um conturbado tempo futuro de
acerto de contas.
Onde a recatada participação incidental do terceiro
personagem - Lauro - tem sua
justificativa no gestual coreográfico, sugestionando a chama artística de uma
escultura viva, causa e efeito da própria trama dramatúrgica a partir do conflito
provocador no entremeio de egos exacerbados. Numa completa psicografia de dança/teatro criada por Fabiano Nunes.
Minimalista, o espaço cênico concebido pelo diretor, é preenchido
por objetos plásticos em torno de uma tela de aproximada estética abstrata, ressaltado
nos figurinos personalistas (Elisa Faulhaber) e pelas bem dosadas modulações do
jogo de luzes (Renato Machado), sob assertivas interferências musicais (Paulo
Francisco Paes).
E mesmo que não se sustente com a quebra de um epílogo
surpresa não tão bem resolvido, O Branco de
Seus Olhos tem o mérito de revelar um promissor autor, traçando um
irreverente, mas cheio de verdade, retrato do ciúme obsessivamente aceso pelo
fogo da raiva.
Wagner Corrêa de Araújo