Maria Pagés Compañia/ Una Oda al Tiempo. Agosto/ 2022. Foto/David Ruano. |
“Todo mundo sabe que o
gênio da dança mora em Maria Pagés – disso não há dúvida. Mas ela é muito mais
que isso: quando dança, move tudo à sua volta e, depois de sua atuação, nem o Céu
nem a Terra permanecem os mesmos” (José Saramago).
O que dizer mais depois destas palavras sobre esta
emblemática continuadora da tradição do flamenco? Neste mesmo
dimensionamento de uma linguagem estética e coreográfica que vai de sua poética revalorização universal como a alma cultural
da Espanha, a partir de Garcia Lorca, a
figuras ímpares neste processo criador como Antonio
Gades e Carlos Saura.
Por falar nestes nomes míticos há que se ressaltar que muito jovem
ainda Maria Pagés participou de obras
cinematográficas na dúplice parceria Gades/Saura como Carmen e El Amor Brujo, além de Flamenco. O que marcou definitivamente a futura trajetória da
bailarina no seu direcionamento ao tríptico artístico que incorporou os ofícios
de coreógrafa e diretora de sua Maria Pagés Compañia.
Transmutando-se, pouco depois, os caminhos desta sevilhana
em consagrada carreira internacional a partir de uma releitura singular do
flamenco entre a tradição e a modernidade, com variados atributos artísticos.
Como o que ela assume, unindo fisicalidade e espiritualidade, em sua primeira
obra solo – Óyeme con los Ojos, numa criação estreada em 2014 e que os palcos
brasileiros tiveram o privilégio de receber em 2018.
A este espetáculo, a coreógrafa e bailarina Maria Pagés quis
atribuir uma nuance mais teatral através de inserções dramatúrgico/literárias,
fazendo o flamenco dançar palavras, em “diálogo
consigo mesmo e com a transcendência”.
E é na retomada desta linhagem estética que ela insere o seu
conceitual para Una Oda Al Tiempo,
aqui usando a textualidade dramatúrgica do conceiturado escritor de ascendência
árabe El Arbi El Harti, partner de arte
e de vida com Maria Pagés. Fazendo um
percurso pelas fases da existência humana numa transmutação especular de sua passagem e da sua transitoriedade com as estações do ano.
Maria Pagés Compañia/ Una Oda al Tiempo. Agosto/ 2022. Foto/David Ruano. |
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Acompanhados por um acurado septeto, integrado pelos naipes
instrumentais (duas guitarras, violino, violoncelo, caixa) e pela envolvência da tessitura de ecos lamentosos do “cante jondo” de uma dupla feminina. Com a
afinada direção musical de Maria Pagés sob originais acordes da tradição
flamenca, ao lado de particularizadas releituras indo de recortes de Vivaldi e Händel
a fragmentos das trilhas de Bernard
Hermann.
Em ambiência ora feérica ora melancolizada através de um
potencial jogo de efeitos luminares (Dominique
You/Pau Fullana), centralizada por um
pêndulo com mimético significado entre a representação solar e lunar e a
marcação horária das claridades e sombras da condição humana.
Onde os figurinos masculinos são caracterizados por tons cotidianos
enquanto prevalece a tradição nos trajes das bailarinas, com um destaque no brilho
artesanal apresentado em danças características como as bulerias, seguiriyas, soleás e sevillanas.
Na culminância de uma referência melancólica à guerra, à senilidade (com a dança das bengalas) e à morte, numa cena de sombreamento invernal no epílogo
do espetáculo, através de citações das pinturas negras de Goya ao Picasso da Guernica.
Mas o vibrante solo final redime tudo com ar primaveril na carismática
movimentação gestual e magia interativa de Maria Pagés. Que vai imprimindo sua transcendente
estética coreográfica em extensivo apelo de paz entre os homens e do amor pela
natureza em suas estações. Num tributo coreográfico à vida fazendo-nos
acreditar, juntos com Saramago, que “depois de sua atuação, nem o Céu nem a Terra
permanecem os mesmos”...
Wagner Corrêa de Araújo
Maria Pagés Compañia está em temporada brasileira pela
Dellarte, até 02 de setembro, apresentando-se em Curitiba, São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre.