ÓPERA NO THEATRO MUNICIPAL / RJ : POR UMA NOBRE MISSÃO DE RESGATE


DON PASQUALE/ FOTO BY JÚLIA RÓNAI


A ópera começou a reconquistar seu espaço cativo e a se tornar mais presente  no palco do Theatro Municipal / RJ,  a partir do segundo semestre de 2015. Por obra e graça do dinâmico esforço de sua nova direção, sob o comando mor de João Guilherme Ripper.

Iniciada na gestão anterior, a temporada lírica teve, então,apenas uma polêmica montagem do Fidélio, de Beethoven. Numa experimental concepção de fusão de linguagens artísticas por uma expert em encenações teatrais vanguardistas, Christiane Jatahy.

Que, se por um lado, quebrou inventivamente os paradigmas convencionais, não agradou ao público, com visível  prejuízo no resultado musical ,apesar de todos os esforços de seu condutor, o maestro Isaac Karabtchevsky.

Dando uma merecida visibilidade a um funcional e criativo trabalho da direção cênica de André Heller,Don Pasquale, de Donizetti, foi a primeira grande surpresa do novo comando do TM. Com magnífico desempenho da OSTM e Coro, sob a batuta de Sílvio Viegas.

Além da requintada e funcional arquitetura cênica inspirada no estilo "commedia dell'arte”, o elenco(Sandro Christopher,Ludmila Bauerfeldt,Luciano Botelho,Homero Velho,Murilo Neves) priorizou o artista nacional, provando que temos uma nova geração capaz de preencher com dignidade nossos palcos operísticos.

A MENINA DAS NUVENS/FOTO BY RENATO MANGOLIN
 

Também numa idealização de maior valoração da criação brasileira de óperas, um raro exemplar da produção de Villa-Lobos, A Menina das Nuvens, mais de meio século depois de sua estréia no mesmo palco(1960), retornou na bela visão cenográfica do diretor William Pereira.

 Capaz de tornar sedutor,musicalmente,  o tema infantil mesmo que a partitura não alcance a mesma dimensão das grandes obras do compositor. Com cuidadosa arquitetura cênica,segura condução sinfônica ( Roberto Duarte), envolvente coreografia(Tindaro Silvano) e competente elenco de solistas(Gabriella Pace,Inacio De Nonno,Lício Bruno,Regina Elena Mesquita,entre outros).

Mas o mais acertado lance operístico ficou com As Bodas de Figaro, de Mozart, na espontaneidade poética da direção cênica de Livia Sabag, numa produção original do Theatro São Pedro( SP).



AS BODAS DE FÍGARO/ FOTO BY JÚLIA RÓNAI


 Com seus cenários mouriscos, elegantes figurinos e uma afinada performance de música/teatro.Mais uma vez com expressiva atuação de artistas brasileiros( Carla Cottini,Rodrigo Esteves,Marina Considera, com destaque) ,em exponencial sincronia estética com a regência de Tobias Volkmann.

Para fechar esta sensível e qualitativa retomada operística, o TM fez uma estréia definitiva, em seu palco centenário, de uma obra contemporânea dedicada ao público infantil, Menino Maluquinho.

Transformando em eficiente trama dramatúrgica o livro campeão de Ziraldo, o libreto ( Maria Gessy) estabeleceu, com sua poética ironia, uma sintonia perfeita com as harmonias tonais e os acordes melodiosos do compositor Ernani Aguiar. Ressaltada na cenografia de Daniela Thomas , na visão  teatral de Sura Berditchevsky e na regência musical de Roberto Duarte. Além das reveladoras vozes infantis entre os protagonistas.

Tornando-se  o Theatro Municipal carioca , enfim, com esta iniciativa, um artífice na missão não só de resgatar um espaço digno para a ópera, mas de estímulo à conquista de públicos de todos os gostos e idades.
 
MENINO MALUQUINHO/ FOTO BY RENATO MANGOLIN


TEMPORADA TEATRAL 2015 : AUDACIOSA INQUIETAÇÃO CÊNICA

CARANGUEJO OVERDRIVE / FOTO JOÃO JÚLIO MELO


A decadência política, a crise econômica e a incredulidade no que vem por aí, não foram capazes de tirar o brilho de um ano de plenitude em realizações cênicas na dança, na ópera e no teatro especialmente.
Um variado panorama enriquecido não só por  textos além fronteiras, mas pela revelação de uma dramaturgia doméstica de transcendente  força, em impactantes  e descortinadoras  montagens.
Fica difícil, apenas,  enumerar tantos espetáculos de qualidade, sem correr o risco de não se dar o devido destaque por muitos merecido, neste ligeiro rascunho em forma de resenha. Sem  haver, aqui,  qualquer  intenção de delimita-los na classificação dos melhores do ano, assaz  presente nas inúmeras listas postadas.
 
Pensamos, então, na seleção inclusiva de  alguns , nunca   por categoria,  por gêneros ou temáticas, mas por sua impulsividade estética.
Tendência constante e  de   marco revelador nos palcos cariocas no ano que se encerra. Através do  ambiente multifacetado entre a linguagem teatral e outros universos artísticos. Entre o texto ensaiado e o linguajar coloquial. Entre o imaginário e   o metafórico . Ou na  denúncia, pelo realismo cru   e pela verdade sem disfarces.


KRUM / FOTO BY NANA MORAES
 
Lembrando, ainda  , certos títulos simbológicos, sem limites nacionalistas, numa absoluta independência de concepção e inventividade, tais como “A Floresta Que Anda ”(Christiane Jatahy),  Krum ( por Márcio Abreu) e  Salina - A Última Vértebra( Cia Amok).
Caracteres estilísticos extensivos à exponencial proposta/performance de obras autorais como O Narrador( Diogo Liberano), Caranguejo Overdrive( Pedro Kosovski), Projeto bRASIL ( Márcio Abreu), todas com  provocativo referencial de “work in progress”.
 
Além de inusitadas surpresas cenográficas em torno da solidão virtual , da incomunicabilidade e  dos preconceitos,  explicitadas no despontar de novos criadores em Para Os Que Estão em Casa (Leonardo Netto),Mantenha Fora do Alcance do Bebê ( Sylvia Gomez) e  BR-Trans(Silvero Pereira) .
 


SALINA (A ÚLTIMA VÉRTEBRA)/FOTO BY DANIEL BARBOSA
 

Sem deixar de lado, as retomadas conceituais de consistente teor crítico com Daniel Herz( O Pena Carioca),  na interiorização plástica de Inútil a Chuva ( da Armazém  Cia de Teatro) , no intimismo confessional de Em Nome do Pai ( via Guilherme Leme/Vera Holtz) e na visceralidade da proposta de  Abajur Lilás (por  Renato Carrera).
 
Enquanto o musical a la Broadway teve sua culminância no classicismo  do Kiss Me Kate- O Beijo da  Megera (da dupla  Botelho/Moeller), O Beijo no Asfalto - O Musical ( segundo João Fonseca) replicou  horizontes brasileiros além do desgaste das visões biográficas.

E que ,assim, diante dos palcos constatados, continue em 2016 , este, cada vez mais audacioso,  pensar dramatúrgico e esta  inquietante criação cênica,  para o bem de todos e para a felicidade geral da nação teatral brasileira.


O BEIJO NO ASFALTO/FOTO BY RENATO PAGLIACCI


O MESSIAS: COM ABSTRAÇÃO DA SACRALIDADE

FOTOS BY JULIA RÓNAI

George Friedrich Händel , uma das insígnias da música barroca, tem atraído os coreógrafos sob visões diversas, mas com predominância das linguagens artísticas da contemporaneidade.

Entre algumas destas concepções destacam-se aquelas com base na sua música orquestral : Paul Taylor( “Airs”) e Vicente Nebrada,  para a “Water Music”. Um  fascínio que atinge também as suas óperas ,  como  Acis and Galatea, por Wayne McGregor .

Quanto ao seu mais célebre oratório O Messias, composição estreada em Dublin , 1742,existem algumas significativas transcrições coreográficas.Especialmente a de John Neumeier , de 1999, inserindo passagens do compositor Arvo Pärt, numa exponencial simbologia religiosa.

Além de uma ousada incursão iconoclasta  de teatro/dança por Claus Guth e até um canadense Soulful Messiah , incluindo sonoridades da black music  mixadas às partes da obra original.

A criação do argentino Maurício Wainrot  , que o Ballet do Theatro Municipal apresenta, tem  33 seleções do oratório O Messias, estando mais próxima da sua versão de 1998, para o Balé Nacional do Chile.

Nela, Wainrot assume um caráter anti-temático e  de  nenhuma ligação  com o libreto bíblico de Charles Jennens.  A trama narrativa evangélica desaparece ,sendo referenciada apenas num desenho gestual da cruz e da Pietá .

O figurino( Carlos Gallardo) tem um sotaque fashion nas suas elegantes calças, blusas e túnicas, quebrado apenas pela infeliz inclusão de longas e esvoaçantes  saias romantizadas, mas fora do contexto, no minimalismo clean da proposta.

A iluminação (Eli Sirlin) em tons discretos, alterna as tonalidades branco/azul/cinza , num palco vazado e ocupado apenas por bancos. Que,  em diferentes posicionamentos, potencializam  inspiradas formas escultóricas com os bailarinos.

Com sutil  referencial neoclássico, a gestualidade contemporânea é dividida em solos e formações em duos, trios, quartetos, conjuntos. Propiciando expressivos confrontos de posturas enérgicas, entre a largueza dos movimentos e  flexionamentos, com  o  relaxamento de  sensíveis poses na superfície  do palco.

Ora agrupamentos masculinos( destacando-se  Edifranc Alves,Filipe Moreira,Moacir Emanoel,Rodrigo Negri) ora  femininos(Claudia e Priscilla Mota,Priscila Albuquerque,Carolina Neves ,Deborah Ribeiro,Karen Mesquita ,Renata Tubarão),com  convincente suporte interpretativo . Reafirmando a  crescente maturidade e o sensível empenho expressivo / técnico  do Ballet do Theatro Municipal.

Favorecido pela competente execução da Orquestra e Coro do TM, incluída uma talentosa geração de solistas (  soprano Lina Mendes/ mezzo-soprano Carolina Faria, tenor Aníbal Mancini, barítono Inacio De Nonno), sob as mãos firmes do maestro Sílvio Viegas.

Que na sua digna performance de  músicos/cantores ,  apenas audível, não foi capaz de preencher a expectativa  dos olhares da plateia para a criação coreográfica, de linhas apuradas em seu tecnicismo abstracionista.

Mas  revelando  um  distanciamento estético da emotividade ,    na sentida ausência   de maior compromisso cênico com a emblemática simetria barroco/espiritual  da obra de Händel.

                                          Wagner Corrêa de Araújo


  

O MESSIAS está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, terça e  quarta, 20h; domingo;17h. 80 minutos . Até 30 de dezembro. 

UMA ILÍADA: MITO E CONTEMPORANEIDADE

FOTOS BY DALTON VALÉRIO

“A paz é o tempo em que os filhos enterram os pais; a guerra é o tempo em que os pais enterram os filhos”. A clássica definição de Heródoto, o mais célebre historiador grego, caracteriza bem o clima  de batalhas, morte e tragédia,  dos mais de quinze mil versos de A Ilíada, de Homero.

Mítico, glorioso, espiritual, físico e, antes de tudo, marcado pela presença e pelos embates entre deuses e heróis, a  partir do rapto de Helena , mulher de Menelau ( rei de Tebas), pelo príncipe Paris, filho de Príamo , monarca de Tróia.

Com seus atos de ódio e bravura no confronto sanguinário de Aquiles e Heitor , interferências do Olimpo e sua passagem mais celebrada do presente traiçoeiro - o Cavalo de Tróia.

Este relato milenar inspira a versão concisa, com menos de duas horas, dos americanos Denis O’Hare e Lisa Peterson, Uma Ilíada, tendo como guia o lamento do poeta/autor de que toda vez que conta e canta esta história, espera que seja sempre a última vez.

A narrativa, assumida como a faziam os “aedos”, os cantadores em versos das lendas e epopeias da Grécia clássica, retoma o papel ancestral dos contadores de histórias, alcançada no dimensionamento poético/coloquial da tradução de Geraldo Carneiro.
  
Naturalismo, clareza, verdade e emoção como no melhor da tradição oral, numa transmutação simbológica em que o foco das audiências  se volta não apenas para a temática dramatúrgica mas, sim,  na postura criativa de  seu transmissor, o  menestrel / ator.

Nuances alcançadas , com empatia, verdade interior, intenção crítica, na exploração dos contornos da narrativa épica e do personagem solo, no convicto  suporte cênico – atuação/direção – de Bruce Gomlevsky.

Num espetáculo de construção singular, é ampliada a densidade dramático/lírica  nas sensíveis interferências da trilha sonora( Mauro Berman) com a participação , ao vivo, de Alana Alberg( contrabaixo).

Ressaltada nas sutis modulações do desenho das luzes( Elisa Tandeta), na ambientação sacralizada(Bruce Gomlevsky),  nos  figurinos xamanísticos ( Carol Lobato) e na gestualidade ritualística(Daniela Visco).

Nesta decifração do significado das guerras na trajetória da civilização e na estranha queda  da condição humana pela  virulência de lutas , corporais ou políticas,   em busca de todas as formas violentas de domínio e de poder.

No epílogo, sob o luminoso  efeito do rosto do narrador/personagem  se cobrindo de sangue, um clímax de atemporalidade e filosófico “pathos”, na citação sequencial de guerras históricas  .

Deixando ecoar, mais uma vez,  seu visceral questionamento  antibelicista para a plateia: Estão vendo? Como eles fizeram isto? Porque fazemos e continuamos a fazer?... 
  

UMA ILÍADA está em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, de quarta a segunda, 19h. 80 minutos . Até 21 de dezembro.
EM NOVA TEMPORADA , no Teatro Maison de France, sexta e sábado, 21h; domingo,20h. Até 15 de maio.

A VOZ HUMANA: DIÁLOGO COM O SILENCIO

FOTOS BY THYAGO ANDRADE


Escrita em 1927, por encomenda da Comédie Française, A Voz Humana teve sua première  em 1930, com a prestigiada performance de Berthe Bovy. O texto ,de Jean Cocteau,  tinha seu referencial na exaltação, dos movimentos dadaísta e futurista, aos objetos e à tecnologia.

Sua trama dramatúrgica , com menos de uma hora, mostra uma mulher em seu leito e que, abandonada pelo amante, tem seu olhar armado no toque de um aparelho de telefone. Que pode surpreendê-la, a qualquer momento, pela voz do homem que ela ainda ama mas que a deixou por outra mulher.

Na época de sua criação, poeticamente entremeado de silêncios, ausências, pausas , esperas, configurava um monólogo ou  um solilóquio de uma atriz dialogando  com a própria voz, diante de uma metafórica sonoridade mecânica  que não se pode ouvir.

E foi esta marca estética que apressou a sua transformação em ópera(1959),  com a partitura de Francis Poulenc. Que, na sua densidade orquestral, possibilitava devaneios sensuais , no confronto da contextualização teatral de uma atriz  com o  canto lírico de uma soprano.

 Mas alcançou ,também, o cinema ( Rosselini com Anna Magnani),teve em Simone Signoret uma intérprete idealizada  e, no Brasil, inaugurou a sede do Teatro Brasileiro de Comédia (1948), no original francês , através de Henriette Morineau.

A concepção de José Lavigne replica , com inventiva sensibilidade , as indicações de Cocteau na sua sugestão de uma atriz que inspire charme, elegância e jovialidade mas que, mesmo assim, é desprezada pelo amante.

Esta  identificação, em Cláudia Ohana , é absoluta e ,assim,  sua presença se expande em cena. Sabendo valorizar  com intensidade, entre loquacidades e subentendidos, todos os contornos de seu personagem de ansiosa e sofrida  solidão.

O sóbrio requinte do figurino( Carla Garan), paralelo a  uma iluminação ( Felipe Lourenço) de claridades e cores, completa o belo impacto visual da arquitetura cenográfica(Edgar Duvivier) . Contrastando o onirismo do painel ao fundo com uma encenação de visível realismo.

O conciso texto que abre e fecha o espetáculo, interioriza a aparente simplicidade do núcleo dramatúrgico, na simbologia de um aparelho marcado pela  sua ancestralidade, de primitiva tecnologia .


Mas que, no seu diálogo com a voz humana se torna imune à passagem do tempo, na evocativa transmutação, pelos recursos da contemporaneidade virtual ,dos  eternos conflitos da incomunicabilidade dos amores perdidos.




A VOZ HUMANA está em cartaz no Teatro Clara Nunes, Gávea, sábado, às 19h;domingo, às 18h. 50 minutos. Até 20 de dezembro.

A SANTA JOANA DOS MATADOUROS:INVENTÁRIO TEATRAL DA LUTA DE CLASSES

FOTOS BY RICARDO BRAJTERMAN

Bertold Brecht, já nas suas primeiras criações teatrais, começa a afastar o conceito expressionista de que o homem/personagem encontra o seu significado na individualização heroica e abstrata de seu destino.

Afinal, em suas tramas dramatúrgicas, são as injunções sociais e econômicas que determinam a trajetória de seus protagonistas, num processo dialético com o fato histórico/ político.

Em A Santa Joana dos Matadouros ( 1930) esta reciprocidade cênico/filosófica vai longe ,conceitualizada pela ambiência   caótica da Alemanha pré-nazista.E transmutada na “Selva” ( no referencial ao romance do americano Upton Sinclair )dos matadouros de Chicago ,  numa concepção,inicialmente ,  de grandiloquência  operística.

Que, através da eficiente habilidade  técnica da  dramaturgia de  Diogo Liberano , concentra o elenco original de 40 integrantes em oito personagens,  numa apurada  adaptação  textual,  mantendo  a essência e a  integridade do pensamento teatral brechtiano.

Em sua falaz idealização missionária de que princípios religiosos e a caridade podem atenuar o opressivo status dos operários de Chicago diante dos patrões, Joana Dark (Luisa Arraes) ,a militante dos Boinas Pretas , assume um papel messiânico.    
                                                                                                
E confiante no  resgate pela palavra cristã, enfrenta a cínica indiferença do discurso capitalista dos mercadores de carne, Mauler( João Velho) e Slift( Leonardo Netto).

Mas sucumbe, fatalmente,  na impotência de seus argumentos evangélicos, incapazes de sustar a liberdade comprada dos miseráveis "obreiros" (Adassa Martins,Gunnar Borges, Leandro Santanna, Savio Moll e Vilma Melo).

A direção de arte (Bia Junqueira) é arrojada na simbológica singularidade de seus elementos cenográficos, ganchos de açougue, engradados, e um solo à base de camisetas, numa sutil  memorização da cruel indústria contemporânea das confecções  asiáticas .

Além da incisiva   provocação das luzes( Paulo Cesar Medeiros), quase faróis ,voltadas para os espectadores violando seu apático conforto por uma postura de reação.Incluidos os achados musicais ao vivo de (Arthur Braganti) ,nas  espontâneas  interferências do score sonoro com Rodrigo Marçal.

E intensificada, no exponencial comando , a quatro mãos( Diogo Liberano/Marina Vianna), acentuando na sua solidez estética, um teatro de  tensão , verdade e  denúncia.

Onde a ingênua piedade da protagonista contrapõe –se ao seu sofrido desalento diante dos irônicos desaforos do patronato brutal (João Velho/Leonardo Netto) . Completado,ainda, pelo domínio de uma convincente unidade interpretativa do elenco(Adassa Martins,Gunnar Borges,Leandro Santanna,Sávio Moll e Vilma Melo).

Configurando ,enfim ,um raro momento inventivo da arte de representar , de intensidade expressiva capaz de chegar à plateia  sabendo,antes de tudo,  como afastar do palco as emoções ilusionistas , no seu compartilhamento ideológico com Brecht:

“Nós os convidamos para que venham aos nossos teatros e lhes pedimos que não se esqueçam de suas ocupações, para que nos seja possível entregar o mundo e a nossa visão do mundo às suas mentes e aos seus corações, para que eles modifiquem o mundo a seu critério”.

A SANTA JOANA DOS MATADOUROS está em cartaz no Teatro Gláucio Gil, Copacabana, de quinta a segunda, 20h. 120 minutos. Até 21 de dezembro.

MARCO ZERO: NA ZONA CINZENTA DAS LIGAÇÕES AMOROSAS

FOTOS  BY DALTON VALÉRIO

Dividido entre o cinema, o teatro e a literatura, Neil LaBute é um dos nomes mais representativos da dramaturgia norte americana contemporânea, chegando perto do dimensionamento de David Mamet e Edward Albee.

E algumas de suas peças já são conhecidas do público brasileiro, especialmente pela  sua ácida abordagem dos relacionamentos humanos à luz dos conflitos e tragédias de nosso tempo.

Em Marco Zero, de 2002, ele reflete sobre o dia em que, diante das explosões do World Trade Center,  ao ser obrigado a trocar uma viagem área por um extenso percurso ferroviário, decidiu-se por uma abordagem dramatúrgica do fato terrorista, pelo viés das ligações amorosas.

Sua narrativa, de humor sarcástico e irônica crueldade, tendo como pano de fundo, a destruição material e humana naquele 11 de setembro, avança nos meandros da ética em confronto com uma postura de egoístico escape.

Quando Abby (Letícia Isnard)chega com uma sacola de compras , ao seu apartamento nas imediações do WTC , tem sua fala embargada pela tosse, com a poeira dos escombros , tornada visível também em suas roupas e na própria ambiência doméstica.

À frente  dela, em postura catatônica, seu funcionário e amante Ben(Tárik Puggina), ressalta sua indiferença ao acontecimento na recusa, inclusive, de atender aos chamados insistentes de um telefone.

Ele prefere usar aquele desastre ,afetando possíveis amigos e vizinhos, como um passaporte sem identificação, para o fim de todas as suas responsabilidades, escondendo-se no anonimato dos desaparecidos. No propósito de deixar de lado a esposa e as filhas distantes, desfazendo- se de tudo para começar do "marco zero".

Numa iluminação ( Paulo Cesar Medeiros), crua e sonhadora ao mesmo tempo,  as brumas de uma impactante arquitetura cenográfica(Aurora dos Campos), de uso imaginoso na transparência de uma cortina.

Com recatados figurinos (Flávio Souza) e nas sutis interferências sonoras  de reportagens televisivas e incidências musicais ( Rodrigo Lima).Na acentuação absoluta de um décor de exponencial  teatralidade .

Onde a inquieta atuação, de energia  fulgurante e extrema loquacidade, na personificação de Abby em  Letícia Isnard, marca o contraponto da performance, de convincente vulnerabilidade psicológica e rudeza de caráter, transubstanciadas no Ben de  Tárik Puggina.

A habitual insubmissão  do comando de  Ivan Sugahara ,  ao convencionalismo cênico, exacerba  o desenho das contravenções, reais e delirantes , de um caótico relacionamento sob ameaça de demolidor atentado. Contando , aqui, com o olhar armado da co-direção de Simone Beghinni.

Capaz, enfim, de estabelecer uma provocante  conexão emocional  com o perceptível embrutecimento  da condição humana na sua postura egocêntrica de que, diante  de qualquer catástrofe, o que importa o outro, quando é mais fácil se salvar sozinho.


MARCO ZERO está em cartaz na Caixa Cultural, Centro/RJ, de terça a domingo,19h.
Sessões extras nos sábados, 12 e 19, às 17h. 75 minutos.Até 20 de dezembro.

MENINO MALUQUINHO :TRAVESSURAS OPERÍSTICAS


FOTOS BY RENATO MANGOLIN
A criação operística voltada exclusivamente para crianças tem um exemplo clássico em Hänsel e Gretel (1893), de E. Humperdinck, inspirando-se no célebre conto dos Irmãos Grimm.

No Brasil, houve  incursões singulares, como as de Villa Lobos com “A Menina das Nuvens” , a partir de um argumento de Lúcia Benedetti e Francisco Mignone com ”Godó ,O Bobo Alegre”, texto de  Pedro Bloch.

Além da ópera   O Menino Maluquinho ,composição de Ernani Aguiar, com libreto de Maria Gessy de Salles e do autor do livro, Ziraldo que, só agora,  volta à cena, depois de sua estreia em Juiz de Fora(2003).

Na presente concepção, dentro da Temporada Oficial do Theatro Municipal, a regência da Orquestra Sinfônica da UFRJ, é de Roberto Duarte e a direção teatral é de Sura Berditchevsky. Tendo , ainda, a Associação de Canto Coral e o Coral Infantil da UFRJ, respectivamente sob seus regentes titulares, Jésus Figueiredo e Maria José Chevitarese.

Com sua marca simbológica de uma panela servindo de chapéu, o personagem protagonista vive um mundo de traquinagens, na ambiência doméstica e escolar, nas brincadeiras, no futebol, nos sonhos e  nos ingênuos flertes amorosos, até se descobrir crescido .

Numa conjunção perfeita da trama dramatúrgica, sustentada pela maestria de um libreto de poética ironia(Maria Gessy) , longe da previsível puerilidade do tema,  com uma sensível  partitura (Ernani Aguiar). De harmonias tonais e acordes melodiosos, acentuados pela segurança da conduta orquestral de Roberto Duarte.

Ao lado do componente emotivo, realidade e memória, sugestionado pela invenção cênica( Daniela Thomas/Camila Schmidt),pela adequação da gestualidade(Renato Vieira), pelo desenho dos figurinos(Pedro Sayad) e luzes ( Jorginho de Carvalho).  

A reveladora espontaneidade interpretativa e afinação vocal do já experiente  Tiê Kuhl( Menino Maluquinho), não desmerece a convincente  atuação de seus sopraninos coadjuvantes, nos personagens Bocão(Paulo Vinicius Pantaleão) e Julieta(Isabele Lopes ).

Incluindo ,é claro, as vozes  de um coeso elenco de cantores já profissionalizados(Guilherme Moreira,Vivian Delfini,Lily Driaze, Fabrício Claussen, Geilson Santos, Luisa Suarez,Mariana Gomes,Beatriz Simões) . Com destaque,   para as nuances líricas da soprano Flávia Fernandes(Mãe) e o alcance e clareza vocal do barítono Marcelo Coutinho , especialmente nas árias do Tempo.

O tato  de uma perfeccionista  em teatro infantil ( Sura Berditchewsky) sintetiza, em tons precisos, os caracteres psicológicos e comportamentais da autentica dramatização de  cenas da infância. 

Memorização, sutilezas motoras e linguísticas, socialização e muita criatividade, num espetáculo para todos os gostos e idades.


MENINO MALUQUINHO A ÓPERA está em cartaz no Theatro Municipal, RJ, quinta e sexta,20h;sábado,17h;domingo,11h30m e 17h. Até 13 de dezembro.

COMPANHIA URBANA DE DANÇA: O RESGATE SOCIAL PELA ARTE

Fotos by Vássia Tolstoi


Através do movimento de danças urbanas   acontece, num visível crescendo,  um fato deveras marcante por sua representatividade  social.  O possível e  simbológico resgate, pelo ato criador,  das formas de exclusão de classes e  rejeição racial. E de reação à violência, implícita e exteriorizada, das favelas, comunidades e periferias.

 Extraordinário processo de assimilação da herança  afro/brasileira e norte americana, num mix inventivo da ancestralidade negra -   samba ,capoeira, break, soul ,house,  funk, hip hop, rap

E na convergência de grafiteiros , djs, dançarinos, estabelecendo, assim,  uma autóctone estética de cultura urbana/popular. Manifestação midiática, com prevalência nas redes virtuais e de superlativo apelo entre os mais jovens. 

Tendência inicializada , no panorama coreográfico, com os grupos de street dance paulistas, desde o  histórico Grupo de Rua de Santos,  de Marcelo Cirino, no despontar dos anos 90.

Mas que tem sua versão carioca, num aprofundamento das ligações entre a dança urbana com a coreografia contemporânea, na Companhia Urbana de Dança, criada e dirigida , há dez anos, pela coreógrafa Sônia Destri Lie.

Na vasta experiência de sua  sólida formação, da base acadêmica com Tatiana Leskova às linguagens jazzísticas e da contemporaneidade, indo de Lennie Dale e Marly Tavares, a Pina Bausch, Alvin Nikolais e Twyla Tharp.

Projeto Os 2 Atos ,o espetáculo comemorativo dos dez anos de atuação da CUD ,traz duas criações inéditas –O Agora É Passageiro e Dança de 9. E, mais uma vez, a enérgica presença cênica deste  coeso e revelador elenco – Allan Wagner,André Virgílio, Jessica Nascimento,Johnny Brito,Júlio Rocha,Miguel Fernandes, Rafael Balbino e Tiago Souza.

Sob o feeling das pulsantes modulações rítmicas da trilha de Rodrigo Marçal e nas luzes entre sombras de Renato Machado, a desenvoltura de uma expressiva pesquisa corporal, de irrepreensível performance.

Por   suas  gestualidades circulares, em  agressivos e sincopados  contatos físicos com o solo ou entre corpos .  Na impulsividade espontânea da  soltura de braços e pernas arqueadas ,  em   contrações musculares, como  ondas,  de  propositais marcações repetitivas.

Quebradas ora pela liberdade de improvisos surpreendentes, ora  pela ruptura contrastante do acelerado ritmo por  pausas sonoras , de apurado senso plástico.

Onde  a criação coreográfica tem seu referencial na transitoriedade da vida e na batalha pelo desejo   de superação das inquietudes  de uma juventude,  em estado de guerra.

E no vitorioso resultado artístico  deste  autentico , exponencial e emotivo substrato sociológico  do universo de marginalização ali representado.


A COMPANHIA URBANA DE DANÇA está em cartaz no Teatro de Arena do Espaço Sesc/Copacabana, quinta a sábado, 20h30m;domingo, às 19h. Até 20 de dezembro.

INÚTIL A CHUVA: LUMINOSA CENA PICTÓRICA

FOTOS BY MAURO KURY

No delineamento das relações entre a música e as artes cênicas e visuais,  o mais referencial resultado é,certamente,  a obra descritiva de Modest Mussorgsky – Quadros de Uma Exposição . Composição em que  ele  traça um retrato afetivo de um artista russo Victor Alexandrovitch Hartmann, através de dez quadros pianísticos, após sua súbita e precoce  morte, em 1874.

E é , ainda,  nesta trilha formalista , o rastro multifacetado  do  compositor  John Cage quando diz:  “Tudo o que fazemos é música... Há teatro todo o tempo, onde estejamos. E a arte  não faz senão ajudar a nos persuadir  disto”.

Neste  elo singular de confronto de  linguagens criadoras,  em Inútil a Chuva, a dramaturgia de Paulo de Moraes e Jopa Moraes, impulsiona, sonoro/visualmente,    o auto-retrato,  também,   de um pintor.  De intrigante ausência, após uma carta de despedida,legando um inquisitivo eco familiar– suicídio ou morte acidental?

E a narrativa textual recria, assim, cenicamente , oito de seus quadros , numa inspirada transposição tela/palco, em que as passagens plásticas se confundem com a trajetória dos personagens .

Como a viúva Lotta(Patrícia Selonk)e  seus três filhos – Slavoj(Leonardo Hinckel), Claude (  Tomás Braune) e Sarah(Andressa Lameu)  ,desde a inicial e  simbológica figuração de um barco nas torrentes de um rio. Nas translúcidas  cores das taças de um baile  ou no muralismo de uma janela envidraçada.

Além das interferências de uma jornalista Vivian ( Amanda Mirasci) que ,na sua  investigativa  escrita sobre o misterioso caso, encontra o matemático e conhecedor do morto,  Matthias( Marcos Martins).

Esta configuração teatral / pictórica se transforma numa pintura viva , em  contrastantes paisagens cênicas  que visualmente remetem a quadros específicos de uma vernissage, capazes de estimulantes sensações, como  os acordes de Mussorgsky.

Ora através da ressonância do score musical ao vivo(Ricco Viana/Rafael Tavares), ora nos estados de espírito provocados pelas sutilezas luminárias (Maneco Quinderé).  Ou no pincelamento dos figurinos (Rita Murtinho) e no impacto aquarelado da arquitetura cenográfica(Paulo de Moraes/Carla Berri).

Embora o  enredo dramatúrgico torne-se , às vezes, abstrato e irregular   diante da prevalente  virtualidade plástica e  de um  discurso acentuadamente  fragmentário , em torno deste núcleo familiar metaforicamente caotizado .

Ainda que os caracteres de personalização sejam bem delineados na convicção matriarcal de Lotta, nas incertezas    de Slavoj, nas provocações de Claude e Sarah, nas dúvidas  de Vivian , na espontaneidade de Matthias.

Mas onde  ,mesmo com este visível confronto entre o teor dramático e a imanente estética visual,  está presente a habitual contundência  e  não faltam as rédeas firmes de Paulo de Moraes , reiterando a permanência transcendente   da Armazém Cia de Teatro.


 INÚTIL A CHUVA está em cartaz na Fundição Progresso, Lapa/RJ, de quinta a domingo, às 20 h. Até 20 de dezembro.


A FLORESTA QUE ANDA: UMA TRANSGRESSÃO CÊNICA


FOTOS BY ALINE MACEDO


Até onde podem chegar  ou não haveria  delimitações na cena teatral, em   sua  contextualização com outras linguagens artísticas ?

Esta postura ritualística,  ao confundir o teatro com o happening , a “live art” e a performance  seria, então,  o que John Cage idealiza como a forma mais autêntica  de encontro entre a criação artística e a vida ,  em  “eventos teatrais espontâneos e sem trama”.

Continuando, assim, todo um desbravamento iniciado entre o dadaísmo e as teorizações defendidas por Antonin Artaud ,singularmente expostas   nas páginas de  “O Teatro e Seu Duplo”.

A dramaturgia de Christiane Jatahy ,em A Floresta Que Anda,tem como elo inspirador a tragédia Macbeth de Shakespeare, utilizando um mix de elementos plásticos/teatrais/cinematográficos.

 Marcada pela sanguinolência, em  nome do egoísmo ambicioso do personagem título, até a derrota da tirania por  um exército disfarçado em árvores, a proposta promove a inserção  da contemporaneidade política à trama original.

No teor  formalista de uma  vernissage ,  o público penetra num espaço de cenografia( Marcelo Lipiani) não configurada, onde encontra simultâneas exibições fílmicas autorais( Jatahay/Paulo Camacho)  ,de manifestações populares, ocupações públicas, depoimentos  de imigrantes e favelados. Ao lado da perplexidade de objetos realistas ,  como um peixe morto em decomposição.

Ao mesmo tempo, drinks são servidos em um balcão e a iluminação( Camacho) é apenas sugerida entre sombras. Enquanto  surgem intervenções, apenas  delineadas na obscuridade, ora com integrantes da equipe de criação,ora  através  das adesões de espectadores, além da atuação da única atriz Júlia Bernat,  trajada rigorosamente de negro (Fause Haten).

Na sequencia, de alusivo significado  ao título da peça, as telas se movem alternativamente, na inclusão de fragmentos, textualizados imagèticamente, do Macbeth original. A performance feminina solo(Júlia Bernat) faz, aí,  um mix referencial de posturas , entre o gestualismo coloquial e um  instantâneo  referencial pinabauschiano de dança/teatro.

Mas, ao contrário da absoluta clareza inventiva na apropriação anterior de Strindberg( Senhorita Júlia) e de Tchekov ( As Três Irmãs) em  Se Elas Fossem Para Moscou , aqui o paralelismo  de linguagens artísticas acaba desprivilegiando o elemento teatral.  Numa metalinguagem cênica , onde o contraponto visual/cinematográfico tem sua visível prevalência.

Fator que acaba não desqualificando a integralidade simbológica da concepção que, na verdade, é sem delimitações no seu experimentalismo multimídia ,ainda que revele um traço hermético  em sua transgressividade.

Teatro, cinema , artes visuais,instalação, performance, verdade, ficção? Pouco importa, quando seu grande salto criador pode estar na intervenção contestadora do espaço cênico convencional e  na reflexiva e inquietante constatação de " um conceito que se contesta a si mesmo ".





(A FLORESTA QUE ANDA está em cartaz no Espaço Sesc, Copacabana, de terça a sábado, 21h; domingo, 20h. Até 29 de novembro)

AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA: SENSÍVEL TEATRO DO EU

FOTOS BY MAURO KURY

Existiria  um conflito conceitual entre o que se poderia chamar de teatro autobiográfico e o significado do  personagem teatral ?

Quando o ator-autor expõe a si mesmo como auto-performance-biográfica não desapareceria o sentido convencional do intérprete/personagem?

Este viés realista e documental não teria , por si só, um caráter confessional quase às portas de um depoimento, seja literário ou jornalístico, ao vivo?

Estas considerações aparecem em torno  da proposta teatral de Paulo Betti,  com seu espetáculo solo “Autobiografia Autorizada” que, usando de irônico humor, ainda  provoca, na  titulação da peça,  a polêmica questão da censura às narrativas biográficas.

De qualquer maneira, enquanto o texto e atuação são da lavra de Betti, a direção é dividida a quatro mãos, com Rafael Ponzi , num convicto e tocante  espetáculo de temática existencial.

Contando  com uma verdadeira pintura cênica na poética concepção de Mana Bernardes, sugerida nas  velhas folhas de papel amassado com projeções filigranadas de Marlus Araujo.

E, acentuado, ainda, pelas sutilezas ambientais da iluminação de Dani Sanchez e Luís Paulo Nenem. Com destaque pela adequação de matizes pastéis do  figurino (Leticia Ponzi) e da envolvência nostálgica das incidências musicais (Pedro Bernardes).

Este mergulho nas lembranças da fase, infância e adolescência,  pobre e difícil  de/e  por Paulo Betti é capaz, no tempo da memória, de atributos expressivos certamente mais belos e incisivos que o realismo original  do tempo passado.

Na manhã da vida marcada pelo relógio familiar ,em companhia de uma prole imensa de quinze irmãos( dos quais Betti foi o último rebento),pais e avós, numa desafiante e dura realidade de imigrantes italianos na ambiência rural paulistana( Rafard e Sorocaba).

Anos de risadas e queixumes, alegrias e dores, crenças religiosas e superstições, de temores e de libertária força diante do difícil suporte da condição humana.

Marcados pela ancestralidade de uma época de adversidade material  mas recheada das surpresas afetivas, tanto na primitiva matança de porcos como nas escutas radiofônicas , em meio à ingênua diversão de piões ou  das descobertas  eróticas com Carlos Zéfiro.

Inteiramente tomado pelo personagem de si mesmo, com entonação lírica , ora  entre meios tons ,ora em  entusiásticas  vocalizações , Betti assume a postura alegre,  naturalista e coloquial,  dos velhos  contadores de história.

E neste desnudamento testemunhal de episódios biográficos, na tríplice demanda -autor/ator/diretor -  vai confundindo sua trajetória com a da criação, jogando com a identidade real e ficcional.

Num impulso estético/filosófico  que une vida  e arte, poesia e verdade, neste teatro de espelhos  pirandelliano,  onde cada espectador  acaba, enfim,  refletindo  sobre seu próprio eu.


(AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA está em, cartaz na Casa da Gávea, sexta e sábado, 21h;domingo, 20h. 120 minutos. Até 13 de dezembro.)

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