Pá de Cal, de Jô Bilac com direção de Paulo Verligs. Teatro II, CCBB. Novembro de 2021. Foto/Antônio Fernandes. |
Foi conturbada a estreia, há quase dois anos, da última peça de Jô Bilac – titulada de Pá de Cal, incluída uma subliminar
nominação de Ray-Lux, por intermédio de
uma luxuosa urna para cinzas funerárias. Tendo, por inesperadas circunstancias,
a triste obrigatoriedade de sair de cena, após poucas representações, diante do voraz
surto pandêmico.
E que, emblematicamente, ao tratar de morte por suicídio,
acabou carregando em si um referencial de tragédia e de luto que afetaria um núcleo
familiar em processo quase especular, numa destas oportunas coincidências, com
a vertiginosa perda sequencial de vidas e de devastação do convívio doméstico
pela Covid 19.
O processo da inspiração dramatúrgica tem seu diferencial na
forma de reunir dois parâmetros textuais no seu enfoque dos conflitos
familiares. De um lado o sotaque rodrigueano,
com sua habitual crueza realista, tão presencial na obra de Jô Bilac e, de
outro, a utilização do psicodrama através da chamada “constelação familiar”, polemico método do psicoterapeuta e teórico alemão Bert Hellinger.
Aqui todos os personagens são terceirizados, com exceção do
pai (assumido no envolvente jogo performático de Isaac Bernat) do jovem morto,
gerando uma espécie de identificação entre cada representado e o seu representante,
extensivo inclusive ao status do defunto na urna Ray-Lux.
Carolina Pismel e Isaac Bernat em Pá de Cal. Teatro II/CCBB. Novembro/2021.Foto/Paula Kossatz |
Com os outros quatro atores dividindo-se, no entremeio de
doses de tragédia e humor, em unitário empenho pela prevalência de uma boa representatividade.
O que, na dependência da perceptível força de seus personagens, possibilita uma
maior empatia na dúplice atuação de Carolina Pismel e Orlando Caldeira.
Não deixando de serem significativas, embora em menor grau, as
interferências mais uniformes do advogado portador de nanismo (Pedro Henrique França) e da estrangeira de pele escura (Kênia Bárbara) com verbalização à francesa, sob projeção de legendas traduzidas em
português.
O naturalismo eficaz da arquitetura cênica (Mina Quental) em
três planos, reproduz a residência patriarcal onde o quinteto de
atores/personagens se encontra não só para o enfrentamento de conflitos familiares
mas também para questionar intrincados aspectos jurídico/patrimoniais.
Chamando atenção a
especificidade simbológica de um espaço/instalação funerária cercado por flores, emoldurando a urna dourada postada sobre uma
mesa. Onde, ora por luzes vazadas ora em tonalidades aquarelais, os efeitos luminares
(Ana Luzia Molinari de Simoni) potencializam uma ambiência psico/emotiva.
Ampliada pelo acerto discricionário
da indumentária (Karen Brustolin) e
pelas incidências sonoras, entre acordes e silêncios, da lavra de Rodrigo
Marçal e João Melo da Costa, contando ainda com uma mais comportada direção de
movimento (Toni Rodrigues).
O ideário deste espetáculo, comemorativos dos 15 anos da Cia Teatro Independente e de onde
surgiram alguns dos mais significativos textos de Jô Bilac, reuniu o acerto direcional de Paulo Verlings, que se manifesta
também no sugestionamento temático, favorável ao delineamento de mais uma propícia
incursão dramatúrgica do premiado e prolífico autor carioca.
Havendo que se ressaltar um substrato concepcional que
remete, na generalidade de sua abordagem critica, à narrativa em torno de uma
descida ao inferno familiar, remetendo à lembrança do que já dizia Nelson
Rodrigues, parodiando ironicamente o mote sartreano
com uma ácida reflexão : “a família é
o inferno de todos nós”...
Wagner Corrêa de Araújo