VINTE - FOCUS CIA DE DANÇA. Novembro de 2021. Fotos / Manu Tasca |
“Óbvio, supervisível, invisível
a olho nu, perfeito, branco, esquivo, certo, projétil parado, coisa suspensa,
exteriorização, dom”... Estas são algumas das enunciações de Clarice Lispector para o ovo, tema
de um de seus mais emblemáticos escritos.
E que, como um pequeno elemento cênico real centralizado à
beira do proscênio, torna-se um enigmático signo psicofísico, com subliminar entendimento
para o conceitual estético do espetáculo Vinte,
da Focus Cia de Dança.
Com simbólica proposta criativa no seu intuito dúplice de
homenagear o centenário de Clarice e as duas décadas da celebrada Cia, sob a ininterrupta pulsão
inventiva de seu idealizador, coreógrafo e diretor artístico Alex Neoral.
Imbatível por sua resistência em tempos tão difíceis para a
cultura brasileira, não só por um surto pandêmico que provocou um choque na
continuidade de quaisquer projetos artísticos e mais ainda pelo perceptível descaso como
é conduzida a política oficial de incentivo ao setor.
Como já tinha ressaltado em críticas anteriores sobre
diversas e memoráveis incursões cênicas clariceanas, tanto coreográficas,
musicais e teatrais, a complexa interiorização do universo de Clarice Lispector
se manifesta no reinventar a presença dramatúrgica da escritora, dividindo o
seu “estar só”, na visível escuta de
seu silêncio pelo outro, além do palco.
Focus Cia de Dança - Vinte . Coreografia de Alex Neoral. Novembro/2021.Foto/Manu Tasca |
O que se torna, sempre com densidade emotiva e apuro técnico coreográfico,
de imediata apreensão pelo acertado empenho de Alex Neoral e sua incrível trupe
de bailarinos (Carolina de Sá, Cosme Gregory, Isaías Estevam, José Villaça,
Marina Teixeira, Monise Marques, Roberta Bussoni e Vitor Hamamoto).
Num uníssono corpo-linguagem, transitando sob uma realidade
delirante de palavras transcritas em gestos, entre descobertas e afetos, ora
por movimentos plenos de fluidez ora por uma energizada e impactante conexão de corpos soltos no espaço.
Em incisivo “mergulho
na matéria da palavra” pelo olhar de Clarice, transmutado num corpo-verbal dançando e se movendo no processo (coreo)investigativo
da corporeidade exponencial destes oito bailarinos.
Delineando um retrato sensorial, plástico-poético, sustentado
em inquietos e dolorosos sentimentos para reafirmar especialmente os embates do
feminino numa sociedade marcada pelo conservadorismo dos anos 40 e 50.
Extensivo a uma indumentária (Roberta Bussoni) com referencial de época, especialmente nos figurinos das quatro Clarices - saias largas estampadas com bolinhas alterativas com
malhas, corpetes e pantalonas, sob uma ótica mais atemporal, ao lado da prevalência,
no elenco masculino, de torsos nus.
Inseridos em visceral paisagem cenográfica (Natalia Lana) inicializada
por 400 ovos móveis e sequenciada por uma bolha plástica gigante que vai isolando os
bailarinos numa caverna/respiradouro com remissão metafórica à trágica
sufocação do vírus pandêmico.
“Um instante me leva
insensivelmente a outro e o tema atemático
vai se desenrolando em um plano geométrico como as figuras de um caleidoscópio”.
Para complementar a singular e mágica inserção em um mundo
de mistérios, questionamentos e perguntas sem resposta, efeitos luminares
(Renato Machado) imagéticos se somatizam às sutilezas da ambiência atmosférica. No entremeio
de climas sonoros propiciados pelo score
musical, na eficaz parceria autoral de Felipe Habib e Plinio Profeta.
Que estabelece um percurso de texturas musicais transitando
passagens líricas no piano, violão e acordeom, desde a envolvência dos acordes de um
inspirado leitmotiv a ressonâncias percussivas com sotaques de brasilidade e de guitarras roqueiras. Com
o melancolizado interregno no uso da gravação de Enrico Caruso (1904) para Una Furtiva
Lacrima “que fora a única coisa belíssima na vida de Macabéa”.
Em Vinte, “dançar é como desenhar uma linha na tela”(Kazuo Ohno) num encontro especular
entre a fisicalidade coreográfica e a obra interiorizada de Clarice. Onde a palavra
verbalizada só aparece sugerida em fragmentos ficcionais entrecortados pela
vocalização das bailarinas e pela voz em off da atriz Lucinha Lins.
E neste desafio do indizível, do não entendimento ou da livre
compreensão, ouça, veja ou leia Clarice: “Estou
tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto
tenro e nevrálgico da palavra”(...)Não se compreende música. Ouve-se. Ouve-me
então com teu corpo inteiro”...
Wagner Corrêa de Araújo
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