SALINA:MÁGICO TEATRO DA ANCESTRALIDADE


FOTOS/DANIEL BARBOSA

Um convite a uma viagem mimética de vivências ancestrais, com ecos nos dilaceramentos civilizatórios do século XXI .

Este é o contagiante experimento que , em incrível coesão, vivem atores e espectadores no transcendente rito do teatro total de Salina – A Última Vértebra , mais uma das surpreendentes criações da Cia. Amok.

De autoria do premiado escritor e dramaturgo Laurent Gaudé, a peça , através da trajetória de amor e ódio , vingança e perdão da personagem/título , estabelece um painel dialético entre forças míticas,num clima milenar de tragicidade grega.

Nela o sagrado evoca também o carnal, numa ambiência étnica ,ora da aldeia com seus opressivos costumes morais ora das manifestações da natureza ,das águas tranquilas de um rio à aridez de um deserto.

Bodas impostas trazendo filhos não desejados , com sentimentos de revolta e humilhação, transmutados em ira e repulsa.

Que atingem as gerações seguintes, na remissão de ofensas ,em duelos de guerreiros da mesma genealogia .

E em cenas de belíssima construção épica que , às vezes ,remetem aos samurais de Kurosawa.

No elenco de atores predominantemente negros, há um tal equilíbrio expressivo de performances , tornando difícil a individualização de destaques.

Desde Ariane Hime (Salina), Luciana Lopes ( Mama Lita), André Lemos(Saro Djimba),Thiago Catarino( Kano) e , ainda, Sergio Ricardo Loureiro, Tatiana Tibúrcio, Graciana Valladares, Sol Miranda, Reinaldo Júnior e Robson Freire,todos com um notável brilho próprio.

A movimentação gestual(Tatiana Tibúrcio) gera um rico fraseado de coreografias de base étnica afro-brasileira, das rodas de candomblé ao congado, acentuado pelo especial desenho das luzes ( Renato Machado).

A enérgica música ao vivo( Fábio Simões Soares) ,na originalidade sonora de cerimoniais cantares e instrumental típico,estabelece o clima ideal de transe , transubstanciado no estilístico figurino e na sugestão de elementos cênicos regionais(em feliz concepção dos diretores).

Enfim, este sequencial processo criativo entre o mítico e o ritual atinge ,no comando de Ana Teixeira/Stéphane Brodt ,o componente estético ideal, fazendo de Salina um fenômeno raro de prestidigitação cênico/poética.

Capaz, diante do confronto dos seus caracteres de fatalidade, a partir de um grito contra a submissão , de conduzir à reflexão pela catarse da tragédia,pois se aí, segundo Nietzsche,

“O escravo se torna livre, então rompem-se todas as barreiras rígidas e hostis que a miséria, o arbítrio e a moda insolente criaram entre os homens”.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


SALINA está de volta ao cartaz, na Caixa Cultural /Centro/RJ,  quinta e sexta 19 h; sábado e domingo, às 18h. 220 minutos,com intervalo de 15m. Até 30 de julho.

JANIS: UM APAIXONADO TRIBUTO À REBELDIA


FOTOS/MANUELA ABDALA

“Algum dia eu ainda irei compor uma música que explique o que é fazer amor com 25.000 pessoas durante um show e depois voltar para casa sózinha".

E foi o psicodelismo , entre cores sanguíneas , sonoridades gritantes e incensos viajantes, apenas o apanágio a ocultar as dolorosas contradições afetivo/comportamentais que marcaram a trajetória existencial  de Janis Joplin.

Desde os conservadorismos familiares e o preconceituoso olhar da provinciana comunidade texana de Port Arthur,contra os quais o espirito juvenil da adolescente ousou desafiar com sua rebeldia hippie.  Assumida, mais incisivamente,  na sua partida para a San Francisco, paraíso citadino de paz e amor, sexo, drogas e rock’n’roll , onde se midiatizou como uma potencializada blues/rock star.

Sua breve incursão artístico/vivencial, interrompida por uma over dose aos 27 anos, tem sido tema recorrente nas telas e nos palcos, desde o registro documentário de Howard Alk (1974) ao recente de Amy Berg(2016), passando pelo disfarce biográfico no filme The Rose,1979,de Mark Rydell.

E tem, agora, com Janis, uma diferencial versão no formato de pocket teatro musical , com roteiro dramatúrgico de Diogo Liberano, direção de Sergio Módena e performance solo da atriz/cantora Carol Fazu.

Numa bem urdida  narrativa autoral(Diogo Liberano),  fragmentária e fugindo do cronológico, através de recortes memorialísticos de Joplin, dos seus escritos confessionais e epistolares a  entrevistas e  citações opinativas / ficcionais.

Retomados numa linguagem atemporal, num fluxo tete a tete,  redivivo da personagem(Janis Joplin) e da protagonista titular (Carol Fazu) com o público, entremeada com alguns de seus maiores hits. Ressaltando, na envolvente concepção diretorial de Sérgio Módena, uma gramática cênica de nítidos contrastes reflexivos entre adrenalina e vulnerabilidade, crueza e sensitividade, verismo  e delírio, poesia e tragédia.

Aqui a possibilidade de veraz  identificação física com a personalidade original é o que menos importa diante do impacto contagiante/ritualístico da representação, no compasso de um clímax flashback da contracultura anos 60/70  e na cumplicidade singular de espectadores de  mediana idade em diante.

Num tributo teatral woman show, com direito inclusive a uma individualística tessitura vocal em rascante rouquidão  aproximativa de Joplin. Sintonizada por simbólicos figurinos, remissivos aos anos dourados  e ao  aroma  de patchouli,  e a cenografia psicodelizada (em dúplice criação de Marcelo Marques) e energizada   pelas modulações  luminares  de Fernanda e Tiago Mantovani.

E que se faz mais completo ainda com a excelência espiralizada das passagens cênico/solistas do guitarrista  Arthur Martau, ao lado de  uma banda de craques (Antônio Van Hahn, Eduardo Rorato, Gilson Freitas, Marcelo Muller) sob arranjos regenciais de Ricco Viana.

Onde prevalecem, enfim,  a visceralidade vocal/presencial de Carol Fazu no pulsionamento  de  um hedonismo, estético e sensorial, palco/plateia e a grande e grata surpresa de sua revelação.

Como se metaforizasse,  ora  um anjo enunciador de primal alegria  extasíaca , ora um patético demônio  encharcado em álcool e drogas, direcionando o prazer orgiástico e o sofrimento laminar  de um ícone musical dramatizado.

                                                   Wagner Corrêa de Araújo



JANIS está em cartaz no Oi Futuro Flamengo, de quinta a domingo, às 20h. 80 minutos. Até 16 de julho.

AS BONDOSAS : SOB PRANTOS RISÍVEIS


FOTOS/JANDERSON PIRES

"Apressem-se e levantem sobre nós o seu lamento, para que nossos olhos se desfaçam em lágrimas e as nossas pálpebras destilem água".

Da ancestralidade bíblica ao contexto da cultura popular nordestina, por lá passam as profissionais do luto, as carpideiras, pagas para chorar pela morte alheia.

Figuras milenares, atravessaram gerações e povos diversos. Hoje sobrevivem quase como personagens pitorescos capazes de conduzir a inspirados enfoques musicais( a “Procissão das Carpideiras, de Lindembergue Cardoso) e poéticos, como a literatura dos cantadores e cordelistas.

Ou ainda no teatro, com exemplos da envolvência criativa de Newton Moreno na peça As Centenárias ou, em data mais recente, As Bondosas, de Ueliton Rocon, esta última com a Cia SOS de Teatro Investigativo, sob o competente comando de Tom Pires.

Três carpideiras, assumidas aqui por protagonistas masculinos, a saber Prudencia (Sidcley Batista), Angústia( Gerson Lobo) e Astúcia(Tom Pires) pranteam o velório da jovem filha de uma família ,aparentemente, de boas posses.

Contratadas para se fingirem de tristes, expõem ligações afetivas tais como se fossem lídimas integrantes da intimidade e dos laços familiares da morta.

Com seus terços , rezam credos e cantam benditos em forma de incelenças, portando solenes figurinos(Leandro Mariz), mais próximos da atemporalidade, ao realçar uma profissão com sotaque de antiguidade.

Tudo numa cenografia minimalista( Sidcley Batista) que acentua o jogo dramatúrgico através de precisas caixas de madeira, como um catafalco em permanente mobilidade.

E ,ainda, por intermédio das acertadas interferências musicais(Tom Pires) e uma luz entre sombras(Eduardo Salino), que enfatizam o irônico gestual de ritualidade em torno da defunta.

A superlativa performance do elenco induz à própria qualificação cênica destes quase personagens da vida real que são, por si só, carregados de teatralidade pela sua função de mascarar a hipocrisia social das lamúrias pagas.

E num dinâmico crescendo, demonstrativo da sensível urdidura da direção , a peça promove uma devassa tragicômica das falácias humanas, entre a mediocridade do mal falatório, a pequenez do ciúme e a amarga nudez da sexualidade reprimida.

Levando,enfim, a plateia a um reflexivo estado de comicidade. Mas de postura brechtiana, diante do riso nascido das lágrimas compradas:


"Finge que está profundamente triste, põe vestido de luto, não te unjas de óleo e sê como uma mulher que está de luto por algum morto".

                                              Wagner Corrêa de Araújo


AS BONDOSAS está de volta ao cartaz na Casa de Baco/Lapa, nas segundas feiras, às 19h30m. 60 minutos. Até 31 de julho.

ALAIR:ESTÉTICA E EROTICIDADE NO DESNUDAMENTO DO MASCULINO

FOTOS/ELISA MENDES

A jornada fotográfica do nu masculino inicializou-se a partir de 1850, com o pioneirismo corajoso de Eugène Durieu na transmutação idealizada , em viva carnalidade, de míticos “orfeus”,”narcisos” e “dionísios”. E, no século XX, retomada nos efebos “greco/romanos” de Wilhelm von Gloeden, passando pelos corpos fascistas de Arno Brecker, até a crua  virilidade em Mapplethorpe ou na corporeidade homoerótica com Pierre et Gilles.

Tornando-se o mais celebrado brasileiro nesta pegada, o teórico, critico de arte e fotógrafo Alair Gomes. Que,  num quase  referencial irônico do confronto estético de Umberto Eco entre a beleza e a feiura , com o olhar  armado de sua câmera, inventariou a fisicalidade ,de atlético sensorialismo, dos garotões da praia de Ipanema. 

Enquanto, com  seu porte físico tacanho e envelhecido , seus cabelos raros e desgrenhados e  seus óculos  fundo de garrafa, numa quase personificação de matemático ou  cientista louco, era o paradigma oposto ao que buscava .

Da sua janela frontal, em  panorâmica beira mar ipanemense, furtivamente clicava flashes instantâneos, transmutados em ensaios pictóricos  e publicações, angariando fama em prestigiosas instituições culturais além fronteiras.

E na não resistência, enfim expondo seu instinto autoral, no irresistível apelo deste Olimpo carioca, arrastando  a domicílio seus protótipos, surfistas e malhadores. Muito além das pulsões deste imaginário artístico, para sessões intimistas , carregadas de promessas profissionais, trocando arte , sexo e dinheiro.

E é nesse clima com sutis nuances gideanas, genetianas e fassbinderianas, mesmo entre naturais e inescapáveis estereótipos do universo homoerótico, que Alair perfaz sua diferencial incursão  dramatúrgica .

Com sua apurada textualidade (Gustavo Pinheiro) e no duelo da tríptica performance, entre os maneirismos da  maturidade (Edwin Luisi) e a revelação ascensional (André Rosa/Raphael Sander), sob o seguro comando mor de Cesar  Augusto.

Que, numa manipulação visceral  , confronta  o teor apolíneo/dionisíaco, ora na exposição plástica do perfeccionismo físico dos jovens atores, ora nos aportes orgiásticos de suas relações afetivas , entre o interesse fugaz e o risco assassino.

Estabelecendo pontes atemporais do lastro escultórico greco, romano, renascentista e barroco com a corporeidade contemporânea, através da rica narrativa memorialística de Alair Gomes.

E, num veemente mergulho de Edwin Luisi, no protagonismo  titular , em tom confessional de cativante dimensionamento psicológico e convicto contraponto crítico.

Embora facilitados pela identificação visual como atores>personagens no papel de meros objetos do desejo,André Rosa e Raphael Sander,  alcançam através das marcações diretoriais, um convincente empenho, de raras intimidações, no equilíbrio entre a intencionalidade da palavra teatral e  o presencial  físico.

Alair se integraliza, ainda na minimalista arquitetura cênica (Marina Villas Boas) , na essencialidade do figurino (Ticiana Passos) e do  desenho de luz (Tomás Ribas), de sugestivo resultado, entre projeções, videografismos  e sombras. Além  da trilha sonora incidental de Rodrigo Marçal realçando a direção de movimento  de Luísa Pitta.

Poético e  contundente, sóbrio e tenso, verista e questionador, irreverente e introspectivo, eis aí mais  um espetáculo desentorpecedor,  abrindo portas contra o preconceito à livre manifestação das diversidades sexuais.

                                  
                                              Wagner Corrêa de Araújo


ALAIR está em cartaz no Teatro Laura Alvim, Ipanema, de quarta a sábado, às 21h;domingo, às 20h. 70 minutos. Até 2 de julho.

CARMINA BURANA: PULSANTE CONCERTO CÊNICO


FOTOS/JULIA RÓNAI

Emblemática composição musical do século XX, por seu apelo popular e sua envolvência que se estendeu a outras linguagens artísticas e às comunicações midiáticas,   a cantata Carmina Burana,  de Carl Orff ,  também sofreu o assédio da cúpula nazista, desde a sua estreia em 1937.

Não tanto por seu libreto, a partir de profanos versos anônimos   dos séculos XII e XIII, de liberada evocação dos prazeres sensoriais e carnais, o que incomodava os teóricos do Reich no seu “ideal purista”. Mas, especialmente, por sua pulsão rítmica embriagante , capaz de configurar-se em precioso auxiliar na mobilização política das massas.

No seu incursionar tematizado pelos bons e maus fluidos  do destino na condição humana, mistificada entre o prólogo e o epílogo, pelo metafórico coral da “Fortuna Imperatrix Mundi”. E ,não ao acaso, exercendo reiterativo domínio catártico em sua simbiose com trilhas cinematográficas, edições televisivas, jogos virtuais, shows pop/rock/heavy metal.

Assim, no árido compasso da presente crise , teve uma carga de simbólico estímulo  a iniciativa da direção artística (André Heller-Lopes), através de um concerto cênico - Carmina Burana, unindo os corpos estáveis do Theatro Municipal do Rio.

Num espetáculo de impressionante bravura e entrega, emprestando dignidade a uma postura de perseverança e empenho do Ballet, do Coro e da OSTM pela necessária continuidade de sua missão artístico/ social .

Deixando o público em clima de adesão e cumplicidade pelo que ouviu e viu. Ondeando, como marca criativa maior, na expressividade emotiva e na qualidade técnica sob o signo de uma simplicidade eficaz.

O brilhantismo com que se apresentou a OSTM no sequencial temático da obra (entre a natureza, a taberna e o amor), mostrou um apurado senso de energia e sensibilidade nos naipes prevalentes de percussão e sopros , sob o artesanal comando de Tobias Volkmann.

Além da musicalidade orgânica e da teatralidade presencial numa indumentária black , em ornamentais nuances ,entre polifonia e ostinatos, do convicto Coro dirigido por Jésus Figueiredo.

Sintonizando-se, ainda,  com a difícil variação tonal, do falsete à extensão vocal, nos solos de barítono(Homero Homem) Ego Sum Abbas/ Dies nox et Omnia -  nas exigências quase coloraturais da soprano(Michele Menezes) em Dulcissime e nos desafios ariosos  para tessitura de contratenor  ( por Jacques Rocha, tenor).

E foi  nesta complexidade auditiva de sonoridades, unindo  tradição e modernidade em acordes musicais, entre cantos e linguajares ancestrais, inspiradores de extenso lastro de versões cênicas e coreográficas, que se consolidou a performance do Ballet do TM para uma diferencial Carmina Burana.


Muitas  vezes concessivas ao fácil mas surpreendente em concepções , entre outras, de M. Wigman(1943), J. Butler(1959),Alvin Ailey(1973),desta vez,  o conceitual de sua coreografia(Rodrigo Negri) favoreceu o clima de representatividade pelo resgate salvador de um elenco coletivo ( os corpos estáveis do TM) num brado  de socorro.

Em concisa mas inteligente movimentação cênica, os bailarinos fazem seu percurso entre os coristas ( todos no palco, exceto o coro infantil), num referencial postural inicializado pelos Balés Russos de Diaghilev.

Em episódicas entradas, com magnetismo, nos solos, duos e grupos, deixando para o clímax final, na cena da Corte de Amores, a participação integralizada e mais prolongada dos solistas e do corpo de baile.

Explorando , com intensa delicadeza e coesão , o neoclassicismo assumido, ora nas passagens mimeticamente  teatralizadas em figurinos de época, ora na contemporaneidade discricionária de malhas e tules, em gestual de simplificação irradiante.

Sem grandes audácias inventivas, mas reafirmando sempre o luminoso rompante, entre tantos reveses atuais, de um bem dosado amadurecimento dos seus intérpretes. Com perceptível visibilidade nas atuações irrepreensíveis, em técnica e emoção, da dupla Cláudia Mota e Cícero Gomes.

Na sincera transmutação do desalento destes artistas em viral resistência,fazendo disto o grande mote técnico/artístico desta Carmina Burana de dimensionamento psicológico mitificado em instante de corajoso protesto, num grito de guerra - diante da roda da fortuna, aqui estamos, aqui queremos ficar...

                                                Wagner Corrêa de Araújo


CARMINA BURANA está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, quinta, às 17h; sábado e domingo, às 17h; terça, às 20h. 60 minutos. Até 20 de Junho.

NOVA TEMPORADA: No Theatro Municipal, sexta às 20h; sábado, às 16h; domingo,às 17h. Preços populares.


LIL BUCK E CIE ZAHRBAT: PARTITURAS CORPORAIS



O diálogo entre o corpo e o espaço no  uso potencial de toda a sua energia física e emotiva voltada para um performance do espontâneo e do improviso.

Estas são as marcas inventivas e investigativas que estruturaram  , com um vocabulário singularizado e uma pulsão de protesto, o movimento coreográfico/musical das danças urbanas .

Tendo surgido em meio à agitação das ruas, muitas vezes com o exibicionismo de seus praticantes atuando como artistas anônimos, a partir de vigorosas variações da fisicalidade ,na expressão de seus anseios cotidianos e alertas político/sociais.

Acabou ,ainda, adquirindo sua linguagem própria, não só através de seu gestual inovador  e suas viscerais ligações com os ritmos da black music, mas, especialmente, pelo seu incisivo extravasamento  nas manifestações da cultura pop.

Assim , estabeleceu um conceitual que vai do esteticismo gráfico e plástico do grafite e do muralismo urbano à imposição de um estilismo indumentário. O que facilitou de vez seu caráter inclusivo como um aporte no enunciado das artes cênicas.

São inúmeras hoje as companhias coreográficas especializadas no que se convencionou denominar, diante da amplitude de seus gêneros e características, de danças urbanas. O que por sua vez possibilita permanentes temporadas e inúmeros festivais como a Rio H2K , já em sua sétima edição.

Na abertura da mostra, um espetáculo diferencial com sua proposta de releitura da estética coreográfica urbana à luz da dança clássica e contemporânea. Inicializada com o inusitado  solo The Swan , pelo coreógrafo/bailarino americano Lil Buck e seguida pela performance da francesa Cie Zahrbat.

O dançarino Lil Buck, instantaneamente midiático com sua versão “jookin”(originária de suas incursões ao ar livre citadino de Memphis) de um clássico de Fokine , 1907, A Morte do Cisne, para o You Tube, com a participação valiosa do violoncelista Yo Yo Ma na fiel transcrição do tema de Saint-Saëns.

E na sua interpretação carioca, por um cellista ao vivo(sem virtuosismo algum e apenas correto),compensado por Lil que impressiona por fazer um mix hip hop/inventivo do formato balético original , no traçado  radicalizado dos flutuantes braços e das dobraduras e inclinações originais da Pavlova.

Com um sotaque atlético  contorcionista , num mergulho mecânico/cinético, de um corpo/móbile quase sem estrutura óssea, mas nunca perdendo o melancólico acento da efemeridade do ser ave ou artista  em processo de decomposição.

Quanto à conceituada Cie Zahrbat, comandada pelo coreógrafo/bailarino Brahim Bouchelaghem, reune, em Sillons, outros cinco bailarinos( Fouad Atzouza,Alhouseyni N'Diaye,Jules Leduc,Takeo Ishi,Sacha Vangrevelynghe) de origens étnicas e tendências artísticas diversas, em solos, duos , trios e conjuntos, sem perder nunca o sincronismo de uma ideia coreográfica coletiva. 

Tais como os fios de cores diversas que fazem a composição de uma tapeçaria ou delineiam os elementos grafíticos muralistas( sutilmente sugeridos em sua minimalista concepção cenográfica).

Sempre na arquitetura de um espaço de coesa visibilidade, entre imagens vivas da descontração de formas físicas quebradas, antigravitacionais ou robóticas, horizontalizadas ou verticalizadas , gráficas ou magnéticas em perpetual motion.

No alcance de uma action painting de abstratos quadros rítmicos/musculares , solarizados ou sombreados por um incisivo desenho de luz e uma obsessiva trilha eletro , de ressonâncias percussivas (Nicolas de Zorzi).

Conquistando, enfim, além e a parte de seus urbanismos, com seu empenho e avanços, um lugar especial  de criação no universo, até então fechado, da dança contemporânea.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


FESTIVAL RIO H2K 17 DE DANÇAS URBANAS prossegue com diversas performances, espetáculos e seminários na Cidade das Artes/Barra/RJ , em horário diversos, até o dia 18 de Junho.

IVANOV : ANTECIPANDO O CÓDEX TCHECOVIANO


FOTOS/DALTON VALÉRIO


Estreando, na sua versão inicial, em 1887, Ivanov foi uma simbólica antevisão do que seria o códex estético/dramatúrgico no legado maior de Anton Tchekhov , transubstanciado no tríptico – Tio Vania, A Gaivota e As Três Irmãs.

Melancolia, tédio, remorso, imobilismo, desespero,ganância, egoísmo enfim, de vidas sem perspectivas, num meio rural e pequeno burguês, marcam este texto de classificação autoral como “uma comédia em quatro atos”. 

Mas que em sua progressão narrativa, de sombrio romantismo,  não deixa de ser, em verdade, uma comédia dramática de inusitado viés psicológico/social.

Ao revelar o provincianismo de uma paisagem campesina, habitada por enganos amorosos e frustrações financeiras, com seres reclusos em fachadas morais e comportamentais.

Tais como a do proprietário falido e ensimesmado– Ivanov(Isio Ghelman), assessorado na administração dos negócios pelo sempre ébrio e queixoso Micha(Mário Borges).

Diante do patético distanciamento e das indiferenças patronais tanto a estes reclames monetários quanto às obsessivas declarações de amor de sua tuberculosa mulher Anna Petróvna(Sheron Menezzes),na prevalência sensual do seu cortejo à atração juvenil de Sacha(Mayara Travassos).

Para quem se inclina, no propósito de saldar uma dívida com o pai dela - o presidente do conselho rural Pacha (Márcio Vito) - e de preencher o seu vazio afetivo com a iminente morte de Anna. Que só é amada, ainda, com verdade interior, por seu médico Lvov(Marcelo Aquino).

Um clima quase folhetinesco e melodramático a que o convicto comando de Ary Coslov dá um tratamento inventivo em planos cênicos paralelos. No jogo verbal com seus subtextos reflexivos e na nuance dialética com texturas  de contemporaneidade.

Presente na sua incisiva trilha sonora que vai de temas russos e chopinianos, a acordes jazzísticos e metaleiros e  na aproximativa fidelização  indumentária de época (Beth Filipecki),mais evidenciada nas elegantes vestes femininas.

Completada  no contraponto frontal   de um tablado cru  com  painéis ao fundo, romantizados no sombreamento de arvores , em preciosa realização dúplice na organicidade da cenografia de Marcos Flaksman e da iluminação de Aurélio de Simoni.

Onde um elenco de irrepreensível avanço no contorno dos personagens dá consistência e favorece a representação. Na empatia da construção do caráter supérfluo e depressivo de Ivanov (Isio Ghelman), no vivaz senso de humor, exacerbado um tom acima, em Mário Borges . Na espontaneidade interesseira  caraterizada por Márcio Vito, além do sensitivo moralismo postural de um clínico(Marcelo Aquino) da alma feminina.

E, especialmente na ala das atrizes, na emoção dosada entre a beleza e o ascendente talento de Sheron Menezes e no seguro equilíbrio da discreta e menor incidência do papel de  Mayara Travassos.

Tanto na reiterativa preparação da performance e dos seus mecanismos teatrais em clima de quase ensaio como no  respeito  ao compasso ficcional e sua sequência narrativa originária, mesmo com perceptíveis cortes de personagens e elipses textuais:

Um Ivanov, afinal, pouco lembrado mas de raro e oportuno olhar armado nesta sua retomada e na digna abordagem de sua atualização sabendo, antes de tudo, manter o essencialista clima tchekoviano.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


IVANOV está em cartaz no Teatro Ipanema,  sábado e segunda, às 21h; domingo,às 20h. 80 minutos. Até 18 de Junho.

ESTRANHOS.COM.:AMORES E ESCRITURAS EM WEB TIME


FOTOS/ANDREA CAPELLA

Quando estreou, em 2011, a peça Sex With Strangers, inicialização dramatúrgica da 
escritora e roteirista de séries televisivas Laura Eason , havia, ainda, um temor iminente sobre o que as publicações digitais poderiam representar como ameaça ao suporte tradicionalista do livro.

Um risco não apenas como novidade tecnológica  mas , potencialmente, pela rápida popularidade da escrita virtual capaz, assim, de criar fenômenos de mídia  pela facilitação revolucionária das redes da web.

Estabelecendo este texto teatral um parâmetro entre o oficio convencional de uma professora de literatura (Deborah Evelyn) beirando os 40 anos, autora de um ignorado romance publicado no formato papel/brochura ,e um jovem internauta(Johnny Massaro) tornado um fenômeno literário, a partir  das escrituras de um blog .

Onde o verismo confessional de seus  relatos de aventuras sexuais cotidianas com estranhos,  mas direcionadas exclusivamente às mulheres descobertas nas conversas virtuais, fez com que entrasse na lista de best-sellers e fosse adaptado às telas.

Ao contrário dela cujo estilístico romance  , de assumidos contornos nouveau roman, teve uma trajetória obscura, fazendo-a desistir da carreira ficcional. E a passar seus dias do nada,  numa pousada de lugar nenhum, em tempo indefinido.

O sequencial dramático/narrativo de Estranhos.com (assim titulada  na cuidadosa tradução de Sérgio Flaksman) se desenvolve a partir da casual chegada do jovial escritor/blogueiro a este hostel ,em dia chuvoso. Num encontro ora espontâneo, ora enérgico, ora ousado,ora de assédio, mas sem nenhuma dialetação professoral, com a academicista autora.

Aqui representado,cenicamente, pela construção de uma alentada estruturação em madeira(Marcelo Escuñuela) , sugestionando, com o aporte dos efeitos luminares (Tomás Ribas), uma tríplice ambientação – sala>quarto>biblioteca. Com figurinos funcionais( Carla Garan) e complementado com episódicos elementos referenciais do universo computadorizado. 

Em breve e agitado convívio, entre posturas antagônicas de talento e conceitual literário, de épocas geracionais diversas. E do convencionalismo,da frustração autoral, da inibição e das preferências estéticas dela  frente ao exibicionismo sedutor, quase arrogante,  de um jovem e bem sucedido escritor internauta.

Num crescendo de dramatismo, de convicta entrega à performance, desde a transmutação, da inicial desconfiança feminina de Olívia ( papel de Deborah Evelyn)pela extrovertida invasão físico/intelectual de um passageiro visitante William ( personagem de Johnny Massaro), em atratividade afetiva com sutis traços erotizados.

Embora a trama original, quase monocórdia , não consiga preencher, com ênfase, o aprofundamento psicológico/temático, há um perceptível investimento da direção (Emílio de Mello)para intensificar o equilíbrio de uma teatralidade,  entre a tensão e a leveza, entre o melancólico e o risível.

Evitando, sempre, os riscos de queda nos superficialismos e nas facilitações de uma comédia romântica. Contando com o amadurecido apuro de técnica, emoção e fisicalidade dos dois atores e alcançando, assim,  na segurança de seu comando artesanal , o necessário contraponto cênico/crítico.
                                   
                                          Wagner Corrêa de Araújo


ESTRANHOS.COM está em cartaz no Teatro das Artes, Shopping da Gávea, sextas e sábados, às 21h.;domingo, às 20h. 80 minutos. Até 02 de Julho.                                               

HOLLYWOOD: CINISMO E COMPETIÇÃO


FOTOS/DANIEL MORAGAS


Radicalizando o conceitual que comanda a história e o comportamento da produção cinematográfica o filósofo Theodor W . Adorno vê, nela , "apenas negócios e este atributo exibe-se como ideologia para legitimar as coisas medíocres que se produzem intencionalmente”.

O que não deixa de ser um franco  referencial à abordagem dramatúrgica de David Mamet em “Speed-the Plow”,  terceiro momento da Trilogia Mamet , precedido por Oleanna e Race. E completando, assim, o tríptico sequencial das montagens cariocas comandadas por Gustavo Paso.

Sob o nominativo de Hollywood,  simplificando e tornando mais apreensível o sentido da tradução literal- acelerar o arado - a partir de uma inscrição medieval,  sobre as disputas e negócios entre Deus e o Diabo.

Aqui, pelo comportamento cínico, envolvendo dinheiro e sexo, que manipula o universo dos produtores executivos hollywoodianos, numa permanente arena com rounds de dominação, egoísmo , frieza e mediocridade.

Através da recente ascensão do diretor de produção Tony Miller(Cláudio Gabriel) e do encontro com o amigo/ sócio cinematográfico – Daniel Fox (alternando Ricardo Pereira/ Gustavo Falcão),com sua proposta fílmica “blockbuster” sobre uma bombástica  fuga de uma penitenciária.

Onde Tony sugestiona-lhe, antes, a leitura da novela sentimental – The Bridge - sobre o futuro apocalíptico da humanidade numa catástrofe climática. Nas entrelinhas dos falares mercadológicos, a disputa machista pelo desfrute sexual da secretária Karen(Luciana Fávero) que, por sua vez, numa noitada de sedução, convence o chefe a optar pelo espiritualista roteiro “new age”.

A arquitetura cenográfica (Gustavo Paso) de um escritório ainda em obras, na sua quase lembrança de  um set cinematográfico , é acentuada nas modulações do desenho de luz(Paulo César Medeiros)e nas  variações, entre sombras, da cena residencial. Ressaltando, também, o rigorismo formal da indumentária ( Sônia Soares).

Em Hollywood , mesmo com a habitual contundência  da linguagem de Mamet, direta e incendiária na sua estrutura dialetal, há intermitências na progressão dramática. Causadas pela reiterativa discussão sobre arte/ indústria/lucros e na postura sexista, que acaba não alcançando, em seu arquétipo temático, o esperado contraponto crítico.

Mesmo assim, diante deste perigoso desafio rítmico, mais uma vez, a direção de Gustavo Paso  revela empenho e folego no domínio decifrador das complexidades da escritura teatral de Mamet. Sabendo como explorar bem  todos os seus contornos e dar unidade interpretativa a um elenco de absoluta entrega aos personagens.

Perceptível no dimensionamento psicológico da obsessão profissional na performance de Cláudio  Gabriel. No desnudamento sutil do irônico e falso bom mocismo do papel de Luciana Fávero.

E nos convictos  embates sensoriais, entre o orgulho e o ressentimento, apesar da prevalência de um exasperado tom de fisicalidade, tanto por Gustavo Falcão como por Ricardo Pereira, na representação da laminar rebeldia de Daniel Fox. 

                                        Wagner Corrêa de Araújo


HOLLYWOOD está em cartaz no Teatro Poeira, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 75 minutos. Até 25 de junho.

PERDOA-ME POR ME TRAÍRES :PURITANISMO E TRANSGRESSÃO


FOTOS/ PH COSTA BLANCA


“Todo mundo só julga o infiel e nunca a vítima.  Esta fica no seu canto, esquecida ou glorificada. Toda nossa  ira se concentra no infiel. É uma justiça suspeita e unilateral. Devíamos julgar os dois e com a mesma impiedade”.

Se este  foi o conceitual que direcionou  Nélson Rodrigues para sua peça “Perdoa-me Por Me Traíres”, ao mesmo tempo , há um referencial filosófico capaz de remeter, ao ancestral provérbio de que se deve perdoar a todos,mais do que a si próprio. Apreendido contraditoriamente, por  delírio ou sublimidade de caráter, ao  pedir, exatamente o que é traído, perdão confessional por ter incitado alguém a trai-lo.

Pois é, aqui, onde é incisivamente alcançada uma culminância dramatúrgica na perceptividade  deste dilacerado componente psicológico e comportamental, paralelo a um apurado sequencial narrativo e uma minuciosa  caracterização dos personagens.

Mesmo que a habitual interferência, de gosto habitual no memorial rodriguiano , das nuances de melodramático teor folhetinesco, acabe por tornar quase  risível e burlesco, o trágico  enunciado da maldição a que é conduzido o patético  apelo entre o puritanismo  e a sexualidade.

Não foi por mero acaso que o próprio Nélson, em rara atuação como ator na conturbada estreia da peça, há exatamente sessenta anos, em junho de 1957, no palco do Municipal carioca, ouviu , no lugar de Bravo, segundo seu relato, “Tarado, tarado”, por sua obsessiva abordagem, em tons ironicamente operísticos, das paixões sublimadas em taras.

Na perfeccionista montagem que Daniel Herz promove de Perdoa-me Por Me Traíres, além da continuidade rítmica da trama em ato único, ele atinge uma singularizada adequação entre a abstrata mas funcional arquitetura cenográfica (Fernando Mello da Costa) e o sotaque discricionário dos figurinos( Antonio Guedes), sob os efeitos ambientalistas do desenho de luz(Aurélio de Simoni), da envolvência sonora (Ricco Viana) e do sempre  brilhante comando de movimento com  Duda Maia.

Com a segurança da organicidade do elenco, afinados todos na entrega aos seus personagens, a concepção diretorial equilibra, com peculiar coerência, o convívio entre o aporte psicológico, os traços farsescos e a realidade.

Na  voracidade rodriguiana , entre o despudor da verdade e da mentira, da corrupção e da hipocrisia de um microcosmo social ,integrado por duas adolescentes, um prostíbulo e uma ambiência doméstica em processo de demolição moral.

E no falso autoritarismo puritano de um tio preceptor da sobrinha órfã,  ao lado da esposa em  doentio status mental , e  do marido enganado ,  ingenuo ou  idiota em sua similaridade dostoievskiana , se desculpando em auto punição  pelas infidelidades da mulher morta.

Com a participação irrepreensível dos atores Bebel Ambrósio,Tatiana Infante,Bob Neri,Gabriela Rosas, João Marcelo Pallottino, Rose Lima e Wendell Bendelack. E, destacando-se no entremeio da prevalência conflitante  de seus papéis, o convicto domínio interiorizado, a credibilidade de seu verbalismo e a  espontânea fisicalidade gestualista, de Ernani Moraes( como o Tio Raul) e de Clarisse Kahane (como Glorinha, a sobrinha).

Convergindo num espetáculo revelador por seu acerto estético e seu suporte psicologista , tanto no delineamento dos personagens como na sua ressonância reflexiva sendo, assim, capaz de estabelecer laços emotivos e tornar cúmplices atores e espectadores.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


PERDOA-ME POR ME TRAÍRES ,depois de temporada na Casa de Cultura Laura Alvim, volta ao cartaz, a partir de 28 de junho, no Teatro dos Quatro/Shopping da Gávea.

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