FOTOS/ PH COSTA BLANCA |
“Todo mundo só julga o infiel e nunca a vítima. Esta fica no seu canto, esquecida ou
glorificada. Toda nossa ira se concentra
no infiel. É uma justiça suspeita e unilateral. Devíamos julgar os dois e com a
mesma impiedade”.
Se este foi o
conceitual que direcionou Nélson
Rodrigues para sua peça “Perdoa-me Por
Me Traíres”, ao mesmo tempo , há um referencial filosófico capaz de
remeter, ao ancestral provérbio de que se deve perdoar a todos,mais do que a
si próprio. Apreendido contraditoriamente, por delírio ou sublimidade de caráter, ao pedir, exatamente o que é traído, perdão confessional por
ter incitado alguém a trai-lo.
Pois é, aqui, onde é incisivamente alcançada uma culminância dramatúrgica na perceptividade deste dilacerado componente psicológico e comportamental, paralelo
a um apurado sequencial narrativo e uma minuciosa caracterização dos personagens.
Mesmo que a habitual interferência, de gosto habitual no
memorial rodriguiano , das nuances de melodramático teor folhetinesco, acabe por tornar quase risível e burlesco, o trágico enunciado da maldição a que é conduzido o patético apelo entre o puritanismo e a sexualidade.
Não foi por mero acaso que o próprio Nélson, em rara atuação
como ator na conturbada estreia da peça, há exatamente sessenta anos, em junho de
1957, no palco do Municipal carioca, ouviu , no lugar de Bravo, segundo seu relato, “Tarado, tarado”, por sua obsessiva
abordagem, em tons ironicamente operísticos, das paixões sublimadas em taras.
Na perfeccionista montagem que Daniel Herz promove de Perdoa-me Por Me Traíres, além da continuidade rítmica da trama em ato único,
ele atinge uma singularizada adequação entre a abstrata mas funcional
arquitetura cenográfica (Fernando Mello da Costa) e o sotaque discricionário dos
figurinos( Antonio Guedes), sob os efeitos ambientalistas do desenho de luz(Aurélio de Simoni), da envolvência sonora (Ricco Viana) e do sempre brilhante comando de movimento com Duda Maia.
Com a segurança da organicidade do elenco, afinados todos na
entrega aos seus personagens, a concepção diretorial equilibra, com peculiar coerência,
o convívio entre o aporte psicológico, os traços farsescos e a realidade.
Na voracidade
rodriguiana , entre o despudor da verdade e da mentira, da corrupção e da
hipocrisia de um microcosmo social ,integrado por duas adolescentes, um
prostíbulo e uma ambiência doméstica em processo de demolição moral.
E no falso autoritarismo puritano de um tio preceptor da
sobrinha órfã, ao lado da esposa em doentio status mental , e do marido enganado , ingenuo ou idiota em sua similaridade dostoievskiana , se desculpando em auto punição pelas infidelidades da mulher morta.
Com a participação irrepreensível dos atores Bebel
Ambrósio,Tatiana Infante,Bob Neri,Gabriela Rosas, João Marcelo Pallottino, Rose
Lima e Wendell Bendelack. E, destacando-se no entremeio da prevalência conflitante de seus papéis, o convicto domínio interiorizado, a credibilidade de
seu verbalismo e a espontânea
fisicalidade gestualista, de Ernani Moraes(
como o Tio Raul) e de Clarisse Kahane (como Glorinha, a sobrinha).
Convergindo num espetáculo revelador por seu acerto estético
e seu suporte psicologista , tanto no delineamento dos personagens como na sua
ressonância reflexiva sendo, assim, capaz de estabelecer laços emotivos e
tornar cúmplices atores e espectadores.
Wagner Corrêa de Araújo
PERDOA-ME POR ME TRAÍRES ,depois de temporada na Casa de Cultura Laura Alvim, volta ao cartaz, a partir de 28 de junho, no Teatro dos Quatro/Shopping da Gávea.
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