Completando um refinado tríptico musical dedicado a celebrar consagrados representantes do legado do samba na cultura popular brasileira, o produtor Jô Santana prossegue, desta vez com Alcione, o seu tributo iniciado por Cartola e Dona Ivone Lara.
Em proposta que traz, implicitamente, um significado emblemático de resistência, através de nomes exponenciais da criação musical ligada à preservação e à afirmação da força da negritude. Em país com parcela significativa de população da raça mas, infelizmente, ainda dominado pelo preconceito no entorno da cor da pele.
Neste último espetáculo – titulado Marrom, O Musical - sob convicta concepção cênico/direcional, incluído o ideário
autoral da peça, por Miguel Falabella. Sabendo como bem priorizar um elenco de atrizes/cantoras
todas negras onde se destacam, entre outras novas revelações, nomes fundamentais do gênero em nossos palcos, como os de Letícia Soares ou Lilian Valeska.
Numa trajetória musical/dramatúrgica que conecta dados biográficos da cantora maranhense a momentos antológicos da canção de pulso romântico sequenciados àqueles ligados às raízes do afro-jazz-samba. Transmutando-se ora na expressão da sonoridade rítmica dos terreiros ao samba, ora no registro das tradições nordestinas tais como o Bumba-Meu-Boi, além de um evocativo referencial técnico à tessitura grave de vozes magnas do jazz americano, passando por Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald.
Tendo Alcione se tornado neste aspecto, além de cantora, uma exímia intérprete ao trompete, na predominância de energizados acordes com um dúplice substrato que a faz transitar de reflexos instrumentais do universo jazzístico ao seu peculiar apuro vocal no repertório do samba. Em diferenciais modulações no uso de seus recursos de voz próxima de contralto, que ela imprime aos lamentosos ou ritmados cânticos, de substrato afirmativo da ancestralidade negra com o olhar armado na contemporaneidade.
Numa arquitetura cenográfica em que o palco é giratório
lembrando, com rara sutileza, os grandes
musicais do passado tanto na Broadway
como nas revistas brasileiras de Carlos Machado, sem as plumas naturalmente, segundo uma dúplice realização de Zezinho e
Turibio Santos.
Também na convergência de um
trio de figurinistas (Ligia Rocha, Jemima Tuany e Marco Pacheco) para
vestir em cores aquareladas os 23
integrantes do elenco, incluídos aí músicos e bailarinos, todos em trajes
paramentados pelos detalhes de artesanais bordados, ressaltados pelas luzes
festivas de Walmyr Ferreira. Sem deixar de falar na gestualidade coreográfica (Bárbara
Guerra e Rafael Machado) marcada por traços folclóricos ou por passos do mais
autêntico sotaque sambístico.
A trama dramatúrgica assumindo, desde o seu prólogo, um tom fabulário ao misturar recortes da vida artístico/existencial de Alcione com os mistérios da lendária e melancólica história do boi maranhense, sempre conduzida por personagem, pleno de um toque de magia, o Cazumbá (via Lucas Wickhaus).
Alterativa entre cenas familiares onde aparecem os pais da
cantora, de seus primeiros arroubos instrumentais aos anos como cantora da noite em
shows e boites, com um repertório mais de teor romântico. Até seu tempo além
fronteiras, ao lado de seu empresário/marido italiano, para explodir, enfim, nas
glórias de sambista ícone da Mangueira.
Perdendo a peça um pouco o viço dramatúrgico a partir do segundo
ato, onde o espetáculo vai, aos poucos, se transmutando mais num show musical com
desfile sucessivo de sucessos da carreira de Alcione, especialmente as canções
de apelo mais romantizado.
Mesmo assim, capaz de alcançar a plasticidade carismática de uma passagem característica em que as intérpretes femininas titulares aparecem identificadas todas por um similar vestido amarelo, imagem que há de ficar certamente marcada na memória visual e afetiva de cada espectador.
Wagner Corrêa de Araújo
Marrom, O Musical está em cartaz na Cidade das Artes/Barra, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 18h, até o dia 05 de fevereiro.