FOTOS/VICTOR HUGO CECATTO |
Até onde vai o senso e quando começa a culpa pelo descaso à preservação dos ecossistemas no paralelismo de uma corrida nuclear próxima da irreversibilidade pós-apocalíptica?...
Tematização de mais vasta abordagem no cinema que nos palcos,
esta catástrofe sequencial dos experimentos atômicos tem prevalência ora de falha
humana ora de trágica fenomenologia. Deixando sempre, como legado, o
assombramento das zonas de exclusão e suas terminais radiações nucleares de longo
alcance para quaisquer habitats.
E é a partir de similar factualidade que uma das mais destacadas
vozes da nova geração dramatúrgica inglesa, Lucy Kirkwood, constrói a narrativa
da peça As Crianças, estreada na
Londres de 2016, quando a autora tinha completado seus trinta e dois anos, e,
agora, na preciosa versão textual de Diego Teza. Em relato sobre um casal inglês de físicos aposentados que se
recusa a deixar sua rústica residência à beira mar, nem tão longe assim de uma
estação nuclear afetada por um sério acidente.
Com graves consequências regionais
e iminente risco para os que continuam insistindo, na falta de possíveis saídas,
em resistir no complexo do pós-desastre. E onde, sob aparente normalidade, tanto Dayse (Analu Prestes) como seu marido Robin (Mario Borges), embora cientes das limitações causadas à sua
trajetória cotidiana, convivem com alimentos e água contaminada, além de temíveis cortes na rede elétrica.
Até serem surpreendidos pela visita, depois de quase quarenta anos,
de antiga parceira da juventude e também cientista física Rose (Stela Freitas) configurando-se, aqui, como uma emissária de incomoda
proposta e da cobrança de antigo e mal resolvido pesar amoroso. Acabando por colocar os três personagens no ringue de um perigoso duelo de postulações conceituais sobre as dubiedades egotistas
de vidas sexagenárias e a morte anunciada da geração mais jovem afetada por hecatombes atômicas.
Numa progressão dramática, entre culpas radioativas e amargores afetivos, que
enuncia uma textualidade instigante capaz, assim, de promover um abalo sísmico
na teimosia absolutista do estarmos sempre voltados para nós mesmos, nada fazendo para amenizar
os estragos dos erros civilizatórios na contemporaneidade.
Para reproduzir uma paisagem radioativa, a dúplice concepção
(Rodrigo Portella e Julia Deccache) redimensionou a frugalidade do interior
residencial na assumida praticidade de parcos elementos cênicos (mesa, cadeiras, dois
lampiões frontais), além da simbológica aplicação de um detector Geiger de radiações.
Entronizada por um cavalo de balanço, com seu referencial mágico
à titularidade da peça, em solo coberto de pedras fragmentadas sugestionando erosão.
Sob sutilizadas mutações de efeitos luminares (Paulo Cesar Medeiros) incidindo
sobre figurinos (Rita Murtinho) de singular coloquialismo no traçado
indumentário dos papéis.
Encantamento no mais exacerbado grau é o que desvela a irreprimível
performance de um elenco de craques em
bravas e comoventes marcações expressivas, no entremeio de pausas e silêncios.
E na entrega à envolvência de presencial fisicalidade (Marcelo Aquino), em acordes
de trilha incidental (Marcelo H/Frederico Puppi), sob uma inventiva recriação de
ondas marítimas por vozes atorais ao vivo.
Com Analu Prestes imprimindo exemplar veemência e instinto dramático à irredutibilidade
acomodativa de Dayse, enquanto Stela
Freitas insufla irradiante espontaneidade a um personagem (Rose) portador de tensão e de ironico ceticismo.
Contrastando com a polarização dos papéis femininos, Mario
Borges, adequando-se com irrestrita maturidade à personalidade de Robin modulada na identificação entre a
criança e o adulto, desloca o conflito de vontades das duas atrizes para um
irreverente psicologismo de quem não conseguiu se desvencilhar dos segredos do passado.
E que o fio condutor de Rodrigo Portella explora, outra vez,
com reveladora autoridade cênica, para decifrar um tema de contundente
atualidade. A começar da explanação literal das rubricas no desmonte dos elos
realistas e obrigando o espectador a sair de sua passividade contemplativa, em processo
imersivo palco/plateia.
Manipulando, incisivamente, potencializados elementos tecnoartísticos na convergência de um teatro reflexivo, sintonizado em ameaça que paira sobre nós, através de imanente contextual estético com predestinação
carismática de obra surpreendente e de necessária urgência.
Wagner Corrêa de Araújo