OS GUARDAS DE TAJ: ENTRE A RAZÃO E A EMOÇÃO


FOTOS /JOÃO CALDAS 

Ainda que a razão comande nossos passos há que se conceder sempre espaço à emoção pois é esta que, entre o prazer ou a dor, vai nos conduzir à catarse pelo sonho e pela descoberta da beleza.

São estes os trâmites morais/jurisdicionais que impulsionam a contextualização dramatúrgica de Os Guardas do Taj, do americano de ascendência indiana Rajiv Joseph do qual nossos palcos viram, em tempo recente, outra peça sua - Playground.

Se ambas revelam coincidência de formatação cênica na prevalente dialetação entre dois personagens, mas com maior acionamento psicofísico na segunda (sob o comando de Marco Antônio Pamio), a outra destaca-se por seu primado verbal/filosófico, com dúplice direcionamento – João Fonseca e Rafael Primot, acumulando o último  a sua tradução e adaptação.

Unidos profissionalmente por seu oficio de guardiões do Taj Mahal, um palácio em construção com finalidade tumular para a esposa de um imperador indiano do século XVII, Humayun(Reynaldo Gianecchini) e Babur(Ricardo Tozzi) confrontam-se, apesar de uma amizade que vem da infância, em postulações comportamentais conflitando razão e emoção.

Proibidos de contemplar, frente a frente, o monumento que policiam e que, além de servir de abrigo ao harém de Shah Jahan, traz implícito o sacrifício capital de seus 20 mil operários silenciando-os, assim,  sobre os segredos de uma construção destinada a ser um dos pilares de deslumbre do planeta Terra.

Onde, de um lado persiste o estar submisso à ordem para levar a efeito sua missão, através do obediente e pragmático personagem de R. Gianecchini (Humayun), enquanto o outro, no papel de R. Tozzi (Babur), não permite inibir seu direito de questionamento emotivo ainda que por contestativos mecanismos de delírio e de sonho.

A concepção cenográfica (Marco Lima), acrescida de belos figurinos de época (Fábio Namatame), confere uma rara plasticidade ao espetáculo, sob estéticos efeitos luminares (Daniela Sanchez) e cativante trilha incidental (Marcelo Pellegrini).

Apesar da coloquialidade imprimida aos embates verbais dos personagens, não se consegue, no entanto, evitar o risco de uma reiterativa ida e volta na progressão dramática, aumentada, sobremaneira, pela extensiva textura linguística/narrativa.

Mas é o cuidadoso afinco da dúplice direção (Rafael Primot/Joao Fonseca) que  busca preencher a encenação, a partir deste insistente jogo de verbalização entre os dois personagens, pelo incisivo confronto psicofísico das performances, sabendo, com autoridade cênica, ligar a palavra excessiva ao gesto e à intencionalidade da representação. 

Em papeis defendidos com absoluta entrega, a teatralidade do texto é, assim, alcançada pela vigorosa e convicta representação das sutis nuances de tensionamento no élan afetivo dos dois guardas ligados por antigos laços.

Se a Ricardo Tozzi, pelas próprias circunstâncias de maior envolvência de sua personificação, torna-se mais fácil atingir pelo enérgico presencial dramático/gestual a cumplicidade da platéia, a exigência é grande para o mais discricionário personagem de Reinaldo Gianecchini. 

No hierático postural que força a uma menor  espontaneidade de sua representação, ele com unidade interpretativa e grau de coesão consegue, enfim, explorar com perceptível intensidade, os difíceis contornos de seu papel.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


OS GUARDAS DE TAJ está em cartaz no Teatro XP Investimentos/Jóquei Clube/Gávea, sexta e sábado, às 21h30m;domingo, às 18h. 75 minutos. Até 3 de Junho.

A VIDA AO LADO: LÍQUIDOS EMBATES COTIDIANOS


FOTOS/LU VALIATTI

Atravessamos a existencialidade, entre triunfos e amarguras, exaltações e derrotas, cercados literalmente por vidas de todos os lados. Como num palco, entrando e saindo pelas coxias, sucedem-se as performances dos variados personagens que compõe a trama comum desta nossa compartilhada comédia humana.

Cada dia uma nova história neste pequeno grande mundo de nossas relações que se cruzam com outras, arquitetando dramatúrgicamente o estranhamento ou o absurdo desta narrativa cotidiana.

Um tanto grotesca um tanto sórdida, entre assombramentos e surpresas, risível ou patética, lúdica ou trágica. E que vai se sucedendo, pouco a pouco, nos espaços da convivência urbana/residencial que dividimos ao compasso da dança das horas. Cada qual  a cada vez representando seu próprio papel.

Como num suceder de flashes, retrato entre claros e escuros, demonstrado, com rara artesania, no caminho teatral arquitetado pela textualidade de A Vida Ao Lado, sob o tríplice ofício - autoral, performático e diretorial - de Cristina Fagundes frente ao seu Clube da Cena.

Como um libreto de ópera bufa, desdobrados personagens tragicômicos tem seus ariosos, duetos e cenas coletivas, dando tempo ostinato a uma progressão dramática que, num aporte fragmentário de histórias cruzadas e frases entrecortadas, resulta numa envolvente solução teatral.

A partir da ameaça e da instabilidade emocional causada por um condomínio residencial de classe média que vai dar lugar inimaginável a um aquário público, deixando todos não a ver navios mas a peixes, os futuros inquilinos da pousada aquática.

A concepção cenográfica (Alice Cruz/Tuca Benvenutti) privilegia uma ambientação de tubos PVC sugestionando um desenho composicional hidráulico. Enquanto os efeitos luminares (Aurélio De Simoni) são alterativos entre um clarificado vazamento e pontos focais, ressaltando uma indumentária (Sol Azulay) unificada em tons discricionários.

A tipicidade referencial físico/psicológica dos moradores do prédio condenado à implosão explora, em tons de irônica comicidade, uma diversificação de personagens. Assumidas em postulações dúplices por um coesivo septeto atoral (Alexandre Barros, Alexandre Varella, Ana Paula Novellino, Bia Guedes, Cristina Fagundes, Flávia Espírito Santo, Marcello Gonçalves).

Personificando de adultos a crianças, entre idosos e jovens, gays e apátridas, subempregados e solitários preconceituosos ou amorais, além do eterno e indefectível síndico, numa amarrada gramática cênica conduzida em admirável crescendo dramático pela direção de Cristina Fagundes.

Todos entregues a um jogo teatral vivo, sabendo como alcançar os mecanismos de uma representação bem humorada que, na espontaneidade de seus tons farsescos e sem perder o contraponto crítico, revela incomodas situações e desairosas intimidades - de A Vida ao Lado  mas que também podem ser nossas...

                                        Wagner Corrêa de Araújo


A VIDA AO LADO está em, cartaz no Teatro Serrador,de quinta a sábado, às 19h30m. 90 minutos. Até 26 de maio.

LA TRAVIATA: APOSTANDO NA TRADIÇÃO


FOTOS/FERNANDO PASTORELLI

Icônico talvez seja a melhor definição do papel empenhado por esta ópera, tanto no seu significado histórico/musical como na sua indiscutível conquista do apelo popular, precedidos, ironicamente, de malograda estreia, em 1853, no La Fenice de Veneza.

Seguida pela prevalência absoluta no repertório lírico de qualquer teatro ao reunir, com maestria, ingredientes de romantismo e tragédia, força dramatúrgica a partir de suas próprias raízes literárias (de um romance autoral transformado em peça por Alexandre Dumas Filho) e partitura inspirada, com seus embates vocais e potencial melodismo que Verdi soube como bem lhe imprimir.

Além, ainda, de ter sido precursora na sua ousadia de abordagem do feminino através do retrato de uma cortesã e dos bastidores da vida mundana de uma Paris, entre a elegância aristocrática e os sórdidos meandros da prostituição. Antecipando, com seu retrato de uma personagem da vida real, os fundamentos estéticos do futuro verismo na ópera italiana.

Ao escolher para abertura de sua temporada oficial, uma bem sucedida produção mineira do Palácio das Artes para La Traviata, o Teatro Municipal de São Paulo acertou no seu lance de dados para  tempos de crise, sobremaneira, nas artes cênicas brasileiras e, em maior grau, na já tão carente produção operística em nossos palcos.

Em momentos assim, urge que os detentores da oficialidade dos recursos públicos tenham consciência de que há de se abdicar da vaidade de suas próprias produções luxuriantes nem sempre tão qualitativas, seja como solução cênica seja como resultado vocal, tanto no retorno da crítica como na cumplicidade do público.

A resposta está exemplificada nesta aposta acertada na tradição sintonizada com a contemporaneidade em encenação assumida, com raro brio, pelo experimentado comando cênico de Jorge Takla. Que, mais uma vez, trouxe para o universo musical da ópera a exploração do componente formal, dramático/gestual, necessário à progressão da narrativa e ao devido dimensionamento psicológico dos personagens.

Exponencial em seu conjunto, desde a concepção dos imponentes mas funcionais cenários de Nicolás Boni à unicidade requintada dos figurinos (Cássio Brasil) com equilibradas nuances em tecidos e cores combinando, sem nunca cair no mau gosto, com a mascaração do visagismo e no uso dos acessórios. Tudo sob um desenho discricionário de  luzes ambientalistas(Fábio Retti) que favorecem a representação.

A Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo alcançou bela sonoridade na leitura musical de Roberto Minczuk, sabendo sempre como privilegiar os cantores na modulação de seu volume.  Desde o intimismo com que soaram os prelúdios aos atos I e III à expressividade tonal dos acompanhamentos em cenas de conjunto, duetos e árias de peculiar feitura composicional verdiana.

Sem deixar de destacar a já conhecida competência artesanal/harmônica do Coro Lírico Municipal na envolvência de suas intervenções. Ao lado de enérgico traçado neoclássico da coreografia (Dany Bittencourt) nas danças características e da sensorial dramaticidade dos bailarinos da Cia Cisne Negro, na simbolização do trágico epílogo da protagonista  titular.

Técnica e talento, salvo algumas ressalvas, não faltaram às interpretações vocais/teatrais do elenco que conduz a trama, todos entregando-se com níveis de credibilidade às demandas da linha cênica proposta por Takla.

A Leonardo Neiva não houve carência de convincente presencial cênico, potente emissão de barítono e impecável dicção na personificação de GermontEnquanto ao tenor(Georgy Vasiliev), de origem eslava, de limitado dramatismo como intérprete de Alfredo, embora tenha um bonito timbre mas de pouco alcance, foram incipientes seus registros entre os graves e os agudos.

No cômputo geral é à Violetta de outra procedência russa (Nadine Koutcher), que cabe o maior destaque da performance. Tanto na postura ao mesmo tempo sensível e provocante do personagem, como nas variações sequenciais de soprano coloratura, spinto e dramática.

Capaz, assim, de impactar desde o brilho com direito a malabarismos vocais no Sempre Libera, de lirismo generoso, aos matizes de sombreamento comovente no Addio del passato, em espetáculo que se tornou, sem dúvida, a primeira grande surprêsa operística do ano.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


A ópera LA TRAVIATA, que começou sua temporada em Belo Horizonte no dia 11 de maio,tem suas ultimas récitas  nos dias 24, quarta feira,  e  25, sexta-feira, às 20h, no Theatro Municipal de São Paulo.
                                                                   

LTDA: DAS ARTES E OFÍCIOS DE UMA FÁBRICA DE MENTIRAS


FOTOS/RICARDO BORGES

A calúnia é uma leve brisa que, sussurrando,  pouco a pouco vai crescendo,  transformada em tempestade e terminando como um tiro de canhão. Há duzentos anos, na ária de Rossini, já prevalecia esta irônica verdade sobre a força propulsora da imaginação produzindo mentiras pela manipulação de fatos reais.

E cujo eco se tornou de incisivo presencial com a expansão das redes virtuais com seus exímios artífices das chamadas fake news. Aqui, a notícia é um produto industrializado que, na sua fuga proposital à comprovação, é capaz de confundir mentes e até de provocar pânico social.

Que, entre as exigências para ser bem vendida, tem que ter segura distorção de uma inicial acontecência de ares reais . Mas revirada ao avesso para ganhar a aparência de verista, no disfarce do boato e da falsificação que está por trás de sua construção gramática.

Tema que vem marcando, sobremaneira, não só as narrativas literárias como as tramas dramatúrgicas, tornando crédulos os mentirosos como o Iago que faz de uma intriga, aparentemente inócua, um mal fatal que leva Desdemona e, também,  Otelo ao ataúde.

Explorado, agora, na nova dramaturgia carioca, pelo ângulo da indústria informativa, manipulada por uma agencia profissional de comunicação em busca de candidatos a uma vaga para profissionais nas artes da inverdade.

Ltda, com textualidade do competente autor, diretor e ator Diogo Liberano que, desta vez, conta com uma cia. teatral baiana atuante no Rio, o Coletivo Ponto Zero, e com mais um surpreendente comando diretorial da atriz Debora Lamm.

Ao se submeter às regras para a admissão na agência de falseamento, o recém jornalista Edimilson(Leandro Soares) tem seu primeiro confronto sobre ética profissional com os sócios contratantes Lydio (Lucas Lacerda) e Lenise (Bruna Scavuzzi), assistidos pela descompromissada funcionária Luana ( Brisa Rodrigues).

Enquanto, paralelamente, como uma terceira voz, direcionando, como narrador, o sequencial da progressão dramática, aparece o personagem do leitor (Orlando Caldeira).

Se, eventualmente, a contextualização temática não se expande totalmente em cena, com mais ousada calibragem critica dos irresponsáveis meandros entre a notícia e a sua falsificação. Ou no desnecessário aporte e quase estranhamento do epílogo, avançando na questão racial/política a partir do assassinato de Marielle.

Na dúplice função de cenógrafa/diretora, a concepção de Debora Lamm é o componente mais inusitado e original da montagem, sabendo como preencher, inventivamente, quaisquer claros e  ausências, e favorecendo, assim,  a representação.

Através de um tratamento ágil que é imprimido à movimentação gestual(Denise Stutz) e ao fluxo vocal/sonoro(Marcelo H) da performance, com corretas interpretações da dupla Lucas Lacerda e Bruna Scavuzzi. Convincente entrega de Leandro Soares à dosagem bem-humorada do personagem fingidor de anti-ético.

Além da enérgica espontaneidade revelada por Brisa Rodrigues como a mais questionadora e resistente personagem aos apelos da má conduta. Completando-se o quadro cênico, com a menor inflexão funcional tanto do papel como nas intervenções de Orlando Caldeira.

Com discricionário desenho de luz(Ana Luzia de Simoni) e adequada indumentária(Ticiana Passos), em espetáculo com válida postura intencional, entre possíveis restrições, e que  vale ser conferido.

                                                 Wagner Corrêa de Araújo


LTDA está em cartaz no Teatro Eva Herz/Livraria Cultura/Cinelândia, de quinta a sábado, às 19h.70 minutos. Até 26 de maio.

ÓYEME CON LOS OJOS: FLAMENCO SOB FISICALIDADE ESPIRITUAL


FOTOS/DAVID RUANO

Na ancestralidade que liga o flamenco às raízes mouras da alma cultural espanhola prevalece a lamentosa tessitura vocal do “cante jondo", inspiração absoluta para composições de Manuel de Falla e de poemas de Garcia Lorca.

Na pulsão de acordes de guitarra e na energia percussiva dos pés, combinada com a expressividade gestual em rodas de apelo popular arrastando todos para o frenesi de um olé coletivo.

E, desde o final do século XX, cultuado cinematograficamente no trabalho comum do bailarino Antonio Gades e do cineasta Carlos Saura, onde desponta Maria Pagés integrando como bailarina flamenca obras fílmicas como Carmen, El Amor Brujo e Flamenco.

Transmutando-se, pouco depois, a trajetória desta sevilhana em consagrada carreira internacional a partir de uma releitura singular do flamenco entre a tradição e a modernidade, em variados dimensionamentos artísticos. Como o que ela assume, unindo fisicalidade e espiritualidade, em sua primeira obra solo – Óyeme con los Ojos, numa criação estreada em 2014.

A este espetáculo, a coreógrafa e bailarina Maria Pagés quis atribuir uma nuance mais teatral através de inserções dramatúrgico/literárias, fazendo o flamenco dançar palavras, em“diálogo consigo mesmo e com a transcendência”.

A maioria de substrato poético/espiritual, indo de clássicos árabe/hispânicos - textos sufis (Rumi) e de místicos cristãos como Sor Juana Inés de La Cruz, a escritores de nosso tempo como Tagore ou o poeta uruguaio Mario Benedetti.

Ao lado de dois cantores, um guitarrista, violoncelo e violino, ela se faz acompanhar, alterativamente, por estas sonoridades vocais, instrumentais e percussivas, sob um desenho de luzes e sombras que induzem a climas monásticos/meditativos.


Evocando cenicamente um espaço celestial/terreno, místico/sensorial, não só através das mutações de um figurino com ecos das cinéticas serpentinas da bailarina Loie Fuller, dos anos iniciais da sétima arte,  às  onduláveis  túnicas de Martha Graham.

Estabelecendo liames de contemporaneidade para o tradicionalismo flamenco, Pagés surpreende com a evolução expressiva dos seus movimentos de braços aliados a uma mascaração emotivo/dramática de seu rosto, ampliando as trajetórias entre o mistério e a paixão de sua performance. E conduzindo, referencialmente, na circularidade solene de seus movimentos à sacralidade da dança dos dervixes. 

Que sofre apenas um risco de quebra do clímax, no desnecessário aporte de um interregno de comicidade na progressão dramática da proposta, através de um quase invasivo esquete cênico/coreográfico ( Ay, qué calor!!!), com a participação coletiva da protagonista, cantores e instrumentistas.

Mas que tem, ainda, seus destaques nos ensimesmados cantares de Ana Ramón e nos vigorosos  improvisos cênicos  e “zapateados” de José Barrios, complementando-se a envolvência neste quadro plástico, teatral e coreográfico, no score musical ao vivo, entre o popular e o autoral(Maria Pagés/Rubén Levaniegos).

Na integralização de uma ideia estética capaz de estabelecer imediata e imersiva cumplicidade palco/plateia e confirmar as palavras de Saramago :

“Ela dança e, dançando, coloca em movimento tudo que a rodeia. Nem o ar nem a terra são iguais depois de Maria Pagés haver dançado”.
                                         
                                                Wagner Corrêa de Araújo


MARIA PAGÉS COMPAÑÍA está se apresentando em turnê brasileira, no Theatro Municipal/RJ, Teatro Alfa/SP e Sesc Palladium/BH, de 11 a 17 de maio.

12º PRÊMIO APTR : EM ANO DE RESISTÊNCIA, ENTRE SURPRESAS, OS VENCEDORES


SUASSUNA - AUTO DO REINO DO SOL


Aconteceu, finalmente, na última referente a 2017 entre as mais tradicionais e disputadas premiações do teatro carioca, a da APTR ( Associação dos Produtores de Teatro do Rio) que, ao lado do Shell, do Cesgranrio e do Botequim Cultural, tornou-se um dos mais disputados troféus concedidos às melhores peças do ano.

Em tempos de crise e de resistência que suspenderam, temporariamente, a entrega simultânea de dinheiro e troféus houve, no Teatro Net Rio, a cerimônia de premiação, desta vez apresentada pelos atores Renata Sorrah e Jonathan Azevedo.

E intermediada, para entrega dos prêmios de cada categoria, por representantes de grupos teatrais cariocas,   ora do circuito zona sul ora de comunidades e periferias, em democrática atitude assumida por seus organizadores.

Ampliada na sua homenagem especial tendo como tributo o meritório trabalho de formação teatral, com diversidade geracional, que vem sendo desenvolvido por Amir Haddad frente ao grupo Tá Na Rua, além de seu papel desempenhado há gerações com e a favor do teatro brasileiro.

Dando continuidade à tendência observada nas premiações já acontecidas deste ano, novamente os campeões foram o musical Suassuna – O Auto do Reino do Sol, além de Agosto e Tom na Fazenda. Mas, o que é normal em qualquer certame, com certa divergência na aceitação de algumas surpresas na seleção final.

TOM NA FAZENDA

Em ano obscuro politicamente e sob as ameaças não só da crise econômica, com seus radicalizados cortes de patrocínios e editais de cultura, como dos riscos de volta a medievas posturas morais/censórias, não faltaram oportunas  referências a estes fatos pelos artistas premiados.

A comissão julgadora, paralela ao colegiado da APTR com decisão exclusiva das indicações de produção, foi integrada por Beatriz Radunsky, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Luiz Felipe Reis, Macksen Luis, Maria Siman, Rafael Teixeira, Rodrigo Fonseca, Tânia Brandão e Wagner Corrêa de Araújo. Com o seguinte resultado:

Produção – Morente Forte (Um Bonde chamado Desejo)
EspetáculoTom na Fazenda
Direção – José Roberto Jardim (Adeus, Palhaços Mortos)
Ator – Ary Fontoura (Num Lago Dourado)
Atriz – Guida Vianna (Agosto)
Atriz Coadjuvante – Leticia Isnard (Agosto) e Lisa Eiras (Hamlet)
Ator Coadjuvante – Claudio Mendes (Agosto) e Fábio Enriquez (Suassuna – O Auto do Reino do Sol)
Autor – Bráulio Tavares (Suassuna – O Auto do Reino do Sol)
Cenografia – Carla Berri e Paulo de Moraes (Hamlet)
Figurino – Kika Lopes e Heloisa Stockler (Suassuna – O Auto do Reino do Sol)
Iluminação – Adriana Ortiz (Monólogo Público) e Paulo Cesar Medeiros (O Jornal)
Música – Alfredo Del Penho, Beto Lemos e Chico Cesar (Suassuna – O Auto do Reino do Sol) e João Callado (Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba)
Especial – Veríssimo Junior (pelo trabalho no Teatro da Laje)

                                                ( Wagner Corrêa de Araújo )


A VIDA NÃO É UM MUSICAL: LÚDICA RELEITURA CRÍTICA


FOTOS/CAROL PIRES

Entre idas e voltas, o musical com moldes brasileiros vem insistindo em incursões biográficas, especialmente de cantores/compositores, onde quase nada se cria e tudo se copia, com honrosas exceções, é claro. Numa mesma fórmula, ora de apelo à cronologia linear de vida, alterativa com obras musicais ligadas à trajetória do personagem real teatralizado, ora numa colagem antológica de acordes ou fatos representativos de uma época.

Sobram assim poucos espaços para um investimento mais ousado tanto na textualidade como, de maior exigência, no score musical. E ao espectador com um olhar  mais armado, como ao critico e ao jurado, prevalecem carências por uma mais impactante criatividade ou um mais incisivo teor investigativo, tanto quanto à revelação de novas possibilidades para o gênero.

Ao se deparar com um titulo por si só ironicamente questionador como A Vida Não é Um Musical cria-se, assim, uma expectativa de que algo de diferente deve estar por trás desta proposta e que não iremos, outra vez, enveredar por trajetórias biográfico/musicais.

E é isto, exatamente, o que parece reafirmar a pretensão do projeto dramatúrgico/musical de Leandro Muniz, já responsável por singularizada visão do suporte comediógrafo através de seu tão bem“sucedido”espetáculo nominado, propositalmente, como “Sucesso”.

Aqui ele desestrutura, em satirizada abordagem, com riso inteligente e demolidor, as bases “fantasiosas” da fábrica formular de “sonhos musicais”, fugindo do recontar histórias que nada tem de inusitado para os habituais frequentadores dos espaços teatrais.

No seu  tempo espacial convivem duas encenações, “a do universo dos contos de fadas da Disney e a do atual cenário político", em que seus personagens rompem o situacionismo edulcorado da ordem e da tradição abstraído da realidade, trocando o delírio lírico pelo pesadelo político/social da contemporaneidade brasileira.

Onde, tal e qual uma Alice, em proximidade referencial inclusive indumentária, Liz (Daniela Fontan) no acreditar em doces mistérios além do seu “País das Maravilhas", cai numa favela, é assaltada, ameaçada de estupro, conscientizando-se afinal de que não é nada saudável o que está fora dos verdes vales “Disney”.

Seguida, ainda, das decepções pelo abandono do seu dulcificado/idiotizado marido(Marcelo Nogueira), ao se deixar levar por  obscura cabala ideológico/político, da qual faz parte seu novo namorado(Nando Brandão). Mais as vilanias e violências, nas farsistas promessas de campanha do candidato à reeleição como governador (Thelmo Fernandes).

Complementando-se o alcance cênico, através de um elenco diversificado, entre boas revelações e o presencial de nomes já conhecidos, em convicto desempenho coletivo, com maiores ou menores destaques de acordo com seus papeis e intervenções.

Do protagonismo absoluto  de Daniela Fontan, Marcelo Nogueira e Thelmo Fernandes, à competente participação de Augusto Volcato, Ester Dias,Flora Menezes,Ingrid Gaigher, Joana Mendes, Nando Brandão e Udylê Procópio. 

Contando, também, com acertadas ambiguidades estilísticas tanto dos elementos cenográficos (Nello Marrese) entre o luxo e o lixo, aos figurinos(Carol Lobato), entre o bonito e o feio, ressaltados em luzes ambientais(Paulo Denizot).

Duplicidade extensível à espontaneidade da trilha sonora autoral(Fabiano Krieger), da romantização melódica a energizadas nuances de acordes pop/samba/funk, dividindo-se o comando musical com Gustavo Salgado, na concomitância de sons e gestualidades coreográficas(Carol Pires).

Explorando cenicamente, entre o risível e o grotesco, os desalentos da vida como um anti-musical no confronto verista com seus podres poderes, a direção conjunta (Leandro Muniz/João Fonseca) assume, artesanalmente, um jogo lúdico de marcações ferinas e bem humoradas. Com ironizados rompantes de desaforos e exageros, em surpreendente fronteirização do melodramático e do cafajestismo político.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


A VIDA NÃO É UM MUSICAL está em cartaz no Espaço Sesc/Arena,Copacabana, sexta e sábado, às 20h30m;domingo,às 19h. 105 minutos. Até 6 de maio

MARIA : INVENTÁRIO LÍRICO/MUSICAL DE TEMPOS NOSTÁLGICOS


FOTOS/ELISA MENDES

Mil vezes a obscuridade dos que amam, dos que cegam de ciúmes, dos que sentem falta e saudade. Nós somos um imenso vácuo, que o pensamento ocupa friamente. E, isso, no amanhecer de Copacabana”.

Antônio Maria, recifense, carioca por adoção, alma brasileira de cronista, compositor e boêmio. Atravessando as madrugadas boêmias cariocas,  da Copacabana anos 50, entre ser o inquilino solitário  ou o inveterado cúmplice de ébrias  noitadas de muita dor de cotovelo e  samba canção.

Tornadas crônicas em colunas jornalísticas, reunidas em livros, ou na composição de alguns antológicos momentos da MPB (apenas três destas canções – Valsa de Uma Cidade, Manhã de Carnaval e Ninguém Me Ama -já validando seu memorial) .

Locutor de programas radiofônicos de música e de esporte, com passagens pelo então nascente universo da televisão, além do convívio com alguns significativos nomes da época(Di Cavalcanti, Caymmi, Jorge Amado, Vinicius de Moraes, entre muitos outros). Sem esquecer de sua declarada idolatria artístico/passional por mulheres como Maysa e Dolores Duran.

O pior encontro casual da noite ainda é o do homem autobiográfico. Chega, senta e começa a crônica de si mesmo”.

Destas ensimesmadas incursões lúdico/literárias pela cotidianidade cultural/doméstica e a ambiência notívaga de uma cidade, ficou um inspirado legado literário e afetivo que conduziu à singular idealização dramatúrgica autoral e performática de Cláudio Mendes em Maria, sob o comando diretorial de Inez Viana.

Interiorizado, na sua nuance confessional de um convicto solilóquio, Cláudio Mendes com um sensibilizado tônus vocal e na fluência dum simpático e fluente gestual vai imprimindo o dimensionamento psicológico que o personagem exige.

Enquanto a artesanal conduta de Inez Viana vai concedendo um peculiar tratamento dramático à representação a partir de um núcleo narrativo simples que, na sua sobriedade cenográfica, prima pela funcionalidade tanto no figurino(Flávio Souza) como no desenho de luz( Paulo César Medeiros).

Com sombreados acordes cellistas ao vivo(Maria Clara Valle), melancolizando acertadamente passagens existenciais mais controversas do personagem, entre os sofridos silêncios  da  solidão, dos amores irrealizados e da própria  finitude de sua breve jornada. Alterativo com as canções a capella pelo protagonista, sob segura direção musical (Ricardo Góes). 

Transmutando o teor lírico/romântico das letras e dos escritos do cronista/compositor em ação num espaço/tempo simplificado, Maria estabelece um jogo teatral, materializado no entremeio de um musical e de uma textualidade monologal, capaz de criar sensoriais liames palco/palco e alcançar, assim, a cúmplice adesão de cada espectador.
                          
                                               Wagner Corrêa de Araújo


MARIA está em cartaz no Sesc/Copacabana(Mezanino), sexta e sábado, às 21h; domingo, às 20h. 70 minutos. Até 06 de maio.

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