TEATRO DECOMPOSTO : DESFIGURANDO A AÇÃO DRAMATÚRGICA CONVENCIONAL SOB METAFÓRICA VERBALIDADE


Teatro Decomposto. Matéi Visniec/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção Concepcional. Novembro/2025. Nil Caniné/Fotos.


“Não, eu não acredito que podemos entender tudo. Não acredito que tenha um sentido em tudo que contamos” (Matéi Visniec). Estas palavras enunciadoras definem o processo de criação do dramaturgo franco-romeno enquanto conceitualizam bem sua peça Teatro Decomposto ou Homem-Lixo, original de 1993.

Depois de algumas de suas adaptações para os palcos brasileiros, incluindo especialmente as virtuais no período pandêmico, esta obra de Visniec tem um caráter singular em sua proposta autoral inovadora, sendo classificada por ele como um texto modular ou um espetáculo dialógico de monólogos.

Priorizando apenas uma única exigência - a liberdade sem limites aos seus encenadores, não só na escolha múltipla entre o total de 24 narrativas modulares dramatúrgicas, como numa opcional encenação, sempre no formato de protagonizações monologais, em que as falas podem incluir a participação de outros atores.

Toda esta estética colocando Matéi Visniec na linhagem do legado de grandes autores do teatro do absurdo, desde seu conterrâneo Eugène Ionesco passando, ainda, por Samuel Beckett, Harold Pinter e Edward Albee. Sendo considerado o mais recente deles como um característico “enfant terrible” do teatro contemporâneo.  

Dando continuidade às inúmeras montagens em nossos palcos das obras de Matéi Visniec, a maioria delas sempre com aplauso da critica e do público, Ary Coslov realiza uma das mais surpreendentes representações da temporada 2025 com a peça titulada Teatro Decomposto, sob acurada tradução de Luiza Jatobá.


Teatro Decomposto. Matéi Visniec/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção Concepcional. Com Júnior Vieira, Marcelo Aquino, Guida Vianna, Mário Borges, Dani Barros.  Novembro/2025. Nil Caniné/Fotos.


Não só por sua inventiva direção concepcional, como pela presença de um elenco de notáveis de duas gerações do teatro carioca e brasileiro, a saber - Guida Vianna, Mário Borges, Marcelo Aquino, Dani Barros e Júnior Vieira.  Além de reunir uma artesanal equipe técnica-artística, indo da iluminação ao figurino, mais a direção de movimento e preparação corporal.

O essencialista preenchimento da caixa cênica acontece através de uma mesa frontal e cadeiras laterais, de onde se desloca o elenco ou ecoam falas complementares ao dimensionamento da performance. Sob uma sempre qualitativa iluminação de Aurélio de Simoni, em que prevalece o equilíbrio entre efeitos ambientais vazados e, vez por outra, marcações focais.

O preciso uso da direção de movimento (Lavínia Bizzoto e Alexandre Maia) nos quadros cênicos transmutando o espaço num território de simultâneos delírios verbais, sincronizados pela unicidade de indumentárias formatadas como uma espécie de macacões em tons neutros, em outro destes acertos do figurinista Wanderley Gomes.

Onde cada ator exerce sua veemência personalista em textos/módulos que viabilizam temas sinalizados pela incomunicabilidade, confinamento, opressão, angústia, consumismo. Tratados, aqui, numa construção fabular, no entremeio do drama burlesco e de um riso sarcástico no entorno da condição humana, imersa em no sense onírico de pesadelo e caos.   

Ficando difícil destacar qualquer um dos intérpretes sem falar dos outros, todos eles sintonizados sob potencial impacto na personificação  da contundência de situações, ao mesmo tempo absurdas e reflexivas, indo do irracional à tensão dos transes humanos.

Na expressiva maturidade de Guida Vianna sequenciada numa mesma vibração pela densidade  de Mário Borges, extensiva à envolvência da linguagem atoral de Marcelo Aquino aos instintivos recursos performáticos de Dani Barros e a reveladora convicção do talento de Júnior Vieira.

Tudo convergindo para o luminoso resultado da concepção direcional imprimida por Ary Coslov, em provocador inventário dramático sob  contraponto crítico, no alcance de um incisivo jogo teatral ao vivo, ecoando o ideário estético-político do livre exercício da construção teatral de Matéi Visniec : “Eu me considero um autor de um teatro engajado que não faz parte da indústria do divertimento e busca acordar as consciências dormentes”...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo  

       

                                                                                                            

Teatro Decomposto está em cartaz no Teatro da Casa Laura Alvim/Ipanema, sextas e sábados às 20h; domingo, às 19h; até domingo, 30 de novembro.  

UM JULGAMENTO – DEPOIS DO INIMIGO DO POVO : CONEXÃO DRAMATÚRGICA E RECONSTRUÇÃO FÍLMICA SOB IRRADIANTE COMPASSO DE DUAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Um Julgamento - Depois do Inimigo do Povo. Christiane Jatahy /Direção Concepcional. Outubro/2025. Caio Lírio/Fotos.


Uma diferencial releitura à luz da realidade brasileira transmuta a emblemática obra do norueguês Henrik Ibsen – Um Inimigo do Povo – numa das mais surpreendentes representações da temporada teatral 2025, sob o signo da volta do ator Wagner Moura aos palcos, quase duas décadas após sua dedicação exclusiva à performance cinematográfica,

E foi a partir do encontro da diretora Christiane Jatahy com Wagner Moura que surgiu o ideário da peça Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo num especular conceitual de ficção e realismo, trazendo sua ambientação narrativa norueguesa do  século XIX, de uma pequena província para uma região do interior brasileiro de hoje. Em reconfiguração dramatúrgica tríplice, incluindo o reconhecido roteirista Lucas Paraizo.

No caso, um balneário turístico fator econômico fundamental para manutenção social de seus habitantes e que, diante da acusação  de que suas águas teriam se tornado poluídas, sob denúncia levantada pelo  médico e irmão do prefeito, coloca-os em confronto, usando ambos a nominação original da peça de Ibsen.

De um lado o bravo Thomas Stockman (Wagner Moura), como um médico dublê de cientista, questionando a qualidade sanitária do balneário e, de outro, o conservadorismo de seu irmão e prefeito Peter Stockman (Danilo Grangheia) não admitindo o referido diagnóstico ecológico, pelo temor de que a comunidade vá à falência com o fim da maior fonte de renda local.


Um Julgamento-Depois do Inimigo do Povo. Christiane Jatahy/Wagner Moura/Lucas Paraizo/Dramaturgia. Outubro/2025. Caio Lírio/Fotos.


O que entre recíprocas apontações de culpa conduz a situação a um julgamento num tribunal onde se defrontam o acusado tornado réu - Thomas Stockman – e seu irmão prefeito da comunidade – Peter Stockman, diante de um júri integrado por Petra Stockman (Julia Bernat) filha do indiciado e, ao mesmo tempo, atuando  na defesa como sua advogada.

Sendo estes os personagens protagonistas, ao lado da intervenção, vez por outra, entre depoimentos presenciais ou audio visuais mostrados num telão frontal, mais a participação no palco de 12 integrantes da plateia escolhidos como jurados. Numa concepção cenográfica (Thomas Walgrave) que transforma a caixa cênica num tribunal de júri diante do público que compõe sua audiência.

O palco, pragmaticamente assim configurado, quebra os limites da quarta parede, entre a verdade e o imaginário, entre a representação e a realidade, indo mais longe ainda, pela concepção direcional de Christiane Jatahy com a ressignificação do uso habitual dos elementos que compõe uma performance teatral, processo inventivo  que tem sinalizado sua  estética dramatúrgica.

Luzes propositalmente vazadas, em dúplice ofício do cenógrafo Thomas Walgrave, sem qualquer graduação de suas tonalidades, salvo no epílogo com o incisivo monólogo de Wagner Moura, este revelando sempre uma força rompante, cativante e humana em seu papel.

Nenhuma interveniência de ruídos sonoros ou acordes musicais, além de figurinos (Marina Franco) assumidamente cotidianos, salvo o do réu e o do acusador, subliminarmente, mais cerimoniosos segundo o costume jurídico. Sem deixar de referenciar aqui o significativo encontro de duas linguagens artísticas - o cinema e o teatro. 

Não só  através de projeções fílmicas pré-gravadas como pelo uso de câmeras presenciais que propiciam uma conexão documental imediata com o universo das plataformas digitais, enquanto não deixa de advertir sobre o risco das fake news e sua contaminação no agir e no pensar. Ampliando, assim, as perspectivas para tornar mais verista a coesiva integração palco/plateia direcionada ao veredito final.

Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo traz sólida estrutura interpretativa, sob a exponencial atuação de   um elenco de craques (Wagner Moura, Danilo Grangheia,Julia Bernat), resultado do empenho sempre vanguardista da direção-concepcional de Christiane Jatahay, em seu convicto propósito por um teatro desentorpecedor.

Consistente como espetáculo, ao priorizar seu intencionalismo crítico e sua missão esclarecedora contra todas as formas de retrocesso na contemporaneidade, pela corajosa autencidade, afinal, de sua promoção reflexiva do encontro entre o teatro e a vida...

 

                                            
                                              Wagner Corrêa de Araújo

   


Um Julgamento - Depois do Inimigo do Povo, pós instantâneas e concorridas temporadas apenas em Salvador e no CCBB/RJ, cria expectativas para uma volta ao cartaz, ampliando seu circuito de representação Brasil afora.

MACBETH / TMSP : ÓPERA DE VERDI SOB FUNCIONAL MUSICALIDADE ENTRE DESACERTOS CÊNICOS

Macbeth /Ópera de G. Verdi/TMSP Elisa Ohtake/Concepção Cenográfica-Direcional. Novembro/2025. Rafael Salvador / Fotos

 

Macbeth foi a primeira das três óperas de Giuseppe Verdi inspiradas em William Shakespeare, com sua original versão, em 1847, sob um libreto de Francesco Maria Piave. Na primeira fase de sua trajetória de compositor, seguida na finalização de seu legado operístico, por duas obras primas com o mesmo ideário - Otello (1887) e Falstaff (1893).

Enquanto em Otello e em Falstaff, sua escrita musical tem o alcance de suas mais perfeccionistas óperas, Macbeth mesmo não sendo tão absoluta na demonstração de sua estética composicional, traz passagens solistas e corais que fizeram com que fosse elogiada pela crítica e aplaudida pelo público.

Mas a sua adaptação narrativa-musical nunca teve o impacto dramático de Otello nem a força cômica de Falstaff, única ópera verdiana neste gênero. E, talvez por isto, tem sido apresentada, ora por uma fidelidade mais próxima da tragédia shakespeariana, ora por releituras conectadas aos avanços do universo operístico contemporâneo.

No primeiro caso, tivemos uma exemplar versão personalista de um nome histórico do teatro brasileiro e grande aficionado da ópera – Sergio Britto, em 2005, para o Municipal carioca. E pelo outro lado, uma polêmica direção cênica por Bob Wilson, em 2012, no Municipal paulista, dividiu as opiniões diante do seu provocador desafio aos pilares da tradição.


Macbeth /Ópera de G. Verdi/TMSP Elisa Ohtake/Concepção Cenográfica-Direcional. Novembro/2025. Rafael Salvador / Fotos


E, agora, na temporada 2025 do TMSP, é a vez de Elisa Ohtake um conceituado nome da nova geração brasileira de artistas plásticos e cenógrafos, não por acaso, neta da memorável Tomie Ohtake. Que, anos atrás, surpreendeu com sua concepção cênica usando pinturas autorais em Madama Butterfly, 1988, no Municipal carioca, seguida de outra versão, 2008, para o similar palco paulista.

Elisa Ohtake, aqui, ficando responsável não só pela cenografia como pela direção cênica concepcional, lembrando que esta é a sua incursão inicial no ofício operístico, dando vazão a sua experiência prática em espetáculos especificamente teatrais.

Numa proposta minimalista de evocação futurista onde a caixa cênica é preenchida por elementos de plástico inflável de cores neutras - dois puffs, um escorpião e uma serpente - estes dois últimos como simbólica figuração da maldade e da perfídia traiçoeira dos personagens Macbeth e Lady Macbeth.

Diante da mobilidade de um painel frontal e nas referências metafóricas no design central ao círculo dourado da coroa real. E priorizando, em apelo sensorial, a opressão claustrofóbica dos seus personagens em cena, circundados pela crueldade da trama, com mortes seguidas e inapagáveis vestígios de sangue. 

Sempre sob prevalente sotaque sombrio no uso de efeitos luminares (Aline Santini) e tonalidades discricionárias no figurino atemporal com sutis insinuações de época (Gustavo Silvestre e Sonia Gomes).

A regência do maestro Roberto Minczuk, frente à Orquestra Sinfônica Municipal, sendo direcionada com acurado empenho, na distinção dos acordes lentos e de agitatos dramáticos. E o Coro Lírico Municipal, conduzido por Hernan Sanchez Arteaga, sabendo brilhar na marcante cena Patria oppressa e no apoteótico final Macbeth, Macbeth ov'e?.  

Nos papéis protagonistas alternativos saindo-se bem no domínio de sua tessitura de barítono - Douglas Hahn (Macbeth), embora não tenha a mesma química cênico-vocal da soprano Olga Maslova (Lady Macbeth), hipnotizante em sua ária Vieni t’affreta. Com seguras atuações solistas, ainda, do baixo Andrey Mira (Banquo) e do tenor Enrique Bravo (Macduff).

A direção cênica-concepcional de Elisa Ohtake vai num dimensionamento inventivo no entorno da ópera, revelando uma encenação mais direta e seca nas situações dramáticas e seus desfechos violentos, mas sem comprometer seu rendimento conceitual.

Mas ao não saber como bem usar instantâneos interregnos fílmicos, durante a troca de cenários nos entreatos, não consegue segurar sua convicta gramática cênica. Ao mostrar Lady Macbeth surpresa diante de uma garrafa em seu camarim que parece ser de energizante sexual ou Macbeth na parte externa do Teatro com um destes sacos gigantes de pipoca. 

Provocando risos e vaias compulsivas pelo mau gosto destes recursos histriônicos e quebrando, afinal, toda amarração da tragicidade de uma intenção cênica-direcional que, até então, parecia ser a de um sério jogo operístico...

 

                                        Wagner Corrêa de Araújo

      

Macbeth, ópera de Verdi, está em cartaz no TMSP, com elencos alternativos nos papéis protagonistas, até o próximo domingo, 09 de novembro.

FRIDA / BALLET DO THEATRO MUNICIPAL/RJ : CONTUNDENTE CRIATIVIDADE PREENCHE O PALCO COM INTROSPECTIVA PINTURA COREOGRÁFICA

Frida/Ballet do Theatro Municipal/RJ. Reginaldo Oliveira/Concepção Coreográfica. Outubro/2025. Daniel Ebendinger/Fotos. 

 

"Não pinto sonhos, pinto a minha realidade” - assim se autodefinia a pintora mexicana Frida Kahlo cuja trajetória artística-existencial a tornou um símbolo de resistência feminina, desde as dores físicas que marcaram sua corporeidade, à sua linguagem plástica-estética plena de modernidade ao evocar, em suas criações, a tradição popular indigenista.

Fazendo sua tragédia pessoal se estender a um casamento desejado com o muralista Diego de Rivera, interrompido e, simultaneamente, retomado, vendo de perto a sua infidelidade ao ter filhos com a própria irmã, enquanto ela, impossibilitada por suas moléstias, nunca poderia concebê-los, apesar de tentar mesmo sofrendo abortos sequenciais.

Sublimando seus desalentos através de assumidas convicções marxistas compartilhadas com seu consorte matrimonial ou, então, desafiando o conservadorismo moral e social da época por atitudes comportamentais que a tornaram um símbolo precursor do vir a ser feminino e do movimento emancipatório preconizado pelo LGBTQIA+.

E é, assim, como o ideário do coreógrafo Reginaldo Oliveira, um destes destacados talentos brasileiros no universo da dança além fronteiras, na ressignificação da vida e da obra da artista, por um convicto reflexo especular, através da expressiva proposta estética de seu balé Frida, se identifica pela simbologia de paralelas vocações artísticas, na conexão da dança com a pintura, talvez, quem sabe, para assumir as palavras dela - “Sou o assunto que conheço melhor”.


Frida/Ballet do Theatro Municipal/RJ. Reginaldo Oliveira/Concepção Coreográfica. Márcia Jaqueline/ Protagonismo Titular. Outubro/2025. Daniel Ebendinger/Fotos. 


Depois de uma celebrada estreia, no início de 2025, pelo Salzburger Landestheater, na cidade austríaca de Mozart, onde ele exerce o ofício de coreógrafo, como se confirmasse pela auto definição de Frida, a sua própria e personalista carreira, desde os anos em que, ainda na Comunidade da  Maré, sonhava com a dança como razão futura de ser e de existir.

O que demonstra Reginaldo Oliveira, com extrema fidelidade à sua conceituada proposta original para o mundo de Frida,  trazida agora diretamente de Salzburg ao Ballet do Theatro Municipal/RJ num reencontro afetivo com esta Cia, na qual já atuara como bailarino. Incentivado, então, por Jorge Texeira, agora por um destes felizes acasos do destino, o  atual coreógrafo e supervisor artístico junto ao Diretor Geral Hélio Bejani.

Retomando a inicial configuração cênica (Mathias Konfruss) à base de painéis que sugestionam, metaforicamente, telas de pintura, vistas pela frente e por trás, com suas armações de madeira. Enquanto as aquareladas cores e peculiares acessórios artesanais, sob referenciais ao indigenismo na arte popular mexicana, completam um diferencial figurino (Judith Adam). Onde prevalecem  imagens que, de imediato, estabelecem uma poética paisagem cênica, inspirada em subliminares sotaques dos 55 auto retratos, o grande legado estético da obra pictórica de Frida Kahlo.

Num dimensionamento coreográfico imprimido por Reginaldo Oliveira que reflete ao mesmo tempo, os dramas psicofísicos da artista, materializando seu processo criador no uso da corporeidade dos bailarinos, com um surpreendente resultado, tanto nos solos e duos, como nas prevalentes atuações grupais. Sob uma acertada trilha sonora baseada em conhecidas canções mexicanas, conferindo maior autenticidade ao enredo do balé.

Destacando-se, especialmente, no primeiro elenco, a carismática atuação de Márcia Jaqueline no protagonismo titular como Frida, sabendo insuflar uma cativante dimensão artística ao seu personagem, com absoluto perfeccionismo técnico conectado a um irradiante expressionismo gestual. Repercutindo em sua atuação o mais dramático grito de Frida : “Meu corpo carrega em si todas as dores do mundo”.

No alcance de sua gramática cênica transmissora de sensorial revelação, como a de uma pintura ao vivo e a cores, sinalizada por energizadas texturas de movimento, em performance exemplar do Ballet do Theatro Municipal. Capaz de lembrar um oportuno conceitual de Kazuo Ohno -“Dançar é como desenhar uma linha na tela”. Ou, ainda, a própria Frida Kahlo como um corpo-linguagem em movimento, através de cada pincelada, encontrando uma fuga do seu permanente abismo existencial. E por emblemática justificativa de seu destino, sintetizando o difícil suporte da condição humana: “Pés para que os quero, se tenho asas para voar”...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

     

Frida/ BTM /RJ, em curta temporada no Municipal, estreou no último sábado, 25 de outubro, ficando em cartaz, até a próxima sexta-feira, dia 31/10, sempre às 19h, com elencos alternativos nos principais papéis.



DONATELLO : AFETIVO RESGATE MEMORIAL, EM COMPASSO DRAMATÚRGICO-MUSICAL, DAS ALEGRIAS E DESALENTOS DA CONDIÇÃO HUMANA

 

Donatello. Vitor Rocha/Dramaturgia e Performance. Victória Ariante/Direção Concepcional. Outubro/2025. Julio Aracak/Fotos.


Através do recente espetáculo Donatello, sob um ideário dramatúrgico-musical, o multitalento dos jovens Vitor Rocha, ator/dramaturgo, e Elton Towersey, compositor, ao lado de  Victória Ariante, diretora, e Lucas Drummond, produtor, se reencontram para repetir, com a mesma paixão cênica e  acerto revelador o que, há dois anos, representou a peça Se Esta Lua Fosse Minha.

Em outra criação capaz de fascinar um público de todas as idades por sua proposta original em que, a partir do gosto simultâneo de um avô (Donatello) e seu neto (Amendoim) por sorvetes, a partir de um referencial comparativo aos mais diversos sabores, são mostrados os momentos de grande alegria, interrompidos pelo desalento súbito quando Donatello é acometido pelo mal de Alzheimer. 

A narrativa dramatúrgica, numa dúplice criação do ator Vitor Rocha, assume o dimensionamento de um monólogo autoral-performático no qual ele se empenha na representação do seu personagem sob um sotaque confessional, ao mesmo tempo em que atua como intérprete das canções, com letras suas e composição musical de Elton Towersey, executadas ao teclado por Felipe Sushi.


Donatello. Vitor Rocha/Dramaturgia e Performance. Victória Ariante/Direção Concepcional. Outubro/2025. Julio Aracak/Fotos.


Numa cenografia (Batata Rodriguez) despojada em que o espaço é preenchido apenas pela mutabilidade funcional de uma mesa e cadeira, além de pequenos materiais e uma bicicleta, aos quais o ator recorre para evocar, em citações de pura delicadeza poética, a presença, em contraponto metafórico, do avô Donatello, incluindo-se, aqui o teclado (Felipe Sushi) que acompanha toda a narrativa oral e as canções, servindo o pianista, vez por outra, como contrarregra.

O personagem protagonista é indicado, aqui,  pelo apelido de Amendoim, dado pelo avô carinhosamente  mas por um triste acaso,  já dentro da confusão mental criada pelo Alzheimer e a consequente dificuldade de reconhecer seu entorno familiar, distinguir a pronúncia e o sentido das palavras que começa a embaralhar.

Não conseguindo esquecer apenas este sabor amendoim entre os que, de um para o outro, avô e neto, compartilhavam nas jornadas cotidianas em uma sorveteria. Este último, de um vidro pleno de lírica magia, vai retirando os palitos de sorvete, enquanto estabelece significados simbólicos que ele compartilha com alguns espectadores tornados personagens, sendo escolhidos no prólogo.

Amendoim trajando uma indumentária cotidiana que o distingue, em sotaque atemporal, com as transições da infância à idade adulta, no interregno de uma dramática situação ascendente até a passagem terminal de seu favorito ente querido o avô - Donatello – considerado por ele, no enfrentamento de seu cruel diagnóstico, como um verdadeiro herói.

O que é potencializado por uma ambiental iluminação (Wagner Pinto) vazada, em que todas as idas e vindas na passagem dos anos, do passado ao presente, e de volta ao futuro,  são sinalizadas sempre pela lembrança imperecível do avô.

Acrescida, ainda, da citação de filmes que, de uma maneira ou outra, se tornaram icônicos em sua vida, à causa de provocar viagens pelos espaços siderais da mente, tornando-se, também, um elo direcionador de sua própria condição humana.

Destacando-se Vitor Rocha com sua coesão interpretativa autor>ator  enquanto personagem, priorizando um apelo sensorial, no contraste afetivo de suas nuances do riso juvenil ao drama, com inspirada musicalidade e oportuna reflexão, a partir do acertado domínio direcional  de sua gramática cênica  por Victória Ariante.

Despretensioso por sua singularidade Donatello, este pequeno musical, acaba conquistando corações e mentes pela envolvência de sua tocante dramaturgia (Vitor Rocha), sabendo imprimir verdade e sinceridade na abordagem do legado das memórias familiares. E que podem, sobretudo, se identificar, em processo carismático, com as vivências, alegres e tristes, na trajetória de cada um de nós...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

Donatello está em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, quintas e sextas às 20h; até o dia 31/10, com possibilidades de uma segunda temporada em outro espaço teatral.

ESTHER WEITZMAN CIA DE DANÇA / MATÉRIA : IMERSIVA PROPOSTA COREOGRÁFICA INSPIRADA NOS MOVIMENTOS CÓSMICOS

 

Esther Weitzman Companhia de Dança / Matéria. Esther Weitzman /Direção Coreográfica/Concepcional. Outubro/2025. Renato Mangolin/Fotos.


A partir de seu natural fascínio pelas leis da física que imprimem a conexão do permanente ritmo do universo cósmico ao reflexo especular do movimento humano, a coreógrafa nominal e diretora titular da Esther Weitzman Companhia de Dança apresenta a sua mais recente criação - Matéria.

Junto à participação criativa de seus coreógrafos/bailarinos, remetendo aos princípios enunciadores da física ao trazer a referência de um dos mais respeitados físicos da atualidade – o brasileiro Marcelo Gleiser, através de seu livro A Dança do Universo. Descrevendo, sob o ir e vir das partículas atmosféricas, o eterno frenesi das mutações da Matéria em compasso de uma dança dos corpos celestes entre a sua criação e sua destruição, num irrestrito ciclo de renovação e de substituição.

O que, além de registrar neste propósito, os 25 anos de atuação da Cia de Esther Weitzman no panorama da dança contemporânea carioca e brasileira, promove o encontro em cena de seu cast de bailarinos criadores - Bia Peixoto, Edney D’Conti, Fagner Santos, Milena Codeço, Rodrigo Gondim e Pedro Quaresma, este último em atuação alternativa, contando, também, com a valiosa colaboração artística de Alexandre Bhering.


Esther Weitzman Companhia de Dança / Matéria. Esther Weitzman /Direção Coreográfica/Concepcional. Outubro/2025. Renato Mangolin/Fotos.

Preenchendo a caixa cênica, em proposta minimalista, sem quaisquer elementos materiais, os bailarinos usam indumentárias (Manuela Weitzman) à base de malhas, collants, saias, em tons neutros ressaltados sob precisas variações luminares (Sara Fagundes). Ora vazadas ora focais, com prevalência de sombras entre cores, propiciando uma bela plasticidade espectral à corporeidade dançante.

Extensiva à correspondência do alcance de funcionalidade absoluta na sua dúplice releitura musical (Gabriel Salsi e João Mello) sobre um tema original da compositora norte-irlandesa da nova geração Hannah PeelNeon 1:Shinjuku. Obra sinalizada por seu compasso energizado em percussiva fusão de acordes eletroacústicos, teclados, cordas, sintetizadores, num andamento em moto perpétuo, repercutindo ali um eco sensorial ininterrupto que parece vir dos espaços siderais.

Transmitindo-se como ondas à expressiva dramaturgia corporal dos cinco bailarinos, na fluidez dos movimentos apresentados sob pulsante coesão gestual, alternada entre formatações grupais ou em instantâneos solos. Numa gramática da dança que une o ideário coreográfico de Esther Weitzman à contribuição personalista dos bailarinos-criadores.

Expandindo-se a representação desta obra, titulada bem a propósito como Matéria, na proporção de um desenvolvimento contínuo, capaz de revelar sempre uma espontaneidade contagiante. Tornando imediata, através desta potencial gestualidade física, uma subliminar identificação emocional bailarinos/espectadores.

Esta sua busca investigativa no processo de criação acaba por conduzir a um encerramento, com traços de sotaque apoteótico, provocado pela iluminação ao sugestionar projeções estelares, como se seus intérpretes estivem imersos numa performance temporal-espacial,  integrando a condição humana a uma dança cósmica.

Cada vez mais abordada por celebradas cias contemporâneas de dança, incluídas recentes experimentações estético-coreográficas pelos bailarinos da Nederlands Dans Theater no Observatório de Leiden, Países Baixos. E, agora, numa iniciativa oportuna e inédita pela Esther Weitzman Companhia de Dança.

E que merece, sobretudo, ser identificada com uma reflexiva definição  sobre o que isto significa em relação à acertada escolha do titulo Matéria para esta performance, ao estabelecer um liame entre a ciência da Física e a arte da dança.  

No questionamento comparativo da matéria constitutiva do movimento humano, direcionado pelas leis da natureza, com o deslocamento cósmico dos corpos celestes, sob os princípios da Física, cabendo certamente, aqui, neste confronto crítico, uma simbólica conceituação do bailarino e coreógrafo americano Ted Shawn : “A dança é a única arte da qual nós mesmos somos a matéria-prima da qual é feita”...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 

Matéria/Esther Weitzman Companhia de Dança, depois da temporada no Mezanino/Sesc/Copacabana, entra em cartaz no Teatro Cacilda Becker/Catete, a partir do dia 24/10; na sexta às 19h30; sábado e domingo, às 18h, até o dia 02/11. 

O MOTOCICLISTA NO GLOBO DA MORTE : INSTIGANTE DRAMATURGIA QUESTIONA NOSSA RELAÇÃO DIÁRIA COM A VIOLÊNCIA



O Motociclista no Globo da Morte. Leonardo Netto/Dramaturgia. Rodrigo Portella/Direção Concepcional. Du Moscovis / Protagonista. Outubro/2025.Catarina Ribeiro/Fotos.


Desde a ancestralidade, através do teatro grego clássico, passando pelas tragédias shakespearianas, indo da proposta artaudiana até as representações cênicas da contemporaneidade, há claras demonstrações como o teatro pode, antes de tudo, desafiar a condição humana  denunciando sua intrínseca proximidade com a violência.

Este é o tema da mais recente peça de Leonardo Netto, um dos mais significativos nomes da última geração teatral brasileira - numa singular e simbólica titulação, como O Motociclista no Globo da Morte, ecoando no surpreendente empenho performático por Du Moscovis, sob mais um dos viscerais comandos concepcionais de Rodrigo Portella.

Numa narrativa formatada como um monólogo confessional, capaz de provocar o desassossego do espectador com sua incitante narrativa no entorno de um personagem de assumido comportamental pacifista que, por imprevistas circunstâncias, se transforma num emissário da violência homicida.

O ideário da sequencial transmutação psicofísica, a começar por uma textualidade conectada à crua revelação do desalento de um personagem antiviolência que, aos poucos, vê sua verdade interior sendo desmontada e substituída por ascendente niilismo existencial. Ao se deparar, numa espécie similar de botequim suburbano, com a tipicidade machista de um cliente, por ironia, tendo o mesmo nome dele - Antônio.


O Motociclista no Globo da Morte. Leonardo Netto/Dramaturgia. Rodrigo Portella/Direção Concepcional. Du Moscovis / Protagonista. Outubro/2025.Catarina Ribeiro/Fotos.


Que, depois de umas e outras doses alcoólicas, faz provocações eróticas, entre palavrões e gestos, à simples garçonete que traz as cervejas e os petiscos. Repelido por ela, sua raiva se volta contra um vira-latas esfomeado, na pulsão de uma crueldade sanguinária.

Enquanto a radicalidade de sua insensatez direciona-se, também, para a incômoda quietude do outro Antônio, ao sentir que este, atônito, fixa nele seus olhos de espanto e revolta pela violência empregada contra o indefeso animal. Iniciando-se, então, um delirante processo metafórico de ambígua identificação psicanalítica, entre o real e o imaginário, do bem para o mal.

Diante de tudo em que acreditou ou repeliu como inaceitável, sempre estremecido ao ver imagens dos matadouros de gado, suínos e aves, naquele súbito assombramento de sua condição humana, pela usurpada pureza do “eu” original confrontado, é convertido, então, num “anjo vingador”.

Numa concepção cenográfica (Rodrigo Portella), assumidamente minimalista, onde o ator protagonista, com indumentária (Gabriella Marra) cotidiana, está sentado numa cadeira no centro do palco, único elemento material visível. Já no inicio do espetáculo, Du Moscovis ao ficar em silêncio, numa absoluta quietude, movimentando nervosamente as mãos, até começar a falar com discricionária projeção verbal.

Sob uma vazada iluminação (Ana Luiza de Simoni) que chega até os espectadores, em performance intimista do personagem sugestionando estar diante de um encontro confessional, cara a cara, com cada um deles. Como se representassem, ali, o papel de um psiquiatra ou participassem de um interrogatório policial.

Ouve-se uma quase imperceptível interferência de acordes sonoros (André Muato) ao longe. O clima psicológico mudando quando o ator imprime, de forma consciente, desconforto e insegurança para revelar a continuidade de fatos brutalizantes, personalistas ou em âmbito global (referenciados pelo verismo de citações documentais).

As luzes se tornando sombreadas pela ascendente gravidade das descrições vão precipitando o retorno ao silencio inicial do ator, até o pleno escurecimento. Em subliminar dimensionamento alegórico do pânico cotidiano levando o espectador a indagar-se sobre seu próprio convívio com a violência num mundo cada vez mais desumanizado.

A vigorosa expressão performática do ator (Du Moscovis), a irradiante contundência da linguagem teatral (Leonardo Netto), a envolvência sensorial palco/plateia alcançada por arrebatadora direção/concepcional (Rodrigo Portella) contribuindo para, afinal, fazer de O Motociclista No Globo da Morte um transcendente instante da arte de representar...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 

O Motociclista no Globo da Morte está em cartaz no Teatro Poeira / Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h; até o dia 14 de dezembro.

O ANO NOVO CHINÊS / BALÉ NACIONAL DA CHINA : O QUEBRA NOZES TRANSMUTADO SOB UMA DIFERENCIAL RELEITURA ENTRE A TRADIÇÃO E A INOVAÇÃO




GuoNian / Balé Nacional da China. Zhao Ming/Concepção Coreográfica Direcional. Outubro/2025. Fotos/Divulgação/Midiorama.



Desde sua estreia em São Petersburgo, dezembro de 1892, o balé Quebra-Nozes de Tchaikovsky, cujo libreto partiu de um conto gótico de E.T.Hoffman, tornou-se um símbolo coreográfico para representar a comemoração da noite de Natal, pelo dúplice carisma de sua composição musical, como pelo encantamento de seu enredo, sob um sotaque de magia absoluta.

Ainda que algumas versões contemporâneas tenham dado uma outra conotação à coreografia original de Marius Petipa, como a de Mark Morris transformando os presentes natalinos em brinquedos eletrônicos ora ecoando uma crescente preferencia infantil pelos efeitos digitais, ou indo mais longe, na ousadia de acordes jazzísticos e ritmos Hip-Hop.

Enquanto a releitura da obra original pelo Balé Nacional da China, mantendo quase na íntegra a partitura de Tchaikovsky, insere sutis acréscimos de sonoridades tradicionais daquele país, o que se estende às alterações quanto aos seus personagens característicos para, assim,  exemplificar a celebração oriental do Ano Novo Chinês,  sob signo lunar, e que, em 2025,  aconteceu na data 29 de janeiro.

A coreografia chinesa de autoria de Zhao Ming é de 2010 e acabou se tornando um dos maiores êxitos internacionais do Balé Nacional da China, ao lado  de “Lanternas Vermelhas” de Zhang Yimou, coreógrafo e cineasta, aplaudido também pela sua adaptação cinematográfica, tanto o balé apresentado no Brasil em 1995, como o filme em 1991.  


GuoNian / Balé Nacional da China. Zhao Ming/Concepção Coreográfica Direcional. Outubro/2025. Fotos/Divulgação/Midiorama.



A narrativa de O Ano Novo Chinês (GuoNian) começa por uma feira com preparativos para a sua passagem, mostrando transeuntes com indumentárias de malhas coloridas, portando máscaras de animais que simbolizam o zodíaco chinês. Já demonstrando uma conexão de movimentos entre as bases clássicas e gestualidades, com assumida personifição de danças típicas.

Nas ambientações e no design cenográfico (Gong Xun) prevalece a plasticidade evocativa de uma milenar tradição popular, com nuances pictóricas imprimindo tonalidades ora sóbrias, ora artesanais, incluída a presença de elementos materiais que preenchem a caixa cênica, sob o brilho dos efeitos luminares (Han Jiang) .

Já na sala residencial acontecem os ultimatos para a ceia de Ano Novo e é quando se revela o presente contendo um Quebra-Nozes, enquanto os convivas familiares são retratados numa espécie de fotos instantâneas ao vivo, projetadas num painel. O boneco dado à menina Yuanyuan (no lugar que era de Clara) é o único elo natalino que referencia a obra original. A partir daí, com o adormecer da protagonista abraçada ao brinquedo, sucedem-se as cenas imagéticas, recheadas de sonhos e fantasia.

Onde a habitual batalha dos ratos é substituída por figurações animais do fabulário mítico chinês, sob vigoroso gestual acrobático, sendo sequenciada por outras inovações como o episódio da Rainha Açucarada como uma Rainha Garça, acompanhada de um grupo de bailarinas/garças com  tutus brancos trazendo um penacho ou aparentando peças de porcelana, todas em posição de pontas com perfeccionismo acadêmico.

Aliás, é sob uma rigorosa técnica clássica que se destaca o casal protagonista, carismático no celebrado Pas-de-deux amoroso, com a mesma estética expressiva nestes personagens do balé, equiparando-os aos grandes intérpretes do mundo ocidental.   

Destaque como linguagem própria são as danças características do Ato II, pela perspectiva da tradição chinesa, aqui, figuradas como Danças dos Leques, das Sedas, das Pipas, do Lingote de Ouro, esta última surpreendendo o público com o surgimento de pequeninas bailarinas, sempre convocadas nas Academias  de Dança dos países em que o Balé Nacional da China se apresenta.

Tudo, enfim, concorrendo para um espetáculo que além de sua sensorial empatia, prova que o grande segredo da arte coreográfica é, não ter fronteiras ideológicas ao proporcionar, pela força irradiada em cada gesto do bailarino, um instante mágico da emoção coletiva...   


                                                Wagner Corrêa de Araújo



GuoNian / Balé Nacional da China, depois de Brasília e do Rio de Janeiro, de 9 a 12/10, a turnê pela Dellarte continua em SP, no Teatro Bradesco, de 16 a 19 de outubro.

OLGA/CIA ENSAIO ABERTO : QUANDO O TEATRO DOCUMENTÁRIO SE TORNA UM ELO DE RESISTÊNCIA E DE DENÚNCIA DIANTE DO FATO HISTÓRICO


Olga/Cia Ensaio Aberto. Luiz Fernando Lobo/Direção Concepcional. Tuca Moraes/Protagonista. Setembro/2025. Thiago Gouvêa/Fotos.


“O teatro documentário afirma que a realidade, seja qual for o absurdo com o qual ela se mascara, pode ser explicada em seus mínimos detalhes”. Estas enunciadoras palavras do dramaturgo Peter Weiss podem servir como um reflexo especular para conceitualizar o ideário da proposta, pela Companhia Ensaio Aberto, para o espetáculo Olga.

Viabilizado mais uma vez, através de uma diferencial dramaturgia/direcional, imprimida pelo empenho de Luiz Fernando Lobo, frente a uma acurada equipe técnica e artística tendo como protagonista titular Tuca Moraes, completando um afinado elenco de 14 atores.

Dando, assim, continuidade a uma fundamental e necessária conscientização política em tempos de radical expansão, aqui e além fronteiras, de uma extrema direita sinalizada pelo principio fascista de falsificação da verdade. E na qual estivemos, em época recente, sob o risco iminente de submergirmos sem quaisquer possibilidades de salvação.

Onde um espetáculo que se insere dentro da melhor tradição do teatro político-documentário de Erwin Piscator a Peter Weiss no uso de farta documentação escrita, fotográfica e fílmica, oficial ou não, procura elucidar a verdade dos fatos, muitas vezes distorcida, especialmente nos tempos atuais submissos a plataformas digitais contaminadas pelas chamadas fake news.


Olga/Cia Ensaio Aberto. Luiz Fernando Lobo/Direção Concepcional. Setembro/2025. Thiago Gouvêa/Fotos.


Com uma temática no entorno de toda trajetória existencial e ideológica da judia alemã Olga Benário, desde sua inicialização entusiasta pelo ativismo comunista, da sua adolescência em Munique à sua cruel deportação grávida de sete meses, num covarde e repulsivo gesto de aproximação nazi-fascista de Getúlio Vargas junto a Gestapo.

A dramaturgia inspirada em sua completude num dimensionamento documentário, não se limitando ao relacionamento amoroso surgido nos contatos de dois revolucionários marxistas e militantes comunistas, Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, ambos asilados em Moscou, antes da vinda para o Brasil, em 1934.

Esta, como uma agente dos serviços secretos soviéticos, em sua oficial missão de acompanhar os direcionamentos ideológicos e políticos de Luiz Carlos Prestes, na viagem de volta ao seu País natal, com a finalidade de promover uma intentona comunista no Brasil. E que acaba fracassando, em 1935, sendo ambos detidos em território brasileiro.

A ocupação da caixa cênica (J. C.Serroni) dividida  por um telão transparente estabelece uma envolvente conexão palco-plateia em dois planos, com os atores ora sendo vistos por trás  das projeções, em grande dimensão, de farto material documentário à base de cenas fílmicas, reproduções jornalísticas de fotos e textos, além de esclarecedores depoimentos de personalidades brasileiras de ontem de hoje. Tudo se completando pelo sugestionamento presencial dos espectadores, como testemunhas de um julgamento, para uma espécie de reavaliação do legado existencial/político de Olga Benário.  

A trilha musical (Felipe Radicetti) propiciando um clima extasiante nas projeções em preto e branco, provocando ecos sensoriais capazes de lembrar, subliminarmente, os filmes épicos soviéticos, especialmente de Eisenstein. Os figurinos (Beth Filipecki/R. Machado) com um sotaque atemporal sob prevalência de tons ocres, menos acentuado na indumentária de Olga, criando uma uniformidade plástica sob expansivos efeitos luminares (Cesar de Ramires).

Tuca Moraes desde o prólogo, em imersiva identificação física no papel  protagonista, com irradiante convicção, transmuta  os contornos dramáticos e o desalento de seu personagem, culminando  na  vocalização de uma inédita e emotiva carta de despedida.

Ainda que, em sua quase integralidade, a narrativa dramatúrgica apresente uma conexão maior com um roteiro fílmico-documental, Olga nunca deixa de ser, pelo cruzamento de duas linguagens artísticas um espetáculo revelador, capaz de atrair a cumplicidade reflexiva da plateia.

Não só como um investimento estético-ideológico ao trazer novas perspectivas em sua transposição direcional (Luiz Fernando Lobo), mas ao transcender seu contraponto crítico para tempos políticos tão controversos, num oportuno e questionador recado para a contemporaneidade...

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo

 

Olga/Cia Ensaio Aberto está em cartaz no Teatro Vianinha/Armazém da Utopia, de sexta a segunda, às 20h; até o dia 06/outubro.

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