O MOTOCICLISTA NO GLOBO DA MORTE : INSTIGANTE DRAMATURGIA QUESTIONA NOSSA RELAÇÃO DIÁRIA COM A VIOLÊNCIA



O Motociclista no Globo da Morte. Leonardo Netto/Dramaturgia. Rodrigo Portella/Direção Concepcional. Du Moscovis / Protagonista. Outubro/2025.Catarina Ribeiro/Fotos.


Desde a ancestralidade, através do teatro grego clássico, passando pelas tragédias shakespearianas, indo da proposta artaudiana até as representações cênicas da contemporaneidade, há claras demonstrações como o teatro pode, antes de tudo, desafiar a condição humana  denunciando sua intrínseca proximidade com a violência.

Este é o tema da mais recente peça de Leonardo Netto, um dos mais significativos nomes da última geração teatral brasileira - numa singular e simbólica titulação, como O Motociclista no Globo da Morte, ecoando no surpreendente empenho performático por Du Moscovis, sob mais um dos viscerais comandos concepcionais de Rodrigo Portella.

Numa narrativa formatada como um monólogo confessional, capaz de provocar o desassossego do espectador com sua incitante narrativa no entorno de um personagem de assumido comportamental pacifista que, por imprevistas circunstâncias, se transforma num emissário da violência homicida.

O ideário da sequencial transmutação psicofísica, a começar por uma textualidade conectada à crua revelação do desalento de um personagem antiviolência que, aos poucos, vê sua verdade interior sendo desmontada e substituída por ascendente niilismo existencial. Ao se deparar, numa espécie similar de botequim suburbano, com a tipicidade machista de um cliente, por ironia, tendo o mesmo nome dele - Antônio.


O Motociclista no Globo da Morte. Leonardo Netto/Dramaturgia. Rodrigo Portella/Direção Concepcional. Du Moscovis / Protagonista. Outubro/2025.Catarina Ribeiro/Fotos.


Que, depois de umas e outras doses alcoólicas, faz provocações eróticas, entre palavrões e gestos, à simples garçonete que traz as cervejas e os petiscos. Repelido por ela, sua raiva se volta contra um vira-latas esfomeado, na pulsão de uma crueldade sanguinária.

Enquanto a radicalidade de sua insensatez direciona-se, também, para a incômoda quietude do outro Antônio, ao sentir que este, atônito, fixa nele seus olhos de espanto e revolta pela violência empregada contra o indefeso animal. Iniciando-se, então, um delirante processo metafórico de ambígua identificação psicanalítica, entre o real e o imaginário, do bem para o mal.

Diante de tudo em que acreditou ou repeliu como inaceitável, sempre estremecido ao ver imagens dos matadouros de gado, suínos e aves, naquele súbito assombramento de sua condição humana, pela usurpada pureza do “eu” original confrontado, é convertido, então, num “anjo vingador”.

Numa concepção cenográfica (Rodrigo Portella), assumidamente minimalista, onde o ator protagonista, com indumentária (Gabriella Marra) cotidiana, está sentado numa cadeira no centro do palco, único elemento material visível. Já no inicio do espetáculo, Du Moscovis ao ficar em silêncio, numa absoluta quietude, movimentando nervosamente as mãos, até começar a falar com discricionária projeção verbal.

Sob uma vazada iluminação (Ana Luiza de Simoni) que chega até os espectadores, em performance intimista do personagem sugestionando estar diante de um encontro confessional, cara a cara, com cada um deles. Como se representassem, ali, o papel de um psiquiatra ou participassem de um interrogatório policial.

Ouve-se uma quase imperceptível interferência de acordes sonoros (André Muato) ao longe. O clima psicológico mudando quando o ator imprime, de forma consciente, desconforto e insegurança para revelar a continuidade de fatos brutalizantes, personalistas ou em âmbito global (referenciados pelo verismo de citações documentais).

As luzes se tornando sombreadas pela ascendente gravidade das descrições vão precipitando o retorno ao silencio inicial do ator, até o pleno escurecimento. Em subliminar dimensionamento alegórico do pânico cotidiano levando o espectador a indagar-se sobre seu próprio convívio com a violência num mundo cada vez mais desumanizado.

A vigorosa expressão performática do ator (Du Moscovis), a irradiante contundência da linguagem teatral (Leonardo Netto), a envolvência sensorial palco/plateia alcançada por arrebatadora direção/concepcional (Rodrigo Portella) contribuindo para, afinal, fazer de O Motociclista No Globo da Morte um transcendente instante da arte de representar...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 

O Motociclista no Globo da Morte está em cartaz no Teatro Poeira / Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h; até o dia 14 de dezembro.

O ANO NOVO CHINÊS / BALÉ NACIONAL DA CHINA : O QUEBRA NOZES TRANSMUTADO SOB UMA DIFERENCIAL RELEITURA ENTRE A TRADIÇÃO E A INOVAÇÃO




GuoNian / Balé Nacional da China. Zhao Ming/Concepção Coreográfica Direcional. Outubro/2025. Fotos/Divulgação/Midiorama.



Desde sua estreia em São Petersburgo, dezembro de 1892, o balé Quebra-Nozes de Tchaikovsky, cujo libreto partiu de um conto gótico de E.T.Hoffman, tornou-se um símbolo coreográfico para representar a comemoração da noite de Natal, pelo dúplice carisma de sua composição musical, como pelo encantamento de seu enredo, sob um sotaque de magia absoluta.

Ainda que algumas versões contemporâneas tenham dado uma outra conotação à coreografia original de Marius Petipa, como a de Mark Morris transformando os presentes natalinos em brinquedos eletrônicos ora ecoando uma crescente preferencia infantil pelos efeitos digitais, ou indo mais longe, na ousadia de acordes jazzísticos e ritmos Hip-Hop.

Enquanto a releitura da obra original pelo Balé Nacional da China, mantendo quase na íntegra a partitura de Tchaikovsky, insere sutis acréscimos de sonoridades tradicionais daquele país, o que se estende às alterações quanto aos seus personagens característicos para, assim,  exemplificar a celebração oriental do Ano Novo Chinês,  sob signo lunar, e que, em 2025,  aconteceu na data 29 de janeiro.

A coreografia chinesa de autoria de Zhao Ming é de 2010 e acabou se tornando um dos maiores êxitos internacionais do Balé Nacional da China, ao lado  de “Lanternas Vermelhas” de Zhang Yimou, coreógrafo e cineasta, aplaudido também pela sua adaptação cinematográfica, tanto o balé apresentado no Brasil em 1995, como o filme em 1991.  


GuoNian / Balé Nacional da China. Zhao Ming/Concepção Coreográfica Direcional. Outubro/2025. Fotos/Divulgação/Midiorama.



A narrativa de O Ano Novo Chinês (GuoNian) começa por uma feira com preparativos para a sua passagem, mostrando transeuntes com indumentárias de malhas coloridas, portando máscaras de animais que simbolizam o zodíaco chinês. Já demonstrando uma conexão de movimentos entre as bases clássicas e gestualidades, com assumida personifição de danças típicas.

Nas ambientações e no design cenográfico (Gong Xun) prevalece a plasticidade evocativa de uma milenar tradição popular, com nuances pictóricas imprimindo tonalidades ora sóbrias, ora artesanais, incluída a presença de elementos materiais que preenchem a caixa cênica, sob o brilho dos efeitos luminares (Han Jiang) .

Já na sala residencial acontecem os ultimatos para a ceia de Ano Novo e é quando se revela o presente contendo um Quebra-Nozes, enquanto os convivas familiares são retratados numa espécie de fotos instantâneas ao vivo, projetadas num painel. O boneco dado à menina Yuanyuan (no lugar que era de Clara) é o único elo natalino que referencia a obra original. A partir daí, com o adormecer da protagonista abraçada ao brinquedo, sucedem-se as cenas imagéticas, recheadas de sonhos e fantasia.

Onde a habitual batalha dos ratos é substituída por figurações animais do fabulário mítico chinês, sob vigoroso gestual acrobático, sendo sequenciada por outras inovações como o episódio da Rainha Açucarada como uma Rainha Garça, acompanhada de um grupo de bailarinas/garças com  tutus brancos trazendo um penacho ou aparentando peças de porcelana, todas em posição de pontas com perfeccionismo acadêmico.

Aliás, é sob uma rigorosa técnica clássica que se destaca o casal protagonista, carismático no celebrado Pas-de-deux amoroso, com a mesma estética expressiva nestes personagens do balé, equiparando-os aos grandes intérpretes do mundo ocidental.   

Destaque como linguagem própria são as danças características do Ato II, pela perspectiva da tradição chinesa, aqui, figuradas como Danças dos Leques, das Sedas, das Pipas, do Lingote de Ouro, esta última surpreendendo o público com o surgimento de pequeninas bailarinas, sempre convocadas nas Academias  de Dança dos países em que o Balé Nacional da China se apresenta.

Tudo, enfim, concorrendo para um espetáculo que além de sua sensorial empatia, prova que o grande segredo da arte coreográfica é, não ter fronteiras ideológicas ao proporcionar, pela força irradiada em cada gesto do bailarino, um instante mágico da emoção coletiva...   


                                                Wagner Corrêa de Araújo



GuoNian / Balé Nacional da China, depois de Brasília e do Rio de Janeiro, de 9 a 12/10, a turnê pela Dellarte continua em SP, no Teatro Bradesco, de 16 a 19 de outubro.

OLGA/CIA ENSAIO ABERTO : QUANDO O TEATRO DOCUMENTÁRIO SE TORNA UM ELO DE RESISTÊNCIA E DE DENÚNCIA DIANTE DO FATO HISTÓRICO


Olga/Cia Ensaio Aberto. Luiz Fernando Lobo/Direção Concepcional. Tuca Moraes/Protagonista. Setembro/2025. Thiago Gouvêa/Fotos.


“O teatro documentário afirma que a realidade, seja qual for o absurdo com o qual ela se mascara, pode ser explicada em seus mínimos detalhes”. Estas enunciadoras palavras do dramaturgo Peter Weiss podem servir como um reflexo especular para conceitualizar o ideário da proposta, pela Companhia Ensaio Aberto, para o espetáculo Olga.

Viabilizado mais uma vez, através de uma diferencial dramaturgia/direcional, imprimida pelo empenho de Luiz Fernando Lobo, frente a uma acurada equipe técnica e artística tendo como protagonista titular Tuca Moraes, completando um afinado elenco de 14 atores.

Dando, assim, continuidade a uma fundamental e necessária conscientização política em tempos de radical expansão, aqui e além fronteiras, de uma extrema direita sinalizada pelo principio fascista de falsificação da verdade. E na qual estivemos, em época recente, sob o risco iminente de submergirmos sem quaisquer possibilidades de salvação.

Onde um espetáculo que se insere dentro da melhor tradição do teatro político-documentário de Erwin Piscator a Peter Weiss no uso de farta documentação escrita, fotográfica e fílmica, oficial ou não, procura elucidar a verdade dos fatos, muitas vezes distorcida, especialmente nos tempos atuais submissos a plataformas digitais contaminadas pelas chamadas fake news.


Olga/Cia Ensaio Aberto. Luiz Fernando Lobo/Direção Concepcional. Setembro/2025. Thiago Gouvêa/Fotos.


Com uma temática no entorno de toda trajetória existencial e ideológica da judia alemã Olga Benário, desde sua inicialização entusiasta pelo ativismo comunista, da sua adolescência em Munique à sua cruel deportação grávida de sete meses, num covarde e repulsivo gesto de aproximação nazi-fascista de Getúlio Vargas junto a Gestapo.

A dramaturgia inspirada em sua completude num dimensionamento documentário, não se limitando ao relacionamento amoroso surgido nos contatos de dois revolucionários marxistas e militantes comunistas, Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, ambos asilados em Moscou, antes da vinda para o Brasil, em 1934.

Esta, como uma agente dos serviços secretos soviéticos, em sua oficial missão de acompanhar os direcionamentos ideológicos e políticos de Luiz Carlos Prestes, na viagem de volta ao seu País natal, com a finalidade de promover uma intentona comunista no Brasil. E que acaba fracassando, em 1935, sendo ambos detidos em território brasileiro.

A ocupação da caixa cênica (J. C.Serroni) dividida  por um telão transparente estabelece uma envolvente conexão palco-plateia em dois planos, com os atores ora sendo vistos por trás  das projeções, em grande dimensão, de farto material documentário à base de cenas fílmicas, reproduções jornalísticas de fotos e textos, além de esclarecedores depoimentos de personalidades brasileiras de ontem de hoje. Tudo se completando pelo sugestionamento presencial dos espectadores, como testemunhas de um julgamento, para uma espécie de reavaliação do legado existencial/político de Olga Benário.  

A trilha musical (Felipe Radicetti) propiciando um clima extasiante nas projeções em preto e branco, provocando ecos sensoriais capazes de lembrar, subliminarmente, os filmes épicos soviéticos, especialmente de Eisenstein. Os figurinos (Beth Filipecki/R. Machado) com um sotaque atemporal sob prevalência de tons ocres, menos acentuado na indumentária de Olga, criando uma uniformidade plástica sob expansivos efeitos luminares (Cesar de Ramires).

Tuca Moraes desde o prólogo, em imersiva identificação física no papel  protagonista, com irradiante convicção, transmuta  os contornos dramáticos e o desalento de seu personagem, culminando  na  vocalização de uma inédita e emotiva carta de despedida.

Ainda que, em sua quase integralidade, a narrativa dramatúrgica apresente uma conexão maior com um roteiro fílmico-documental, Olga nunca deixa de ser, pelo cruzamento de duas linguagens artísticas um espetáculo revelador, capaz de atrair a cumplicidade reflexiva da plateia.

Não só como um investimento estético-ideológico ao trazer novas perspectivas em sua transposição direcional (Luiz Fernando Lobo), mas ao transcender seu contraponto crítico para tempos políticos tão controversos, num oportuno e questionador recado para a contemporaneidade...

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo

 

Olga/Cia Ensaio Aberto está em cartaz no Teatro Vianinha/Armazém da Utopia, de sexta a segunda, às 20h; até o dia 06/outubro.

TEATRO GUAÍRA – 140 ANOS : LIVRO DOCUMENTA OS INESTIMÁVEIS SERVIÇOS PRESTADOS ÀS ARTES CÊNICAS, CONECTANDO CURITIBA AO UNIVERSO CULTURAL BRASILEIRO

 

Balé Teatro Guaíra / Romeu e Julieta. Luiz Fernando Bongiovanni/Concepção Coreográfica. Junho/2025. Maringas Maciel / Fotos.



Quem poderia imaginar que aquele despretensioso espaço inaugurado em Curitiba, 1884, sob a denominação de Theatro São Theodoro, se transformaria num dos maiores centros culturais brasileiros, com atuação valorosa, por quase um século e meio, de especial incentivo às artes cênicas e musicais.

Incluindo seus corpos estáveis (Balé Teatro Guaíra e Orquestra Sinfônica do Paraná), além de receber em seus dois palcos (Guairão e Guairinha) as mais diversas manifestações teatrais, musicais e coreográficas Brasil afora e além fronteiras. Não podendo deixar, também, de ressaltar suas atividades de ensino artístico.

Na minha trajetória de jornalismo cultural acompanho as atividades da Fundação Teatro Guaíra, desde os anos 80/90, a partir das coberturas anuais do Festival de Teatro de Curitiba, com matérias especiais para o Caderno 2.

Programa que idealizei e dirigi durante quase cinco anos para a antiga TVE/RJ, quando tivemos o privilégio de sempre cobrir o referido Festival em sua integridade incluindo, também, as suas noites especiais na Grande Sala do Teatro.

Mas foi a partir da passagem aos anos 2000, quando o Balé Teatro Guaíra passou a ser dirigido pela saudosa jornalista e crítica Suzana Braga, que fizemos uma proposta à emissora para realizar documentários e especiais com uma hora de duração. O primeiro deles Balé Teatro Guaíra 30 Anos como um tributo à sua original formação, em 1969, como Corpo de Baile da Fundação Teatro Guaíra.


Balé Teatro Guaíra / O Segundo Sopro. Roseli Rodrigues/Concepção Coreográfica. Junho/2019. Maringas Maciel/Fotos. 


Onde duas coreografias - Tango e O Segundo Sopro - assinadas respectivamente pelo argentino Eduardo Ibañez e pela brasileira Roseli Rodrigues – simbolizaram a adoção definitiva para a Cia curitibana de dança do título abrasileirado de Balé Teatro Guaíra.

Tendo a criação original de Roseli Rodrigues (então conhecida como a diretora/coreógrafa do Grupo Raça/SP) rapidamente se tornado um fenômeno midiático pelos efeitos com águas que caiam, tal como uma chuva, sobre o palco e os bailarinos, em expressivo contraponto técnico e gestual, na cena final da obra.

No ano seguinte, o empenho artístico de Suzana Braga levou à retomada, em novo dimensionamento cênico/musical e coreográfico, de uma das mais emblemáticas obras originais do repertório da Cia – o Grande Circo Místico – depois do português Carlos Trincheiras e desta vez pelo argentino Luis Arrieta. 

O que a transformou em outro momento marcante do Balé Teatro e também sendo tema, com seu registro completo e depoimentos da equipe de criação, do segundo documentário televisivo sob nossa responsabilidade direcional.

Depois, em datas mais recentes, estivemos mais de uma vez nas temporadas do Balé Teatro Guaíra, não mais com uma proposta de documentação fílmica, mas já no exercício da crítica sobre artes cênicas (Dança, Teatro, Ópera e Musicais) por intermédio do blog autoral www.escriturascenicas.com.br

Enfocando, então, os projetos coreográficos das direções de Pedro Pires e de Luiz Fernando Bongiovanni, para este último comentando, sob análises críticas, suas criações dos últimos anos, de Carmen a Romeu e Julieta. Esta conferida no Grande Teatro do Palácio das Artes (BH) em julho de 2025 e, já dentro do projeto da revista virtual francesa danse.org na coluna Brazil Dance Reviews que ali assinamos, passando a integrar o inédito acervo coreográfico da Bibliothèque Nationale de France.

E foi por um destes felizes acasos do destino que tivemos a surpresa de reencontrar ali personalidades artísticas já conhecidas de tempos idos e tão queridas, desde o coreógrafo Luiz Fernando Bongiovanni ao cenógrafo Cleverson Cavalheiro, hoje à frente do Centro Cultural Teatro Guaíra.  

Chegando, assim, a este livro tão precioso que tem no seu preambulo oportunas palavras (pelo múltiplo talento de Edson Bueno) podendo, quem sabe, servir afinal de especular reflexão no entorno disto tudo como : “Um milagre de comunicação onde todos acreditam que a arte é todo o sentido da existência”...

                                                                                                                   

                                              Wagner Corrêa de Araújo

                                            

Este livro (Teatro Guaíra - 140 Anos) surgiu de iniciativa do Centro Cultural Teatro Guaíra, através de seu Diretor - Presidente Cleverson Cavalheiro, com pesquisa e redação de Áldice Lopes e Zeca Corrêa Leite, sob caprichosa seleção e tratamento de imagens por Adalberto Camargo, completando-se no apoio de Luciana Casagrande Pereira, atual Secretária de Estado da Cultura do Paraná

PIRACEMA / GRUPO CORPO : CRIATIVIDADE ORIGINAL CONECTADA À PERSPECTIVA DE NOVAS TRAJETÓRIAS COREOGRÁFICAS

Grupo Corpo / Piracema. Rodrigo Pederneiras e Cassi Abranches / Concepção Coreográfica. Setembro/2025. José Luiz Pederneiras/ Fotos.


Sempre sob o signo de um olhar armado na contemporaneidade, ecoando a lição poética do mineiro Murilo Mendes, o Grupo Corpo tornou-se, sem dúvida alguma, o mais absoluto exemplar de resistência artística no universo da arte coreográfica nas Minas Gerais, onde ocupa esta privilegiada posição há cerca de meio século.

Mas seu simbolismo vai além dos “belos horizontes” das Gerais, desde que se tornou um dos mais emblemáticos grupos de dança do Brasil numa perspectiva de reconhecimento permanente, a partir do acertado ideário inicial de chamar Milton Nascimento para compor a trilha de Maria Maria, no final dos anos setenta.

Marcado sempre, não só pela autenticidade desbravadora de propostas do coreógrafo Rodrigo Pederneiras, sinalizadas por seu empenho pela brasilidade no entorno de surpreendente lavra autoral, acompanhado no seu élan criador pelo correspondente e convicto apelo cênico-direcional imprimido por Paulo Pederneiras.

Isto tudo se refletindo, também, na continuidade destes processos criativos através da preservação de parcerias fundamentais com outros artistas, num circuito coletivo de continuidade que vem marcando a trajetória estética e histórica da Cia mineira. Levando, nesta pulsão artística evolutiva ao preciso chamamento, agora, de Cassi Abranches como coreógrafa residente.


Grupo Corpo / Piracema. Rodrigo Pederneiras e Cassi Abranches / Concepção Coreográfica. Setembro/2025. José Luiz Pederneiras/ Fotos.


Uma ex-integrante do Grupo Corpo que simboliza na passagem cinquentenária, a transmutação deste processo evolutivo pela busca de um futuro dimensionamento sucessório. Onde, pós uma sólida carreira coreográfica independente em cias importantes, podendo aplicar, ali, nesta volta às origens, seu já amadurecido legado estético.

E para isto o espetáculo comemorativo estabelece um liame entre o passado, o presente e o futuro, ao colocar lado a lado, uma das clássicas obras da Cia - Parabelo, de 1997, e a inédita Piracema. A primeira como uma exclusiva composição coreográfica de Rodrigo Pederneiras, seguida da outra numa simultânea leitura deste com Cassi Abranches.

Sob um conceitual estético de permanente transformação pela abertura de novos caminhos coreográficos, a dúplice estruturação criativa de Piracema remete ao significativo sentido vocabular  tupi-guarani de Pira (peixe) e cema (subida) no desafio do ir contra a correnteza dos rios para a desova e consequente continuidade da espécie.

A trilha musical de uma experiente Clarice Assad, direcionada pelo propósito de completa reinvenção numa suíte em três módulos básicos. No seu sugestionar, repercutido especularmente na força da concepção coreográfica, desde um tribalismo indígena percussionista paralelo às sonoridades da natureza, passando por expressivos acordes camerísticos mais universalistas confluindo, enfim, na modernidade de ritmos eletroacústicos.

Outra vez juntos, nos psicodélicos efeitos luminares (Paulo e Gabriel Pederneiras) na extasiante imagética de uma caixa cênica (Paulo Pederneiras) preenchida por um painel frontal com mais de 80 mil tampas de sardinhas. 

Transmutando-se, metaforicamente, no sentido ecológico e industrial de um futuro distópico, do material cenográfico às luminosas texturas de um figurino (Susana Bastos e Marcelo Alvarenga) entre duas épocas.

O coesivo encontro de duas linguagens coreográficas em Piracema possibilitando uma dramaturgia corporal de movimentos híbridos, entre as energizadas contrações da fisicalidade no início e no final da obra, entremeadas pela suavidade romantizada de gestualidades que se fundem imersivamente.

O absoluto acerto na idealização desta dúplice gramática cênica-coreográfica (Rodrigo Pederneiras e Cassi Abranches)  encontrando qualitativo resultado entre os mais de vinte bailarinos numa completa equivalência da representação física/artística de cada um deles.

Em tempos controvertidos enquanto se confunde o verdadeiro significado terminológico do nacionalismo pátrio, nada como desafiar este equivocado conceitual repetindo com Luiz Fernando Veríssimo :  Toda vez que vejo o Grupo Corpo, fico patriota”...

 

                                                Wagner Corrêa de Araújo

 

O Grupo Corpo encerra a turnê de Celebração do seu  Cinquentenário, em curta temporada, no palco do Theatro Municipal/RJ, entre os dias 18 e 21 de setembro.

(UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA:GRUPO GALPÃO EM ALEGÓRICA INCURSÃO DRAMATÚRGICA NO CINISMO SOCIAL E NA INDIFERENÇA HUMANA

(Um) Ensaio Sobre a Cegueira. Grupo Galpão. Rodrigo Portella / Direção Concepcional. Setembro/2025. Guto Muniz e Tati Motta / Fotos.
         

“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida”, palavras conceituais de José Saramago sobre uma de suas obras literárias mais polêmicas e perturbadoras.

E é diante deste desafio que Rodrigo Portella assume a direção concepcional do Grupo Galpão para transmutar o  livro do escritor português numa releitura dramatúrgica titulada (Um) Ensaio Sobre a Cegueira. Numa proposta diferencial em que sua temática é exposta sob um tratamento estético de prevalente experimentalismo teatral.

Já começando por uma caixa cênica  praticamente vazia em processo de construção com um cone de transito bem em sua área central. E enquanto o público vai se adentrando na plateia do teatro, antes do inicio oficial da performance, aos poucos os atores aparentam um entra e sai, sob luzes vazadas (Rodrigo Marçal/Rodrigo Portella). 

Diante da perspectiva de um espetáculo, anunciado com uma possível duração de mais ou menos duas horas e meia, atores e técnicos aparecem trazendo alguns elementos para irem, assim, preenchendo de forma aleatória o espaço do palco que sugestiona, subliminarmente, uma ambiência de ensaio teatral, pelo ideário cenográfico de Marcelo Alvarenga.


Um) Ensaio Sobre a Cegueira. Grupo Galpão. Bianca Ramoneda /Interlocução Dramatúrgica.
          Federico Puppi / Direção Muscal . Setembro/2025. Guto Muniz e Tati Motta/Fotos.


Numa sutil proposição de deixar livre o entendimento reflexivo para cada um dos espectadores sobre o significado imagético do que está se vendo ali, direcionado pela escuta fragmentada da textualidade inspirada pelo livro original de 1995, aqui sinalizado por um referencial de contemporaneidade.

O que, assim, configura um teatro que une, em ato de coesão coletiva, palco e plateia, atores e público. E que ecoará a decifração livro/palco pela abordagem do surto da cegueira, como um súbito mal coletivo, indo além da mera previsão de um futuro distópico, este já se fazendo presencial na insensatez do que estamos vivenciando.

Em que as falas e os atos de cada personagem, pela enigmática visão única de uma luz branca, vão transcendendo seu alcance moral, político e social, com a sequencial internação de todos em um manicômio.

Onde, sob as piores condições de sobrevivência, vivem o pesadelo de uma insana e amoral situação que, em clima pós-apocalíptico, remete à simbologia  do colapso da própria condição humana.

A tradição reafirmada de uma sempre qualitativa performance da trupe de atores do Grupo Galpão tornando difícil destacar a atuação personalista de cada um dos que integram esta representação, com indumentárias (Gilma Oliveira) do dia-a-dia. A saber, em ordem alfabética, Antônio Edson, Eduardo Moreira (este por sinal seu atual diretor artístico), Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones.

Todos eles imprimindo, como de hábito, a marca permanente de excepcionais atores sob completa empatia com a plateia, desde um sotaque mais irônico, à sequencial densidade dramática. Na concentração imersiva em seus personagens, paralela à ação orientadora dos espectadores opcionais que tem os olhos vendados mal sobem ao palco.

Outra vez, a trilha sonora autoral de Federico Puppi surpreendendo por inventivos acordes na fluência de seus arranjos para instrumentos e vozes, numa sensorial expressividade como reflexo especular do dimensionamento narrativo, aproximando-se do estilo das composições musicais na parceria teatral Kurt Weill/Bertold Brecht.

O contraponto entre o visto e o imaginado, pela rompante ousadia da concepção direcional de Rodrigo Portella, a partir  de uma textualidade literária situada entre a irracionalidade e o pesadelo, mesmo que vez por outra não alcance a pretendida expansão em cena, nunca deixa de ser um teatro consistente e questionador, solidificado por sua pulsão de denúncia e pela potencialidade nas suas intenções críticas...

 

                                                Wagner Corrêa de Araújo

 

(Um) Ensaio Sobre a Cegueira c/ o Grupo Galpão está em cartaz no Teatro Carlos Gomes, quinta e sexta, às 19h; sábado e domingo, às 16h; até o dia 14 de setembro.

LA COULEUR DE LA GRENADE / COMPAGNIE KÄFIG : EXTASIANTE ENCONTRO DA TRADIÇÃO ARMÊNIA COM A DANÇA URBANA


La Couleur de La Grenade / Compagnie  Käfig. Mourad Merzouki/Concepção Coreográfica. Setembro/2025. Julie Cherki / Fotos.


Em 1969, o cineasta armênio Sergei Parajanov estreava seu filme A Cor das Romãs, uma obra que se tornaria polêmica por seu desafio aos padrões conservadores do realismo socialista. Mas, ao mesmo tempo, tornando-o emblemático por seu vanguardista dimensionamento estético, merecendo entusiásticos aplausos de nomes como Godard, Antonioni, Fellini.

Na proximidade ao centenário de nascimento de Parajanov (1924/1990) o coreógrafo franco-argelino Mourad Merzouki, incentivado pela atriz de origem armênia Satê Khachatryan, decidiu fazer uma diferencial releitura do filme para sua Compagnie Käfig, utilizando o título original La Couleur de La Grenade.

Num simbólico processo de criação como tributo a um cineasta que usava múltiplas linguagens artísticas em seu filme, onde era narrada a trajetória do poeta armênio do século XVIII - Sayat Nova. Com efeitos cinéticos especiais nas danças e cantos tradicionais, alegorias na representação teatral, numa ambiência visual plena de plasticidade em cenários com referências ancestrais.

O que Mourad Merzouki transmuta para um palco coreográfico de realidade imagética-onírica, adornado com vistosas tapeçarias antigas, onde seus sete excepcionais bailarinos transitam entre imagens virtuais, imersos em delirante magia luminar de projeções e efeitos aquarelados.


La Couleur de La Grenade / Compagnie  Käfig. Mourad Merzouki/Concepção Coreográfica.
Setembro/2025. Julie Cherki / Fotos.


Demonstrando suas convictas habilidades físicas na energia acrobática das danças urbanas, alternadas pela espontaneidade de incursões instantâneas sob o sutil sugestionar de passos clássicos, no entremeio prevalente de técnicas contemporâneas. E que propiciam o contraponto de um irradiante lirismo, especialmente nas cenas com a corporeidade  feminina,  centralizada sempre na figuração misteriosa de uma mulher  de mítico e transcendente presencial, bastante similar à mesma imagem no filme.

Com figurinos leves, incorporando a tipicidade de elementos cotidianos, na busca de uma funcionalidade maior para a fisicalidade energética do estilo street dance e hip-hop, em proposta cênica de conexão a indumentárias mais artesanais com o uso de trajes típicos da cultura armênia tradicional.

Tudo isto ampliado pela envolvência de uma trilha que equilibra bem as passagens de acordes de canto corais de caráter ritualístico com sonoridades eletroacústicas mais ritmadas, marcadas estas últimas por uma instrumentação percussiva que estimula a vigorosa gestualidade de corpos atirando-se ao chão.

Para quem conhece o filme (de raras exibições mas até encontrável nas plataformas digitais) é fácil a percepção de que toda esta encenação nunca perde o conceitual plástico-estético que liga o resultado coreográfico ao estilo fílmico. Idealizado e descrito por Sergei Parajanov em suas enunciadoras palavras : “queria criar aquela dinâmica interna que vem de dentro da imagem, as formas e a dramaturgia da cor”.

Lembrando que o cineasta chegou a ser bailarino e artista  plástico, mas teve sua carreira bruscamente interrompida pela violência discriminatória da censura  soviética em 1969, condenando-o à prisão, onde a liberdade só foi retomada tardiamente. Morrendo em 1990, quase às vésperas da dissolução definitiva da União Soviética.

Enquanto, neste mesmo período, começava o projeto idealista do jovem coreógrafo Mourad Merzouki para dar um lugar de destaque às danças urbanas como uma autêntica manifestação, merecedora de estar ao lado de toda movimentação inventiva da dança contemporânea.

Sua Compagnie Käfig atua desde 1996, com turnês por mais de 700 cidades, incluído o Brasil em 2016, com o espetáculo Pixel, além de seus experimentos com bailarinos brasileiros em algumas de suas obras anteriores. E no ano passado sendo a Cia. escolhida para a abertura festiva em Paris dos Jogos Olímpicos.

Sobre esta temporada da Compagnie Käfig, com Pixel,  em novembro de 2016, deixo aqui o registro da crítica autoral postada, então, pelo blog Escrituras Cênicas :

https://www.escriturascenicas.com.br/2016/11/pixel-energica-e-lirica-fisicalidade.html

   

                                       
                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

 
A Compagnie Käfig / La Couleur de La Grenade, depois da Cidade das Artes /RJ, no último final de semana, segue para São Paulo, com apresentações nos próximos dias 9 e 10 de setembro, no Teatro Bradesco.

NOUVEAU MONDE/CIA HÍBRIDA : IMERSIVO SALTO COREOGRÁFICO EXPERIMENTAL NUM FUTURO DISTÓPICO


Nouveau Monde / Companhia Híbrida. Renato Cruz/Direção Geral e Coreografia. Agosto/2025. Carol Pires / Fotos.


Como a criação coreográfica reagirá diante do desafio de um futuro distópico onde os avanços tecnológicos convivem com perspectivas sombrias como a devastação ambiental ou a desumanização do corpo sob o domínio do homem robotizado?

Este questionamento nos remete ao século XX quando o universo da dança moderna começou, através da inciativa pioneira de Merce Cunnnigham, a integração de efeitos cinéticos e de vídeo em suas coreografias. Uma tendência que se acentuaria com os recursos digitais da sequencial era dos computadores e da internet.

Que por sua vez gerou o encontro estético de duas linguagens com o movimento da vídeo-dança que não ficou apenas no registro definitivo das imagens e das câmeras, mas se estendeu aos palcos coreográficos em cias que se tornaram conhecidas priorizando este gênero.

Embora todos estes experimentos procurassem preservar a dança pela dança não deixando que a expressão da corporeidade ficasse submissa ou fosse simplesmente abstraída pelo contexto tecnológico tornando frio, mecanizado e robótico o movimento gestual.

Além de tudo isto, com força crescente, vem aumentando em escala mundial os retrocessos políticos, morais e ideologias radicais, contrapondo-se às identidades de raça, de sexualidade e da livre expressão individual, num iminente risco de regimes totalitários.

E foi pensando nisto transmutar-se, contraditoriamente, num futuro assustador que a Companhia Híbrida, dando continuidade ao projeto coreográfico realizado entre o Brasil e a França, com patrocínios dos dois países, fez surgir a obra simbolicamente titulada como Nouveau Monde.


Nouveau Monde / Companhia Híbrida. Renato Cruz/Direção Geral e Coreografia. Agosto/2025. Carol Pires / Fotos.


O coreógrafo e diretor da Cia Renato Cruz já é conhecido do público e da crítica francesa com vários espetáculos apresentados lá, o mais recente deles Novo Fluxo no inicio de 2025, incluindo também a obra Dança Frágil, em vários espaços parisienses, entre estes o Le Carreau du Temple em coprodução de Nouveau Monde.

Desta vez, utilizando-se, aqui,  de um espaço cênico arena onde seu grupo de 7 bailarinos (Fábio Max, Jefte Francisco, Josh Antônio, Maju Freitas, Rayan Sarmento, Tamara Catarino, Yuri Tiger), um ou outro de comunidades cariocas passando, assim, a representar bem a proposta identitária de estrato social e racial, na assumida pulsão espontânea de uma gestualidade, legado de sua especialização nas  danças urbanas.  

Havendo que se ressaltar que esta obra traz um inédito dimensionamento da corporeidade de cada um deles, isolados em círculos delimitados por traços e efeitos luminares focais, entre sombras e luzes (Renato Machado) e indumentárias (Karla de Luca) com um sutil sotaque atemporal, completadas com capacetes/óculos de realidade virtual.

Onde um facho de luzes led coloridas remete, subliminarmente, a uma ambiência metafórica preenchida por sonoridades eletroacústicas (Gabriel Amorim e Lucas Marcier). O que amplia o efeito sensorial de corpos imobilizados liberando, lentamente, um gestual fragmentado, entre braços, pernas, ombros e mãos, paralelo à representação de um movimento facial sugestionando ansiedade e sufocação.

Até o inesperado surgimento de um cachorro-robô, num referencial a figurações de seres futuristas próprios do universo de ficção científica, por programação computadorizada, contornando o espaço cênico, sob quatro patas mecânicas alternando-se de pé, diante da surpresa e de certo espanto dos espectadores. Numa obra coreográfica diferencial que a aproxima da dança-teatro, tal como um poema concreto ecoando palavras, ao vivo, tornadas visíveis na expressiva fisicalidade dos bailarinos.

Diante deste original ideário temático e coreográfico de Renato Cruz, para sua sempre admirável Companhia Híbrida, fica a pergunta - será que a dança poderá interagir, mantendo intacto seu livre processo de criação, numa dominante realidade virtual?

Quem sabe, indo mais longe, num conceitual de previsibilidade, poderíamos ser levados a crer na reversão deste Nouveau Monde, como Le Meilleur des Mondes (citando a obra de Aldous Huxley)! Ou tudo não passa de uma utopia e, neste futuro distópico, a corporeidade humana gestual na arte coreográfica será assumida, definitivamente, por dançarinos robôs? ...

 

                                                Wagner Corrêa de Araújo

 

Nouveau Monde/Companhia Híbrida encerrou, neste final de semana, sua curta temporada no Sesc/Arena/Copacabana, com a expectativa de que volte ao cartaz.

PEQUENO CIRCO DE MEDIOCRIDADES : IRÔNICO, MORDAZ E BEM HUMORADO RETRATO DRAMATÚRGICO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA

Pequeno Circo de Mediocridades. Leonardo Netto/Dramaturgia e Direção. Agosto/2025. Dalton Valério/Fotos.

  

Inspirando-se nas considerações traçadas pelo sociólogo Jessé Souza, um celebrado analista das diferentes camadas que integram a estrutura da sociedade brasileira, o dramaturgo e diretor Leonardo Netto está de volta com a peça inédita Pequeno Circo de Mediocridades .

Tendo como ponto de partida especificamente o livro A Classe Média no Espelho, após uma atenta percepção de seus pontos fundamentais, transmutou-os em sete cenas características para o palco. Num retrato burlesco do comportamental conservador e medíocre de personagens que encontramos a toda hora nas esquinas da vida.

Representadas, aqui, por um afinado elenco na formatação de um quarteto integrado por reconhecidos nomes da cena teatral carioca desdobrando-se em papeis alternativos, ora em solo ora em formações grupais. Destacando-se cada um deles pela adequada escolha no entorno da especificidade de seus personagens.

Entre idas e voltas, Alexandre Varella, Elisa Pinheiro, Gustavo Falcão e Marina Vianna numa absoluta unicidade performática que estabelece um apelo imediato com a plateia numa possível identificação singular de cada espectador com as situações ali retratadas.


Pequeno Circo de Mediocridades. Leonardo Netto/Dramaturgia e Direção. Em cena, Gustavo Falcão e Elisa Pinheiro. Agosto/2025.Dalton Valério / Fotos.


A concepção cenográfica (André Sanches) minimalista usa um tablado frontalizado entre as duas plateias laterais, utilizando-se inicialmente de uma mesa e quatro cadeiras, aparecendo nelas cada um dos atores. Sequencialmente, sendo transformado nas ambiências sugestionadas pelos quadros dramatúrgicos.

Os figurinos (Luiza Fardini) sob sotaques cotidianos apresentam ligeiras variações atendendo, com precisa  funcionalidade, à proposta das sete cenas. Incluída uma espontaneidade gestual (Márcia Rubin) que agiliza a sintonização ator/personagem no tratamento irônico assumido pela textualidade dramatúrgica.

Às vezes pré-decifrada em sua intenção temática por sua própria titularidade tais como Cena de Jogo, Fatalidade, Olhos de Ressaca, Monstros Embaixo da Cama, Buraco no Salão, Atropelamento e Fuga, Selvageria. Mas nunca deixando de provocar uma inesperada surpresa em seu descortino final evitando, assim, qualquer obviedade narrativa.

A sutil interveniência de acordes musicais (Leonardo Netto) gradualiza o controle das nuances psico-emotivas, de caráter mordaz e risível, no desenvolvimento dos quadros. Estes sempre sendo acentuados na prevalência de luzes vazadas entremeadas por subliminares efeitos focais (Paulo Cesar Medeiros).    

Leonardo Netto, além de retratar as mediocridades deste extrato denominado classe média, potencializa a reflexão especular comparativa sobre as vivências de uma casta humana “circense” imersa na  hipocrisia do seu fútil mundo, consumista de privilégios romantizados. Que entre pesares está por todos os lados, a começar pelos seus anseios de ascensão politica o que só contribui para a crescente desmoralização  das instituições de nosso país.

E que simplesmente se torna alheia às desigualdades sociais, sentindo-se isenta de qualquer culpa ao se julgarem protegidos por suas recessivas crenças políticas, religiosas e morais que, em verdade, os transformam em verdadeiros párias da cidadania.

O núcleo do inventário dramático conciso, em sua aparente narrativa coloquial, é recheado assumidamente por lugares comuns do dia-a-dia, o que faz mais contundente a provocação do riso atuando como um contraponto crítico.

Extensivo ao alcance de uma gramática cênica que, através da coesão interpretativa de seu quarteto atoral por intermédio do perceptivo acerto de sua  direção concepcional, acaba tornando difícil sinalizar o destaque individualizado de tão convictos intérpretes em sete momentos diversificados .

Num destes avanços da dramaturgia sólida e inventiva de Leonardo Netto capaz, ao mesmo tempo, de abrir as portas para o entretenimento pelo senso crítico engajado a um sotaque de conscientização reflexiva, reafirmando a força da última geração do teatro em moldes brasileiros...

 

                                                  Wagner Corrêa de Araújo

   

Pequeno Circo de Mediocridades. Leonardo Netto/Dramaturgia e Direção. Em cena, Marina Vianna e Alexandre Varella. Agosto/2025. Dalton Valério/Fotos.


Pequeno Circo de Mediocridades esta em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quinta a sábado às 20h; domingo às 19h, até o dia 31 de agosto, com expectativa de novas temporadas.

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