CIRC LA PUTYKA - RISK. Theatro Municipal/RJ. |
A ancestral arte do
circo invade o primeiro semestre de 2014, ocupando desde as praças públicas e
espaços comunitários das favelas aos nobres palcos do Theatro Municipal e da
Cidade das Artes, enquanto o hiper-realismo plástico-escultórico provoca o público
carioca no MAM/RJ.
Esta arte de trânsito permanente entre o riso e o drama, o
risco e o grotesco e que inspirou o cinema de Chaplin, Bergman e Fellini, a
poesia de Jorge de Lima e a música de Chico Buarque, além do carnaval
brasileiro e da inicialização da carreira de Oscarito, chega com seu clássico questionamento
: Hoje
tem espetáculo? Tem sim senhor!!!
Na abertura de extensa
jornada cultural, a companhia tcheca Circ la Putyka, de formação recente (2009) mas já com renome internacional,
especializada no gênero contemporâneo do novo circo sabendo como bem incluir, numa
mesma proposta, teatro e música, dança e atletismo acrobático.
O grupo, com seus dezesseis integrantes, apresenta o
espetáculo Risk, infelizmente
prejudicado no palco do Theatro Municipal onde perdeu sua marca mais original -
o intimismo do pub circus (assim
definido por seu criador Rostislav Novák), ressaltada na surpresa de seus integrantes pela escolha infeliz, ali, do
dimensionamento da representação : "Acho
que este espaço é grande demais para nós".
Concepção mais nova da cia circense (2013), Risk se estrutura no jogo estético do contraste
entre a deficiência e o risco, através da superação à beira do abismo, quando
as acrobacias são realizadas entre facas e dardos, com a presença simbólica e
realista de um artista acidentado, numa cadeira de rodas.
No imenso espaço do Municipal a distancia entre o palco e a plateia,
especialmente nos andares superiores, prejudicou visivelmente a proposta que
perdeu seu élan interativo, acentuado com o confuso áudio entre duas línguas e
as plaquetas mínimas com indicações que poucos conseguiam ler.
E tornou quase fria a receptividade de um rico ideário
investigativo de cultura popular e poesia visual concebido para uma arena ou
picadeiro, este sim o palco ideal para expor estas trágica fronteiras da
condição humana, no seu eterno risco acrobático
entre a vida e a morte.
O GRANDE CIRCO MÍSTICO. Direção João Fonseca. Foto/Leo Aversa. |
POÉTICA E MAGIA DE UM CIRCO/TEATRO MUSICAL
Circo, religiosidade e mistério, a fórmula mágica do poema A Túnica Inconsútil, de Jorge de Lima, inspirou o balé O Grande Circo Místico, reunindo o roteiro de Naum Alves de Souza,
as letras e músicas de Chico Buarque e Edu Lobo, com as memoráveis
interpretações de Gal, Gil, Milton, Simone, Tim Maia, Zizi Possi, entre outros,
mais a coreografia de Carlos Trincheiras para um time de craques do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba.
Vinte anos depois, em 2002, Luís Arrieta reiventa a
coreografia para a mesma Cia BTG e o
espetáculo rende, então, uma extensa turnê nacional, com sucesso de público e
aplauso da crítica, e um documentário longa-metragem, que tive o privilégio de
dirigir com a equipe da então TVE-RJ registrando aquela marcante criação no
panorama da dança contemporânea brasileira.
Diante de tudo isto, minha expectativa era muito grande para esta
nova versão, pois acompanhara detalhadamente o processo criativo daquela
anterior retomada do Grande Circo
Místico, com as demoradas filmagens para registrar, na íntegra, o balé.
Em primeiro lugar, desvinculado do aporte exclusivamente coreográfico, sabia que, aqui, o enfoque seria um circo/teatro musical, com novo roteiro de Newton Moreno e Alessandro Tolle, acentuando o lado mais dramatúrgico do poema original.
Em primeiro lugar, desvinculado do aporte exclusivamente coreográfico, sabia que, aqui, o enfoque seria um circo/teatro musical, com novo roteiro de Newton Moreno e Alessandro Tolle, acentuando o lado mais dramatúrgico do poema original.
E, ainda, com algumas liberdades no libreto, tanto no que se
refere à destinação de algumas canções para outros personagens atendendo à
narrativa dramática. E, desta vez, acentuando mais o contraste entre as alegrias
e o riso de um circo, com a tragédia e as lágrimas de uma guerra que atinge
seus protagonistas.
O resultado não poderia ser melhor com o inventivo olhar armado
do diretor João Fonseca que, mesmo imprimindo uma quase duração excessiva do
musical comparada com a do balé, conseguiu imprimir um perfeito equilíbrio
entre as imagens oníricas de um circo, a força poética da trama entre o amor e
a guerra e o lirismo das canções num espetáculo que emociona e contagia o público.
Um brilho ainda presente na feérica cenografia (Nello
Marrese) e figurinos aquarelados (Carol Lobato), onde explode a magia da estética ingênua e pura de um circo contrastada com os terrores e misérias de uma guerra.
Quanto ao score
musical, mesmo sem as vozes maiores da trilha gravada original, tem belos
destaques como intérpretes musicais em Ana Baird (a mulher barbada), em
Fernando Eiras (como o administrador do circo), nos delicados timbres vocais de
Gabriel Stauffer (Frederico) e na
densidade interpretativa de Reiner Tenente (o Clown).
Este revelando seu talento múltiplo como ator/cantor na
expressão das nuances trágico/cômicas de um palhaço, especialmente na cena da
tortura com a Valsa dos Clowns.
Destaque ainda para as inspiradas passagens coreográficas (de Tania Nardini)
destinadas a Beatriz (Letícia Colin)
com os seus seres equestres.
Entre o amor e a guerra, entre o riso e a tragédia, entre a
poesia e a música, este Grande Circo
Místico é uma tocante elegia ao oficio teatral da vida. Onde atuamos alterativos
no circo da humanidade no qual ora somos obrigados a ser mágicos, ora palhaços, ora
equilibristas, acrobatas ou domadores diante das feras que podem chegar a
qualquer momento.
A REPRESENTAÇÃO ALÉM DO REAL
Nesta mesma temporada cultural, entre a curiosidade e a surpresa,
atraindo um extenso público de várias idades, o que mais fica da exposição de
nove trabalhos do artista australiano Ron
Mueck no MAM, é a capacidade dramático/cênica de atingir o lado mais intrínseco da
subjetividade da figura humana representada.
Fazendo um retrospecto na trajetória da reprodução escultórica
do corpo humano, o artista não deixa de insinuar uma referência estetizante a
períodos diversos da história da arte, ora às figuras egípcias gigantescas, ora
à pureza das linhas em dimensões reais no classicismo grego, ora às
protuberâncias carnais dos anjos barrocos.
E aí ignora a desconstrução das formas iniciada a partir de Rodin, do surrealismo ao abstrato, e
absorve, em suas criações escultóricas, as lições do hiper-realismo na pintura. Para muitos,
assumindo uma tendência conservadora de retorno ao figurativo e, perigosamente,
próxima das imagens de museus de cera.
Mas passada a primeira percepção de até onde pode chegar a
veracidade da imagem representada, numa época onde os recursos técnicos são
capazes de ir muito além disto, vai crescendo uma sorrateira sensação íntima de
que o que se vê somos nós diante do espelho do tempo (especialmente pela
prevalência de rostos marcados pela dor ou pelo envelhecimento).
Nestes corpos o que parece existir, internamente, é um
misterioso sopro de vida que não emana apenas do detalhamento perfeccionista de
rugas, veias, pelos, unhas, calosidades, moldados em formas normais, exageradas
ou em pequenas proporções.
O grande segredo de Ron
Mueck não é só o fato pictórico de através da resina, fibra de vidro,
silicone e acrílico, chegar o mais perto possível do ser representado mas, sobretudo, a percepção do emocional que
emana destes rostos marcados pelo difícil ato de suportar a condição humana.