INTERMEZZO LITERÁRIO : DRUMMOND E OS CEMITÉRIOS DE PAPEL

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - Retrato do poeta quando jovem. Foto/divulgação.

 

 Baú, recipiente onde se guardam velhas lembranças, cartas, fotos amareladas pelo tempo, pequenos objetos pessoais que um dia tiveram qualquer especial significado. Tudo resguardado da curiosidade alheia, guardado a sete chaves, lapidado como um túmulo faraônico onde tudo que servia em vida o morto, faz companhia no mistério do além túmulo.

Baú tem este toque ancestral, desvenda origens, revela segredos e, por isto mesmo, representa sempre uma ameaça de invasão de privacidade e decifração de sigilos, enigmas,  incógnitas. No Brasil virou termo popular como guardião de fotos, partituras, textos, depositário de legados artísticos inéditos à espera de um descobridor. Como o famoso baú do Raul Seixas que fez nascer musicas inéditas e, até mesmo, certas polêmicas.

Toda esta introdução compõe um prólogo autoral, de minha parte e também do poeta e jornalista mineiro Jorge Sanglard, de desenterrar ou exumar o poeta maior Carlos Drummond de Andrade de “cemitérios de papel”. Até então, impenetráveis, indevassáveis, misteriosos há quase oito décadas, da era “antediluviana” dos twenties”, segundo palavras do próprio poeta.

Há cerca de meio século, em 1972, o poeta Affonso Romano de Sant'Ana procura o autor destas anotações e que, então, em anos juvenis exercia seu primeiro oficio profissional como funcionário da centenária biblioteca municipal de Juiz de Fora. E levanta a hipótese (fundamental à tese que escrevia sobre Drummond) de que o poeta teria publicado seus primeiros textos críticos em jornais daquela cidade mineira e não em Belo Horizonte, como sempre se divulgou.

Assustado com o estado precário e desorganizado do arquivo de jornais da época, resolvi então escrever ao próprio Drummond que, surpreso com a missiva questionadora, responde em carta, carregada de sua habitual ironia:

De fato, eu e Emílio Moura (não me lembro se outros também) andamos colaborando em jornais de Juiz de Fora, na era antediluviana dos twenties. Ele no Jornal do Commércio e, ambos, na Gazeta Comercial, do bom Heitor Guimarães. Tínhamos sede de escrever, e os jornais daí mantinham uma tradição amável de acolher a gente moça, naturalmente sem pagar níquel. Não guardei nenhum de meus escritos de então, e não gostaria de revê-los. A redescoberta destas coisas me cheira a exumação policial de cadáveres. Por isso, acho melhor que você não se anime a vasculhar nesses cemitérios de papel”.

Respeitei a vontade do poeta, então, na glória existencial e criativa de seus setenta anos. E deixei guardada esta carta num baú de relíquias literárias de minha juventude, convivendo com outras missivas da mesma época – de Otto Maria Carpeaux, Haroldo de Campos, Lygia Fagundes Telles, Murilo Mendes e outros mais, especialmente de iniciantes de minha geração, que passariam definitivamente às páginas da literatura brasileira.

Trinta anos depois daquela curiosa correspondência literária, resolvo abrir o baú, oferecendo-a para uma exposição comemorativa do centenário do poeta em Juiz de Fora onde, através de iniciativa de Jorge Sanglard junto a uma fundação cultural da cidade, são revelados aqueles textos inéditos, encontrados, afinal, em ancestrais alfarrábios locais.

Para Haroldo Ceravolo Sereza, em resenha  no Caderno 2 do Estadão (09/11/2002), isto emblematicamente marcava o début crítico de Drummond e permitia conhecer, com precisão, como o poeta via e analisava as mudanças trazidas ao cenário cultural do País pela Semana de Arte Moderna de 1922.

Para surpresa dos meios literários e da própria trajetória crítica do poeta, fazendo elogios ao parnasiano Olavo Bilac, criticando “o erro de fazer literatura com o sertão, inculto, primitivo e rudimentar” (e imaginem que ainda estava longe de acontecer a explosão de genialidade no gênero pelo Rosa da prosa). E mais, chamando Oswald de Andrade de “bárbaro corrompido pela inteligência”, classificando Mário de Andrade quando escrevia sonetos “de bem mauzinho, benza-o Deus”. Ou, sob o império do olhar crítico, sem qualquer xenofobia, destacando Cecília Meireles: “Não será a mais admirável das nossas poetisas, essa que é simultaneamente a menos brasileira de todas?”.

Ah, se de todos os baús saíssem textos, gastos materialmente pelo tempo mas, por seu conteúdo inusitado e porque não provocador, cheirando a tinta nova. Nesta proximidade do centenário ano que vem da Semana de 22, estes experimentos literários plenos de conservadorismo e tão contraditórios ao pensamento inovador do poeta maior seriam, por acaso, arroubos da mente inquietante e indagadora de um jovem escritor em processo de formação?

Às vezes penso, terei errado por desrespeitar a vontade do poeta? Enquanto peço desculpas respeitosamente, como conterrâneos à moda da mineiridade e sob claro enigma, ao tão caro poeta. Com quem estive pessoalmente, pela última vez, na comemoração de seus 80 anos na Biblioteca Nacional/RJ.

Com sua memória viva, reconheceu-me, lembrou-se do fato e, como lembrança deu-me um livro com uma dedicatória em que, carinhosamente dizia, com sutil sotaque crítico, para quem hesitava ainda em preservar a exploração do mágico segredo daqueles cemitérios de papel: “do poeta ao também poeta”...

                                            Wagner Corrêa de Araújo  

   

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, em duas épocas. Arte/Revista Cult.


SUSANNE LINKE : EM BUSCA DE UM NOVO IDEÁRIO PARA A DANÇA

 

IM BADE WANNEN. SUSANNE LINKE em uma das remontagens de sua  mais celebrada criação. Fotos/Gert Weigelt.


O primeiro contato da coreógrafa alemã Susanne Linke com o mundo foi através do movimento. A infância marcada pela meningite tornou a dança fundamental à sua perspectiva de redenção para a vida. Sendo considerada, enfim, uma das mais importantes criadoras contemporâneas a partir de sua trajetória na dança-teatro distinguido-a, em celebrado tríptico estético, ao lado de Pina Bausch e Reinhild Hoffmann.

No final dos anos oitenta, tivemos um contato pessoal com Susanne Linke, através de um lúcido depoimento desta, onde ela falava de sua formação, influências, processos de criação, os temas de suas coreografias e a prevalente relação da dança com o teatro em sua obra.

Mais uma vez, incursionando pelas plataformas digitais reencontramos a coreógrafa em plena atuação criativa, ora retomando antigos trabalhos ora estreando outros em pleno tempo pandêmico. Diante disto achei oportuno lembrar aqui como se deu a sua busca por um novo código para a dança.

Ela confessou então que sua primeira escola foi a moderna através de Mary Wigman:

"Há uma motivação que, a partir da emoção, leva à ideia. Mas não é apenas esta emoção e sim a vontade de dizer alguma coisa com uma ideia. Passar uma mensagem e experimentar, em diversos níveis o ato de dançar. Em Wigman há este permanente questionamento. É dela também  o melhor treinamento para se sentir a unidade do corpo. Será difícil aparecer um procedimento tão eficaz. Foi com ela que aprendi o sentido integral de cada parte do corpo na dança, como movimentar de forma completa um dedo. Nunca vi nada igual até hoje”.

AFFEKTE. SUSANNE LINKE.2016. Heidemarie-Franz artwork.

Sua passagem, nos anos 70, pela Folkwang, escola fundada em 1928 por Kurt Joss tendo, incrivelmente, sobrevivido à ascensão do nazismo, foi o que mais marcou sua posterior trajetória numa absoluta e particular escritura coreográfica. Seguida pelo capital encontro com Pina Bausch.

Foi lá que encontrou Mary Wigman com quem aprendeu coisas muito importantes. Através de um método sempre muito rigoroso, muito técnico, numa fusão da disciplina clássica com o contemporâneo. Depois veio Pina Bausch com quem trabalhou por três anos, no seu tanzstudio. E também Reinhild Hoffmann.

Com a mesma idade minha, trabalhamos juntas e aprendemos muito. Pina era mais velha, exercia uma maior influência, preservando o trabalho individual de cada uma, com suas diferenças. Não se fazia a dança abstrata, mas toda criação era motivada por uma ideia. Em incrível movimentação que nos levava para a frente. Cada uma de nós em planos diferentes, fazendo disto um período único da moderna dança alemã”.

Questionada sobre seu processo de criação, Susanne explicou como dimensiona a temática cotidiana em diferentes formatações da gestualidade, do movimento e da corporeidade.

“Às vezes, tem-se uma ideia fixa do que se vai fazer, ou a sensação, a intuição do que deve ser feito. Ou então você tem a música que vai ser usada e não sabe, no início, o que fazer dela. Ou quais as melhores partes para expressar sua ideia. Existe também o tema, então trabalha-se em cima dele. Dando-lhe um tratamento dramático ou transformando-o numa história”.

Fugindo daquele tradicional repertório que coloca a dança num mundo metafórico, de sonho, de magia, de hinos à felicidade e à beleza, ela prefere sempre os temas do dia-a-dia que, afinal, são mais sedutores e representam um desafio maior.

Ela ressalta a geração pós anos 70, impulsionada por novos desafios a partir do ideário de Pina Bausch que conectava as linguagens do teatro e da dança, criando uma espécie de teatro coreográfico, em processo revolucionário antecipado no período entre guerras, por Kurt Joss.

Num momento em que tantos experimentos autotitulam se como dança-teatro, sem saber exatamente de onde devem partir as conexões e até onde chegam os limites entre uma linguagem artística e a outra, Susanne Linke reflete:

“Passei pelas duas formas e sei dos riscos que esta tendência representa, pois há sempre a possibilidade do teatro prevalecer. A dança tem algo muito especial que o teatro não tem. E é muito perigoso não perceber isto em muitos grupos de dança/teatro, porque é mais fácil enfatizar os elementos teatrais do que os coreográficos.

É preciso, sobretudo, conhecer os limites estéticos de cada um deles. Pode ser, quem sabe, que um dia a linguagem seja uma só. Não sei o que vai acontecer neste futuro sideral. Só sei que a dança seguirá sempre em frente. É o seu destino natural”, conclui Linke.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

  Releitura de NEMMOKNA. Susanne Linke. 2020. Disponibilizada nas plataformas digitais.

O CÓDIGO COREOGRÁFICO/TEATRAL NA OBRA DE STOCKHAUSEN

 


PALIMPSESTE SOLO/DUO. Michèle Noiret,a partir de Stockhausen. 2017. Foto/Sergine Laloux.

Em sua obra, com alto circuito inventivo, Karlheinz Stockhausen, um dos mais revolucionários compositores de seu tempo, nunca separava a linguagem musical do ato de viver. E tudo se processando numa espécie de ritual música/vida que estabelecia elos entre o som e os movimentos da corporeidade.

Num encontro capaz de interagir intérpretes, público e compositor, em formatação de liturgia transcendente e que o próprio Stockhausen assumia como postura filosófico/musical: “Qualquer música leva às leis do Universo”.

E é aí que entra o gesto, o movimento e a dança em obra que congrega várias formas de espetáculo transmutando-se numa única manifestação estética. Assistindo-se a um concerto que é, simultaneamente, música, teatro, ópera e dança.

Numa das raras apresentações deste segmento múltiplo de sua criação, com a presença do próprio autor, ocorrida no final de 1988, em salas de concerto brasileiras, com forte sustentáculo precursor de dança-teatro, o papel da coreografia era apenas um dos elementos de uma espécie de “drama musical pós-wagneriano”, na definição do compositor.

Nestes tempos de pandemia em que procuramos vencer o reiterativo cotidiano de isolamento através das plataformas digitais há, vez por outra, oportunas descobertas. Onde nos foi possível reencontrar a bailarina e coreógrafa belga Michele Noiret fazendo uma releitura daquele Solo, uma de suas criações a partir de trabalho colaborativo com K.Stockhausen e apresentada exatamente no espetáculo de 1988.

Numa performance musical/coreográfica reunindo dois bailarinos (Michele Noiret e Jean Michel Chalon), formados no Mudra de Bruxelas, com instrumentistas e efeitos acústicos/eletrônicos. Dando vazão, segundo eles, a uma proposta de Stockhausen: “Ele dá a ideia, nós encontramos os movimentos. Como a música já existe, há uma ideia abstrata que nós transformamos numa coisa concreta”.

No caso especifico de Michele Noiret, ela protagonizava o solo Examen, uma peça para trompete, clarineta, voz e piano, estruturando a original notação coreográfica que divide a corporeidade em oitavas, transformando-a numa caixa de ressonância dos instrumentos.

Obra em torno da qual ela vem realizando releituras a partir da peça original de 1987, sendo a mais recente esta que ela titula como Palimpseste Solo, estreada em 2015 e, atualmente, disponível na integra, nas redes virtuais, com data de 2017 no registro visual.

O corpo passando, desde a primeira versão, a ser uma escala musical, numa tessitura de oitavas em treze gestos  das mãos:a mão direita se movimentando pelas sonoridades do trompete enquanto a mão esquerda, por sua vez, acompanha os vocalizes de um tenor.

Em depoimento para uma entrevista, ela nos explicou :“Cada gesto corresponde a uma nota e cada parte do corpo é uma linha da escala musical. É uma noção tão rigorosa que, em determinado momento, quase me levou a ficar doente. Fui salva a tempo ao me juntar a Jean Michel Chalon. Conseguimos, assim, com certa criatividade, nos libertar desta sincronização absoluta”.

Nesta retomada que vimos recentemente, a bailarina/coreógrafa quis prestar um tributo a Stockhausen, pela importância que este teve na trajetória do seu posterior projeto de criação coreográfica, inclusive por intermédio de variados registros fílmicos da obra, desde 2004 aos últimos anos.

PALIMPSESTE SOLO/DUO. Michèle Noiret e David Drouard. 2017. Foto/Sergine Laloux.


Palimpseste Solo, agora, é mais sintético no uso de recursos musicais, limitando-se a um duo para clarineta e piano que se estende por cerca de meia hora. Numa concepção no entremeio de sonoridades alterativas, ora com passagens mais energizadas, ora com pausas de silencio. Em recortes de acordes minimalistas que guiam um gestual ágil e, ao mesmo tempo, de fluida elegância.

E que traz um elemento novo com a interferência de um bailarino em compasso especular fazendo o contraponto de cada um dos gestos, sincronizados do feminino ao masculino, numa notação gestual entre a pulsão da fisicalidade e a conexão mental.

Com Stockhausen, cada dançarino tem o seu músico correspondente - algo similar ao método de Dalcroze aplicado por Nijinsky na “Sagração da Primavera”. Mas, aqui, o conflito entre música e dança, instrumento e bailarino é um provocador desafio.

Se, por um lado, prevalece a linguagem musical voltada para um tempo futuro, por outro a dança é submetida a um código de combinações sonoras em escritura com difíceis rigores microscópicos.

Para Michele Noiret : “Cada performance é muito rica, mas esta escrita coreográfica exige tanto que quase limita a livre expressão do bailarino. E, ironicamente, é tão cheia de fronteiras quanto a dança clássica...”


                                            Wagner Corrêa de Araújo

                                            

KARLHEINZ STOCKHAUSEN. Retrato na maturidade. Foto/divulgação.

                     

ANTONIO GADES E O FLAMENCO : ENTRE O PALCO E A TELA

CARMEN, de Antonio Gades. Em processo de ensaio no palco. Foto/Fundación Antonio Gades.


Considerada tecnicamente uma das mais difíceis danças populares do mundo, o
flamenco é a manifestação mais autóctone da alma espanhola. Exigindo dedicação absoluta e muito folego para dar vazão a toda sua força energética.

Som e suor, cor e ritmo vibrante são as marcas registradas e os prevalentes caracteres deste tradicional gênero coreográfico que, nos últimos anos, surpreende inclusive por suas releituras à luz da contemporaneidade. Cultivada em compasso ancestral sob bases folclóricas teve nomes exponenciais como Paco de Ronda, Elvira Real, Carmen Amayo, Jose Greco, La Argentinita e sua irmã Pilar Lopez.

E foi como discípulo de Pilar Lopez, integrando sua Cia, que surgiu Antonio Gades, o seu maior fenômeno de critica e de público de todos os tempos, estendendo este prestigio ao cinema. Reconhecendo-a sempre como “a minha mestra, inclusive dando-lhe esta alcunha nas tomadas iniciais (maquiando-se no camarim) do filme de Carlos SauraBodas de Sangue, de 1981.  

Ainda no caminho aberto por ela, entre os anos 50/60, Gades encontrou seu original estilo, tornado universalmente célebre, através de trilogia clássica complementada por Carmen, 1983, e El Amor Brujo, 1986. Sabendo com maestria técnica e inventiva unir a dança flamenca à representação dramática e, assim, nesta conexão dança-teatro, alcançar expressão ímpar, como coreógrafo, bailarino e ator, muito além de uma mera transposição estilística das raízes populares do flamenco.

Em Bodas de Sangue, ele mostra, dançando e atuando como personagem, a alma dilacerada de uma Espanha de contrastes e conflitos, a partir de peculiar ressignificado imprimido a um dos mais conhecidos textos teatrais de Federico Garcia Lorca.

Em El Amor Brujo, penetra dramaticamente na ambiência pitoresca dos ciganos da Andaluzia, num clima naturalista de superstição e magia. E em Carmen, livre versão cinematográfica mais próxima da novela de Prosper Merimée que da ópera de Bizet, provoca uma espécie de possessão de seus intérpretes pelos personagens.

EL AMOR BRUJO. Antonio Gades e Cristina Hoyos. Cena do filme de Carlos Saura,1986.

Em todas estas incursões coreodramáticas no cinema, Gades teve a privilegiada câmera inventiva do diretor Carlos Saura, não só valorizando estilisticamente o seu trabalho com as possibilidades expressivas que o cinema oferece nos detalhamentos de primeiro plano, como também por seu incrível resultado estético potencializado na conquista global de público.

Mas o Gades do palco, pelo exemplo de sua Carmen, é bem diferente daquele que aparece na tela. Mas, antes, é preciso conhecê-lo melhor como o esteta apaixonado pelo colecionismo de inúmeros Picassos e Mirós, todos com efusivas dedicatórias pessoais. Sendo também um fiel praticante de esportes como o iatismo e um expert nas conquistas amorosas.

Mas, por outro lado, rigoroso em suas posturas políticas, recusando-se sempre a exibir sua arte na Espanha franquista como um convicto membro do Partido Comunista Espanhol. Alimentado pela revolta contra o sangue da ditadura franquista que, entre suas inúmeras vitimas, levou seu poeta favorito - Federico Garcia Lorca.

Em 1988, tive o privilégio de acompanhar, a convite de sua Cia, um de seus agitados e exigentes ensaios, desta vez na plateia do Municipal carioca, sujeito a acessos imprevistos de cólera, numa experiência tão ou até mais fascinante do que o próprio espetáculo final, no caso Carmen, pela completude integrativa de uma aula viva de dança e de teatro.

Na época, comentei em análise crítica da performance:

Na plateia, Gades grita, gesticula, ameaça, comanda com disciplina militar o seu grupo de bailarinos. O espetáculo parecia ter que estrear naquela noite como uma peça inédita no repertório de seu grupo. Tantos os mínimos detalhes discutidos e inúmeras as repetições das passagens do balé, como se para todos eles (dos bailarinos e músicos aos técnicos de sonoplastia e iluminação) fosse a primeira e não a centésima representação de“Carmen”.

Depois de cerca de duas horas, em que eram passadas e repetidas, à exaustão, danças com acompanhamentos de guitarras ao vivo, de seguidilhas a bulerias, alternadas sempre pelas explosões nervosas de Gades, começava outro desafio, com os efeitos luminares.

O que sempre levava a resultados brilhantes em seus espetáculos, onde recortes cênicos de grupos e solistas, transmutados em verdadeiros estudos de claro/escuro, sob esboços de sombra e luz, lembravam, em processo quase especular, telas de Velásquez, El Greco e Goya.

Ao final, uma constatação curiosa. No caso específico do ensaio geral de Carmen, segundo o olhar de Gades para o palco, criava-se uma maior proximidade com a versão cinematográfica, talvez pela presença, ali, do coreógrafo, bailarino e diretor do espetáculo atuando, simultaneamente, como o personagem do filme. Enquanto, em paralelo, pouca afinidade seria encontrada no espetáculo definitivo, relativamente comparado ao que se viu na tela.

Questionei o próprio Gades sobre isto, que por sua vez explicou :“O filme trata de uma assimilação ou quase possessão dos intérpretes de Carmen pelos personagens. Mas, para o teatro, eu quis uma coisa totalmente distinta: projetar a essência desta Carmen no que há de mais fundo e autêntico na cultura espanhola”.

Mesmo com esta justificativa, pelo menos para um ensaio, não foi possível escapar da sensação mágica de ver, de repente, em processo metafórico, as câmeras de Carlos Saura rodando, em meio à escuridão da plateia vazia... 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

BODAS DE SANGUE. Antonio Gades e Cristina Hoyos. Cena do filme de Carlos Saura, 1981.

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