CRISTINA 1300 - AFFONSO ÁVILA HOMEM AO TERMO : UM META DOCUMENTÁRIO SOBRE POESIA, LITERATURA E BARROCO MINEIRO

Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo. Eleonora Santa Rosa / Direção, concepção e roteiro. Dezembro /2024. Filme / Foto Divulgação.

 

O poeta, ensaísta e pesquisador do Barroco, o mineiro Affonso Ávila é tema de um incisivo filme documentário, sob ideário, roteiro e direção de Eleonora Santa Rosa, que em noite prestigiada no Estação Botafogo, finalmente estreou no RJ, depois de BH, Ouro Preto, São Paulo, seguindo para outras capitais, com previsões no exterior.

O filme traz uma linguagem inovadora para os habituais documentários sobre literatura dando, em caráter prioritário, a palavra ao próprio poeta para falar sobre sua obra em importantes registros opinativos sob o formato de auto-depoimentos, gravados e filmados com o escritor.

Além da proposta de não só ouvir a sua palavra personalista, mas também de mostrar, em plásticas composições gráficas e virtuais, a textualidade dos seus poemas, considerados da maior simbologia como expressão de uma revolução estética na poesia brasileira.


Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo. Eleonora Santa Rosa / Direção, concepção e roteiro. Dezembro /2024. Filme / Foto Divulgação.

 

Affonso Ávila fez parte de fundamentais movimentos literários a partir dos anos 50, desde a revista Tendência às suas colaborações participativas no Concretismo, através da publicação paulista - Invenção - onde atuou ao lado de outros nomes básicos que revolucionaram o modo de ver e de sentir o ofício poético, com um olhar sempre armado na contemporaneidade.

Com uma vasta bibliografia, em livros publicados indo da poesia ao ensaio literário, além de ser considerado uma autoridade na pesquisa e na valoração do Barroco Mineiro que o tornou um marco, tanto no seu discurso analítico do movimento sob todas as suas derivações, como nos seus reflexos  trans temporais na arte e na cultura brasileira.

Uma exibição mais que afetiva, como sobrinho do casal de poetas Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, com os quais passei dois memoráveis anos adolescentes, em anos turbulentos e obscuros pós implantação da ditadura militar, 1965/66, exatamente no icônico endereço Rua Cristina,1300 para completar o Curso Clássico na quase vizinha Faculdade de Filosofia da UFMG.

Ressaltando ser ali, naquela casa, um quase obrigatório ponto de encontro para a intelectualidade mineira e para escritores além-horizontes das Gerais. Um delírio presencial, só no curto período de convivência familiar com o estimado casal e filhos (a maioria tornada de poetas a artistas).

Imaginem o encantamento, para um inquieto espírito de alguém entre 16/17 anos, ver e ouvir de perto Murilo Rubião ou Murilo Mendes, e até o francês Michel Butor, entre tantos outros da antiga e da novíssima geração, Adão Ventura, Sérgio Santana, Luís Vilela e por aí vai.

Onde, esta noite de exibição representou uma proustiana viagem no tempo, recheada com um sotaque roseano de mineiridade. Completada no reencontro de um dos amigos jovens daquela época de busca e de revelação vocacional, caso de talentos artísticos como o do hoje conceituado nome da criação plástica brasileira Angelo Marzano.

E também pela presença do reconhecido poeta, escritor e tradutor apurado, crítico e ensaísta Julio Castañon Guimarães que tive o prazer de conhecer em tempos posteriores, nos meios acadêmicos-universitários juizdeforanos, ainda no final dos anos sessenta. Ambos, aqui, no uso da palavra certa na hora certa, na mesa de debates depois do filme, coordenada por sua convicta diretora - Eleonora Santa Rosa.

A responsável por esta sessão fílmica de tanta empatia e mergulho sensorial proporcionados, simultaneamente, pela conexão da  luminosidade do legado de um poeta maior, com a magia autoral de um filme, incluída a participação da voz carismática da atriz Vera Holtz na leitura em off dos poemas, tudo, enfim, nos levando a uma emotiva trajetória memorial nos espaços siderais da mente...

                               

                                         Wagner Corrêa de Araújo


Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo.  Estação NET Botafogo, 04/12/2024. Da esquerda para a direita, Vera Holtz, Angelo Marzano, Wagner Corrêa de Araújo, Eleonora Santa Rosa e Júlio Castañon Guimarães.

O REI DO ROCK : SOB ENVOLVENTE INCURSÃO DRAMATÚRGICA, A ASCENSÃO E QUEDA DE UM ÍCONE MUSICAL


O Rei do Rock - O Musical. Beto Sargentelli/Dramaturgia Concepcional. João Fonseca/Direção. Dezembro/2024. Stephan Solo/Fotos.


Embora a rápida ascensão ao êxito tenha se encaminhado para um controvertido epílogo aos 42 anos, na história daquele que foi titulado como impulsionador de um gênero musical - o rock - de exponencial apelo popular, o legado de Elvis Presley continua vivo meio século depois.

E foi a partir desta narrativa dramatúrgico-musical  que o seu idealizador, autor e protagonista titular - Beto Sargentelli - alcançou um absoluto sucesso de público e o aplauso da crítica desde a sua estreia paulista, seguida por inúmeras indicações a prêmios teatrais.

Chegando, agora, a vez do público e dos palcos cariocas, o privilégio de conhecerem de perto esta bem sucedida produção  - O Rei do Rock - O Musical. Reunindo, em dimensionamento super apurado, desde sua direção artesanal por João Fonseca, a um elenco afinado no traçado presencial de personagens marcantes.

Onde além do brilho imprimido por Beto Sargentelli ao papel de Elvis, não fica atrás especialmente a atuação de Stella Maria Rodrigues como Gladys Presley, uma mãe de fé obsessiva na carreira do filho, ao lado de Stepan Nercessian encarnando o empresário ambicioso - Coronel Tom Parker - que levou Elvis às alturas concorrendo, ao mesmo tempo, para a dramática crise no ocaso dos últimos anos.


O Rei do Rock- O Musical. Com Nathalia Serra, Beto Sargentelli, Bel Moreira. Dezembro/2024. Stephan Solo/Fotos. 


Enquanto Stella Maria Rodrigues assume tons emotivos tanto em suas intervenções verbais como na sua expressiva vocalização de temas que a caracterizam, Stepan Nercessian destila um humor irônico no entremeio da malandrice de suas atitudes como promoter interesseiro do roqueiro.

Mas também vale ressaltar a adequação convicta, entre outros atores/cantores, a personagens tais como os de Bel Moreira (Priscilla Presley), Danilo Moura (B.B. King) e Tati Christine (Sister Rosetta Tharpe), integrando um extenso cast, ora mais protagonista ora mais coadjuvante, com boas e coesivas atuações.

Numa cenografia (Giorgia Massetan) despojada mas de plasticidade funcional, incluído um quase atemporal sotaque indumentário (Fábio Namatame), sob teor bastante identitário na figuração de Elvis. Sempre ampliada nos habituais efeitos luminares de Paulo Cesar Medeiros, para o alcance dos propósitos de um espaço cênico preenchido por falas teatrais, dança e muita musicalidade.

Priorizando um repertório de algumas das canções antológicas como Love Me Tender, Suspicious Mind, Burning Love, entre as que referenciam desde a base formadora, do country e do blues, direcionando-se sequencialmente aos acordes composicionais daquela que seria a marca estética  sinalizadora do Rock N’Roll.

Para isto, há um potencial empenho de Thiago Gimenes na direção musical conectando o energizado ritmo à correspondente corporeidade gestual pelas coreografias de Keila Bueno. E que acabam por contagiar palco/plateia nas interações físicas de Beto Sargentelli com entusiasmadas espectadoras.

Este, partindo de uma pesquisa exemplar, com visitas a Memphis e outros locais norte-americanos que vivenciaram a jornada criativa de Elvis Presley e também os seus dramas pessoais, dos 18 aos 42 anos. Tudo, enfim, para concretizar um tributo ao pai Roberto Sargentelli, profundo conhecedor do cancioneiro de Elvis, influindo na decisiva vontade de realizar este espetáculo.

Na dúplice intenção concepcional - performática de Beto Sargentelli, já bem reconhecido neste gênero dramatúrgico/musical e, aqui, tanto na função autoral como no ofício de ator protagonista, sendo favorecido pela sua transmutação ao vivo e a cores num singular sugestionamento do próprio Elvis.

O que nesta representação de O Rei do Rock - O Musical, em mais um dos acertos do comando direcional de João Fonseca, só poderia resultar num dos mais surpreendentes espetáculos musicais da temporada teatral 2024...


                                      Wagner Corrêa de Araújo


O Rei do Rock – O Musical está em cartaz no Teatro João Caetano/Centro/RJ,  sexta às 14h e 19h; sábado, 13h e 17h; e domingo, às 11h e 17h; até o dia 08 de dezembro.

RUSALKA / DVORÁK : UMA RARIDADE OPERÍSTICA NO PALCO DO MUNICIPAL CARIOCA ENCERRA A TEMPORADA 2024


Rusalka/A. Dvorák.TMRJ. André Heller-Lopes/Concepção direcional.  Novembro/2024. Daniel Ebendinger/Fotos.


Rusalka, uma ópera de Antonin Dvorák mais que centenária (1901), estreada em Praga, chega só agora ao TMRJ. Nada que pareça tão inusitado, pois foi apresentada também no Scala de Milão apenas em 2023, antecedida em similar proporção temporal para o presente século, em outros reconhecidos palcos operísticos - na Ópera de Paris (2001) e no Convent Garden de Londres (2012).

Embora seja a mais relevante, entre as dez óperas do  celebrado compositor tcheco, por sua inovadora linguagem orquestral, absorvendo influências composicionais wagnerianas conectadas a temas de canções folclóricas boêmias, Rusalka tornou-se popular entre os apreciadores do gênero por uma única ária - a Canção à Lua.

Seu libreto, do poeta e dramaturgo tcheco Jaroslav Kvapil, recorre primordialamente ao famoso conto de fadas de Hans Christian Andersen - A Pequena Sereia - que por sua vez inspirou desde versões cinematográficas dos Estúdios Disney a um musical americano (2007), que foi grande sucesso no Brasil a partir de sua montagem paulista em 2022.

O enredo de sustento fabular, transposto à ópera, ultrapassando os limites de fantasia do texto literário original, ao abordar com um sotaque mais psicológico o sonho de uma personagem do fundo de um lago, contextualizada como ninfa ou sereia e denominada Rusalka, desejando poder se transformar em ser humano e, assim, desfrutar dos prazeres do amor.


Rusalka/A. Dvorák. André Heller-Lopes/Concepção direcional. Ludmila Bauerfeldt/Russalka. Novembro/2024. Daniel Ebendinger/Fotos.


E é a partir deste confronto, água e terra, através de um espírito aquático e um príncipe terrestre que se desenvolve a trama. Entremeada pela bruxa (Jezibaba) que dá permissão ao desejo da protagonista titular com terrível imposição - tornar-se muda na sua transmutação em mulher apaixonada, nunca podendo seu amante ser infiel a ela.

Em papéis mais coadjuvantes, aparecem ainda Vodnik, o Senhor das Águas, um guarda caça e seu auxiliar de cozinha, incluindo-se ainda um grupo de ninfas, além da Princesa Estrangeira mais os integrantes do coro, como os convidados das núpcias no palácio do Príncipe.

Em outra das potenciais criações cenográficas de Renato Theobaldo, aqui frontalizada por projeções visuais de imagens em movimento, sugestionando uma paisagem aquática/celeste, enriquecida pelos efeitos luminares psicodélicos de Gonzalo Córdoba. Mas prejudicada, em parte, por certo atravancamento do espaço cênico com estantes de orquestra, cadeiras e um piano de cauda, no lugar do que seria um bosque circundante ao lago.

O que intefere, por vezes, na limitação dos movimentos dos cantores, especialmente no Ato I, remetendo quase a um concerto cênico. A montagem ainda tem como destaque o habitual requinte indumentário conferido por Marcelo Marques, sob  tonalidades atemporais com sutis traços de modernidade.

O clima de envolvência propiciado por uma partitura plena de elementos sinfônicos wagnerianos, como alguns leitmotivs, alterna passagens ora dramáticas, ora líricas com evocação romantizada de acordes de canções tradicionais tchecas, com absoluta correspondência no acerto da condução orquestral da OSTM por Luiz Fernando Malheiro.

Onde brilha um staff  performático com algumas das melhores vozes da nossa cena lírica. A começar da soprano Ludmila Bauerfeldt (Rusalka) capaz de se destacar, tanto em suas primorosas nuances de extensão vocal como nos pianíssimos comoventes da Canção à Lua.  Ao seu lado, a força da atuação dramático-vocal da mezzo-soprano Denise de Freitas (Jezibaba) e as icônicas presenças da soprano Eliane Coelho (Princesa Estrangeira) e do baixo-barítono Lício Bruno (Vodnik).

E, ainda, a atuação convicta do tenor Giovanni Tristacci, principalmente na carismática cena final com o dueto de amor, vingança e morte, moldado sob um inspirado referencial sinfônico/vocal do Liebestod do Tristão e Isolda, adicionando outro dos singulares elementos sinfônico/vocais integrados à partitura de Dvorák para Rusalka.   

Valendo ressaltar a importância da inclusão desta montagem inédita no repertório do Municipal carioca, sob um diferencial ideário estético/cênico de seu régisseur André Heller-Lopes, conectado à prevalente tendência nos palcos e filmagens de se resgatar esta ópera rara, sempre com um olhar sintonizado pela contemporaneidade...

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo



Rusalka encerrou a Temporada Lírica 2024/TMRJ, do dia 14 a 24/novembro, em diversos horários e na alternância de dois elencos.

CIA NACIONAL DA ÓPERA DE PEQUIM : SOB SUA DIFERENCIAL ESTÉTICA CONECTANDO MÚSICA, DANÇA, FALAS TEATRAIS E PERFORMANCES ACROBÁTICAS


Companhia Nacional da Ópera de Pequim. Wei Lyun/Diretor Artístico. Novembro/2024. Fotos/Divulgação.

 

Embora o formato que moldou esteticamente a Ópera de Pequim, prevalente até hoje, tenha sido estabelecido, através da corte imperial chinesa, desde o final do século XVIII, suas bases temáticas, sonoras e gestuais se originam de tradições milenares. Tendo sido radicalmente interrompido no período maoísta da Revolução Cultural, com seus direcionamentos ideológicos e narrativos voltados apenas a temas patrióticos que envolvessem os grandes feitos do Exército de Libertação Popular.

Depois deste conturbado período que, inclusive, obrigou o afastamento em campos de trabalho forçado de muitos dos artistas resistentes da Ópera de Pequim, novos tempos vieram com a retomada de seus ancestrais espetáculos. Sucedendo-se em frequentes turnês artísticas pelo mundo ocidental, registros cinematográficos e muitos estudos apurados, o mais destacado deles de autoria de Alexandra B. Bonds (Beijing Opera Costumes) publicado em 2019 e ainda não traduzido no Brasil.

Por todos estes motivos é um privilégio ter assistido às recentes apresentações no país (Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo) da conceituada Companhia Nacional da Ópera de Pequim que apresentou nesta rápida turnê,  em espetáculo único, três exemplares em versões mais condensadas de obras do seu repertório :  A Encruzilhada, A Donzela Celestial Espalhando Flores e O Roubo da Erva Mágica.


Companhia Nacional da Ópera de Pequim. As Mulheres Generais da Família Yang. Novembro/2024. Fotos/Divulgação.


E, na segunda parte, uma peça musical considerada um dos seus grandes clássicos – As Mulheres Generais da Família Yang - reunindo todos os cantores/atores, alguns deles em papéis apenas figurativos, além dos seus onze músicos ao vivo.

Os enredos de cada uma delas recorrendo a um universo fabulário regido pelos princípios morais e comportamentais budistas e taoístas, mostrando personagens que tem como lema existencial a destemida luta pela valoração das crenças e costumes populares.

Representadas por guerreiros homens e mulheres, sem distinção de sexualidade, empenhando-se cada um deles em papéis heróicos e marciais contra todas as manifestações do mal, sem deixar de lado também romantizadas histórias que fascinam os chineses por gerações.

Mesmo que não se fixem mais nos extremismos da era maoísta, há sempre uma inspiração nacionalista conectada não só às raízes históricas como também ao orgulho da China ter se transformado numa das mais influentes nações do planeta. E por incrível que possa parecer é através disto, no que se refere às composições musicais de apelo patriótico, onde os acordes se tornam mais palatáveis aos ouvintes acostumados ao bel canto.

Já que o acompanhamento orquestral chinês usual é normalmente feito, em sua maioria, por instrumentos asiáticos com sonoridades percussivas, cordas menos harmônicas e cantares nasalizados e guturais chegando a sugestionar, até mesmo, uma certa proximidade com ganidos.

Onde o grande atrativo estético para os espectadores ocidentais está na sua requintada indumentária, com seus figurinos pesados mas vistosos, confeccionados artesanalmente para figurar uma plasticidade milenar de extremo bom gosto e elegância. O que faz, por tais exigências, com que sejam usados obrigatóriamente por gerações de artistas em inúmeras performances, nunca sendo descartados.

Destacando-se ainda, em caráter especial, o detalhado visagismo facial, a pantomima e uma mais que sofisticada linguagem gestual, onde impressiona a precisão detalhista e estilizada dos braços e das mãos. Embora, ao mesmo tempo, todos os intérpretes se apresentem como exímios artistas - acrobatas em movimentos energizados que remetem às lutas marciais.

Tudo isto realizado com tal maestria que a ausência de elementos cenográficos é abstraída pela própria representação performática que por si só sugestiona, abstratamente, o desenvolvimento do enredo na sua envolvência palco/plateia. Em espetáculo que está abrindo perspectivas, impulsionadas com o recente acordo cultural Brasil/China, anunciando-se já para 2025 o celebrado Balé Nacional da China...

 

                                                Wagner Corrêa de Araújo

 

A Companhia Nacional da Ópera de Pequim, uma iniciativa da temporada 2024 Dellarte, apresentou-se em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, de 15 a 21 de novembro.


A PALAVRA QUE RESTA / CIA ATORES DE LAURA : POESIA E TRANSE SINALIZADOS SOB ANCESTRAL EXCLUSÃO HOMOFÓBICA

 

A Palavra Que Resta/Cia Atores de Laura. Daniel Herz/Dramaturgia e Direção Concepcional. Novembro/2024. Carolina Spork/Fotos. 


Transmutação dramatúrgica, sob mesma titularidade do livro de estreia, 2021, de um cearense - Stênio Gardel - faz de A Palavra Que Resta, na passagem comemorativa dos trinta e dois anos da Cia Atores de Laura, uma das grandes surpresas da temporada teatral carioca 2024, sempre na artesanal maestria da proposta de seu idealizador e diretor Daniel Herz.

Inspirada pelo romance, com sua escritura diferencial num sotaque linguístico meio roseano, aborda os conflitos gerados pelo resiliente preconceito machista no agreste nordestino, reprimindo quaisquer expansões dos desejos homoeróticos. Ao mostrar a súbita atração de Raimundo, um analfabeto de 20 anos, por Cícero parceiro de labuta rural na imersiva transgressão erotizada dos “sopros de sonho arrepiando a nuca, a realidade lambendo o desejo”...

O que para ambos, no enfrentamento do “proibido” relacionamento de identitárias sexualidades, acaba por provocar violenta reação parental, especialmente pelo lado genitor de Raimundo, diante do pânico de se repetir a necessária terminalidade, nas águas do rio, como o tio invertido e, então, vitimado em castigo por similar infração moral  - “a voz que afaga, a voz que afoga”...


A Palavra Que Resta/ Cia Atores de Laura. Daniel Herz/Dramaturgia/Direção Concepcional. Novembro/2024. Carolina Spork/Fotos.


E, assim, esta atração amorosa, ao deixar de ser apenas uma pulsão oculta, provocando agressões brutais vindas do pai com aprovação da mãe, tornada  pelo olhar deles, tão reprovável quanto a ordem proibitiva dada a Raimundo de não se escolarizar, pela priorização do serviço na roça, tornando-o um analfabeto por meio século.

Impedindo-o de entender as palavras da carta deixada por Cícero antes da separação definitiva dos dois, guardada esta como um segredo inviolável de estado por Raimundo, até que este decida se alfabetizar aos 71 anos, para finalmente resgatar o entendimento do que estaria escrito ali.

Senha condutora da versão dramatúrgica / direcional de A Palavra Que Resta, imprimida por Daniel Herz para seis convictos atores  e capaz de transcender-se como tributo a uma luminosa jornada de três  décadas da Cia Atores de Laura, uma vez mais ele a se destacar por seu irreprimível apuro estético no trato do ofício teatral.

Ao alternar a interpretação dos personagens sendo cada um deles, sem distinção de sexualidade, protagonistas ora como Cícero ora como Raimundo, estendendo-se este delineamento performático a outros papeis sugestionados pela trama literária original. 

Incluindo-se, aí também, a fundamental intervenção do travesti Suzzanny (assumida na peça pela autencidade identitária de Valéria Barcellos) para referenciar a transfobia na trajetória reprimida e repressora de Raimundo : “Tu já viu que não tem jeito, não  tem, a mudança vem, ou a gente correndo atrás dela ou atropelando a gente com tudo”...  

Não há como individualizar qualitativamente nenhum dos atores quando são brilhantes tanto na performance de qualquer uma, como revezando-se em todas as personificações alternativas (Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton, Verônica Reis e Valéria Barcellos).

Estendendo-se esta entrega total à representação técnica e artística de um espetáculo exemplar. Da concepção cenográfica e indumentária de Wanderley Gomes, no sugestionamento da paisagem lunar/solar sobre o árido sertão nordestino, ao simbolismo de letras do alfabeto bordadas nos figurinos.

Toda esta plasticidade pictórica, ressaltada bem a propósito pela iluminação (Aurélio de Simoni), completando-se na funcionalidade coesiva da lírica trilha autoral de Leandro Castilho, sinalizando alegria entre dores à causa da sexualidade oprimida, sob sutil psicoficalidade gestual (Édio Nunes).

Da solidez arrasadora desta transposição cênica, tão  consistente quanto poética de Daniel Herz no alcance de sua contundente textualidade literária (Stênio Gardel), que ecoa no recado carismático e tão necessário a dias tão controversos e preconceituosos como os que estamos vivendo : “Porque a ignorância faz é isso, exclui, isola (...) como se a gente tivesse que ser o que foi criado pra ser e pronto, sem escapar para os lados...”  

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo


A Palavra Que Resta/Cia Atores de Laura está em cartaz no Teatro Correios Léa Garcia/Centro/RJ, de quinta a domingo, as 19h; até 30 de novembro.

GAVESTON & EDUARDO / RENATO VIEIRA CIA DE DANÇA : RELEITURA DE UM TEMA MEDIEVAL COM O OLHAR ARMADO NA CONTEMPORANEIDADE


Gaveston & Eduardo/Renato Vieira Cia de Dança. Renato Vieira/Coreografia/Direção Concepcional. Novembro/2024. Robert Schwenk / Fotos.


O poeta e dramaturgo inglês Christopher Marlowe abordou em sua peça Eduardo II, no ano 1590 da era elizabetana,  o polêmico relacionamento amoroso entre o rei Eduardo e Piers Gaveston, um conde tornado o favorito de sua corte londrina medieval, desafiando todos os preconceitos religiosos e morais da época relativos às ligações homoeróticas.

Mas só no século XX a peça despertou novamente a atenção, desde a versão teatral, imprimida por Bertold Brecht, à transposição cinematográfica de Derek Jarman, em 1991, seguida da primeira adaptação para a cena coreográfica por David Bintley, atendendo a uma solicitação de Márcia Haydée para o repertório do Stuttgart Ballet, em 1995.

Tendo sido possivel, depois de tempos difíceis, tanto o filme como o balé, graças à onda libertária no entorno da livre identificação sexual nos anos 70/80 embora, na década seguinte, já se sentisse o enfrentamento da avassaladora epidemia da AIDS, o que acabou, inclusive, vitimando o cineasta inglês e reativando a pulsão homofóbica.

Tanto o enredo do filme como o do balé, na busca do alcance de uma linguagem comprometida com a atualidade, equilibrando-se entre duas épocas para focalizar uma resistência quase milenar contra os desejos homoeróticos e também para ecoar os anseios de uma acirrada luta continuada, nos dias de hoje, pelo esforço e tomada de posição da comunidade LGBTQIA contra este fluxo repressor.  


Gaveston & Eduardo / Renato Vieira Cia de Dança. Eduardo (Higor Campagnaro) e Gaveston ( Bruno Cezário). Novembro/2024. Robert Schwenk/Fotos.


Nos palcos cariocas, o diretor Moacyr Goes chegou a encenar a peça com fidelização ao texto dramatúrgico original, pela tradução de Barbara Heliodora, sendo a concepção da Renato Vieira Cia de Dança mais ousada em sua formatação como um teatro coreográfico, sabendo como conectar-se com uma temporalidade ancestral, sempre retomada à luz de uma presencial contemporaneidade.

Sob este direcionamento inventivo, o empenho do coreógrafo Renato Vieira sugestionando em paralelo, na sua livre concepção textual e direcional (com pareceria de Bruno Cezario), os conflitos da corte medieval presidida por Edward II e a rainha Isabella, de origem francesa, diante da prevalência de sua irrestrita paixão por Gaveston.

Com destaques performáticos na protagonização do rei (Higor Campagnaro) como do cortesão alçado a conde (Bruno Cezário), além da rainha (Monica Burity) e seu comparsa/conspirador General Mortimer (Felipe Padilha), mais o Bispo (Rafael Gomes) e a alternância de outros personagens por Hugo Lopes.

Num elenco sustentado por uma coesiva potencialidade no desempenho energizado e qualitativo como atores/bailarinos, dando vazão a uma corporeidade gestual que estabelece uma imediata conexão emotiva espaço arena-platéia, ampliada pelos vibrantes solos autorais (cello e guitarra) de Rafael Kalil e Daniel Drummond.

Que se completam por citações de antológicos temas roqueiros, indo dos Rolling Stones, Pink Floyd e AC/DC às sonoridades pop/dançantes de Tracy Chapman. O que traz um diferencial da versão de David Bintley para o Stutttgart Ballet, mais à base de canticos medievais e música sinfônica contemporânea.

E se estende também a um atemporal sustento cenográfico (Adriana Lima) usando um decor com sutil sotaque gótico na cortina frontal de apliques dourados, na coroa e nos tronos reais. Confrontando-se com figurinos (Bruno Cezario) marcados por tonalidades cotidianas ao lado de sensualizados corpos desnudos, acentuados por vazados ou focais efeitos luminares (Eduardo Dantas Careca).

Onde, diante de um ascendente retrocesso conservador promovido pelo nosso último (des) governo, tanto na cultura como no comportamento político/social, fica ressaltada a importância de criações coreográficas com este teor denunciativo e questionador como é o caso de Gaveston & Eduardo, incluindo-se, aqui, algumas instantâneas  e oportunas verbalizações dramatúrgicas.

Em mais uma luminosa iniciativa da Renato Vieira Cia de Dança que, após um longo período sem apresentar um espetáculo inédito completo, com sentida ausência a partir do surto da Covid 19, está de volta, abrindo novas perspectivas estético/temáticas na dança contemporânea  para deleite lúdico-reflexivo do universo coreográfico brasileiro...  

 

                                                Wagner Corrêa de Araújo


Gaveston & Eduardo, com a Renato Vieira Cia de Dança, está em cartaz no Espaço Sesc/Arena, de quinta a domingo, às 20hs. Até 17 de novembro.    

ANNA KARENINA / EIFMAN BALLET : DEVER FAMILIAR, AMOR PASSIONAL E MORTE SUICIDA NUM INSTIGANTE PAS DE TROIS COREODRAMÁTICO


Anna Karenina/Eifman Ballet. Boris Eifman/ Coreógrafo/Diretor. Outubro/2024. Souheil/Michael Khour/Fotos.


Desde a fundação de sua Cia – o Eifman Ballet de São Petersburgo, nos idos de 1977, o coreógrafo Boris Eifman enfrentou o desafio de assumir uma criatividade pioneira com seu sotaque modernista no conservador universo da dança soviética, chegando inclusive a usar inserções sonoras eletrônicas e roqueiras em seus balés, em tempos políticos ainda recessivos.

Suas coreografias ousavam não só na sua liberdade gestual, ainda que partisse de uma sólida base acadêmica, como na abordagem psicológica de temas inusitados. Caso da sua instigante releitura de um clássico da literatura russa, imprimindo-lhe cenas erotizadas, além do vício no ópio e alucinações (inéditas no romance original) e que precipitam o final trágico de Anna Karenina.

Ao mesmo tempo, as produções de seus espetáculos tem um requinte especial desde os elementos cenográficos  (Zinovy Margolin) aos elegantes figurinos atemporais (Vyacheslav Okunev). Em cenas frontais com espelhos que refletem os bailarinos na ambiência aristocrática de um baile em São Petersburgo ou em externas de uma passarela adornada com esculturas clássicas.

Enquanto luzes vazadas (Gleb Filshtinsky) são alternadas com tonalidades pictóricas chegando a usar efeitos psicodélicos para marcar os delírios e visões de uma mulher atormentada. E indo longe no sugestionamento de um violento ato sexual entre o marido revoltado Karenin (Sergey Volubuev) e a infiel Anna Karenina (Maria Abashova). Ao mesmo tempo provocando uma imersão metafórica num extasíaco envolvimento amoroso à distância de Anna com o jovem oficial de cavalaria Vronsky (Artyom Lepkov).


Anna Karenina/Eifman Ballet. Boris Eifman/ Coreógrafo/Diretor. Outubro/2024. Souheil/Michael Khour/Fotos.

Tudo se completando com uma trilha marcada por trechos de composições de Tchaikovsky, evitando usar qualquer referência dos seus três grandes balés, fazendo prevalecer obras que serviram de temas musicais para Balanchine - da Serenata de Cordas ao Tema com Variações.

Este último na reconstituição de um carnaval em Veneza onde predominam bufões, arlequins e colombinas, deslumbrantemente mascarados, sob uma envolvente Polonaise do Corpo de Baile, ocultando o disfarce dos dois enamorados (Anna e Vronski) sentindo-se forçados a estarem ali para evitar os olhares recriminatórios da sociedade russa.

Ou com inserções, em passagens mais trágicas, de acordes da Sinfonia Patética e da Abertura Fantasia Romeu e Julieta, surpreendendo o público com curiosos sons eletroacústicos para figurar, através do naipe masculino de bailarinos, o energizado movimento e os ruídos de um trem na cena suicida de Anna, no epílogo.

Se aos puristas possa até incomodar a adaptação do épico romance russo concentrada apenas em três personagens (a mulher, o marido e o amante), fica clara a influência de uma dança-teatro expressionista, indo de Béjart a Pina Bausch, no dimensionamento coreográfico e dramático da obra.

Com tal força simbólica a começar na brusca ruptura dos parâmetros estéticos de uma típica cia de balé russa,  sabendo tornar coesivo um subliminar gestual clássico com pulsões acrobáticas e contorsões de dança contemporânea, nas elevações especialmente da protagonista titular.

Com três luminosos protagonistas (alternativos nas outras apresentações) de um perfecionista pas de trois psicanalítico, emotivo e alucinatório de mentes subconscientes em visceral conflito – Maria Abashova  (Karenina), Sergey Volobuev (Karenin) e Artyom Lepkov  (Vronsky)

Acompanhados por um potencial staff de bailarinos, esguios, atléticos e bonitos, sob um porte fisico de modelos fotográficos, preenchendo a caixa cênica em figurações contrastantes do prazer e do pânico, da embriaguez orgiástica dos oficiais colegas de Vronsky ao pesadelo demente e surrealista de Anna Karenina.

Para quem teve a chance de conhecer ou de rever o Eifman Ballet que já passou por aqui uma vez, foi um privilégio absoluto compartilhar momentos de carismático encantamento palco/plateia, na brevíssima temporada de apenas tres apresentações em dois dias paulistas e dois cariocas.

E que este aplauso se estenda à criteriosa seleção do projeto Russian Seasons / Dellarte, na sua destacável missão de abertura de novos horizontes artísticos para a dança e para o público brasileiro...


                                               Wagner Corrêa de Araújo



Anna Karenina/Eifman Ballet se apresentou em dois finais de semana, em SP e no RJ, de 16 a 20 de outubro, respectivamente no Teatro Bradesco e na Cidade das Artes

TRIPLE BILL / BTM : COM UMA DIFERENCIAL VERSÃO COREOGRÁFICA DE RICARDO AMARANTE PARA SCHEHERAZADE


     

Triple Bill / BTM/RJ. Rodrigo Amarante/Concepção Coreográfica. Em cena, Scheherazade. Outubro/2024. Filipe Aguiar/Fotos. 


No apogeu dos Ballets Russes de Serge Dhiaghilev acontece, em 1910, a concepção coreográfica de Mikhail Fokine inspirada pela suíte sinfônica Scheherazade, de Nikolai Rimsky-Korsakv, 1888, numa época em que o exotismo orientalista estava em moda nos circuitos artísticos parisienses. A obra, originalmente em quatro movimentos, não seguiu rigorosamente a temática, a partir das fábulas árabes das Mil e Uma Noites, nem pela titulação conferida pelo compositor a cada um dos seus quatro movimentos.

Tendo na sua estreia, nos papéis protagonistas, a bailarina Ida Rubinstein ao lado do então grande fenômeno da época Vaslav Nijinsky.  Musicalmente um hit sinfônico através de maestros da categoria de Stokovsky a Bernstein e Karajan, sendo por vezes abordada em concepções mais avançadas por novos coreógrafos e cias, especialmente a partir da comemoração centenária dos Balés Russos de Dhiaghilev.

E entre estas, das mais recentes, está a do coreógrafo brasileiro Ricardo Amarante, concebida para o Vanemuine Ballet, Estônia, março de 2022, reapresentada em outros palcos mundiais e, agora, pela primeira vez no Brasil, com o Balé do Theatro Municipal carioca. Scheherazade integrando o espetáculo Triple Bill, completado por mais duas coreografias de Ricardo Amarante - Love Fear Loss e o Bolero, de Ravel, estas já apresentadas ali.

Em suas linhas básicas, o enredo fabular é no entorno de um sultão com seu harém de concubinas virgens onde as escolhidas são eliminadas após a primeira noite de prazeres. Escapando sempre Scheherazade ao narrar contos cuja sequencia era adiada às noites seguintes, até que esta é acusada de trair o sultão com um escravo prisioneiro, conduzindo a um trágico epílogo.


Triple Bill/ Ricardo Amarante/Coreografia. Love Fear Loss. Outubro/2024. Filipe Aguiar/Fotos.


Numa coreografia de Ricardo Amarante que não altera a sequencialidade narrativa da original de Fokine, mas  imprime um subliminar sotaque mais contemporâneo, sustentado em maior sensualidade gestual das cenas amorosas, entre solos e formações grupais, sob movimentos mais atléticos no naipe masculino dos bailarinos.

Com um bem ensaiado corpo de baile e convictos solistas, destacando-se em caráter especial,  o absoluto brilho performático da primeira bailarina Márcia Jaqueline no papel titular, alternado em outros dias por Juliana Valadão e Marcela Borges.

Ampliados pela funcional concepção cenográfica e indumentária de Renê Salazar, sob um evocativo décor árabe/orientalista e por um acurado acompanhamento da OSTM, na firme regência de Felipe Prazeres, sabendo como transmitir o fascínio sensorial  da mais emblemática obra sinfônica de Rimsky-Korsakof.

O programa Triple Bill, com obras do conceituado coreógrafo paulista Ricardo Amarante, sequenciado por Love Fear Loss, seu balé mais representado e aplaudido pela crítica, estruturado em três pas-de-deux, tendo como substrato a temática lírica e trágica de canções que celebrizaram Edith Piaf. Sugestionando o despertar da paixão amorosa (Hymne a l”Amour), dos conflitos da separação (Ne Me Quitte Pas) à dor causada pela perda (Mon Dieu).

A partir das releituras pianísticas (Natahliya Chepurenko), num palco, entre luzes e sombras, com um pianista ao vivo (Murilo Emerenciano) onde tres casais de bailarinos, em indumentárias romantizadas  (ofício inventivo tríplice do coreógrafo), percorrem uma trajetória de passional intimismo pelas emotivas canções compostas por Jacques Brel, Charles Dumont e a própria Piaf (em parceria com Marguerite Monnot).

Com alcance de potencial apelo interpretativo, expressivo e técnico, pelos duos (alternados na temporada) no entremeio dos acordes em compasso de prevalentes adágios, sucedendo-se os seis bailarinos em arabescos, giros, entrelaces e elevações. Sob luminosa performance de entrega amorosa dos três casais, nas sequenciais partes - Love (com Marcella Borges/Michael Willian), Fear (por Claudia Mota/Edifranc Alves) e Loss (através de Juliana Valadão/Cícero Gomes).

Para fechar o espetáculo o popular Bolero de Ravel, outra das vigorosas concepções autorais de Ricardo Amarante que o celebrizaram, além fronteiras, como mais um destes reconhecidos bailarinos/coreógrafos brasileiros. Em momento propício para avaliar, também, o ascendente nível do Balé do Theatro Municipal/RJ, depois de anos difíceis com perda progressiva de sua qualitativa tradição de cia clássica...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo



Triple Bill/BTM, em cartaz no TMRJ, em curta temporada, com horários diversos, de 16, quarta, até domingo, 20 de outubro.

MAESTRO SELVAGEM : NECESSÁRIO RESGATE DRAMATÚRGICO DA VIDA E DA OBRA DE CARLOS GOMES


Maestro Selvagem. Miriam Halfim/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção Concepcional. Outubro/2024. Guga Melgar/Fotos.


Este jovem começa onde eu termino”(Giuseppe Verdi).  Foi através destas palavras de entusiasmo e prenúncio de uma trajetória musical, ao assistir (1870), no Scala de Milão, à estreia de Il Guarany,  que o então mestre dos mestres da ópera  italiana, reconheceu o original talento de um brasileiro de origem provinciana - Antonio Carlos Gomes.

Qualquer um de nós, desde a sua infância, é capaz de se identificar com os conhecidos acordes iniciais da abertura da ópera Il Guarany, tema do programa radiofônico oficial  A Voz do Brasil, desde a sua criação em 1935, por Getúlio Vargas e sempre no ar às 19 hs.

Mas, certamente, poucos devem saber sobre a sua vida e obra, entre o Brasil e a Itália, no entremeio de sucessos e tragédias, daquele que viria a ser considerado o maior compositor operístico das Américas, no século XIX. Através de um legado de oito óperas, e algumas incursões em opereta, oratório, sonata, além de hinos, modinhas e canções que se  tornaram populares.

E se você for um destes que se interessam pela história da nossa música sem restrições de gêneros e estilos, corra para ver Maestro Selvagem, mais uma das apuradas criações dramatúrgicas de Miriam Halfim e, aqui, outra vez, sob a artesanal direção de Ary Coslov, tendo como protagonista titular o conhecido ator em atuações no teatro, na televisão e, especialmente, no cinema, estendendo-se à produção e direção cinematográfica, Luciano Quirino.


Maestro Selvagem. Miriam Halfim/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção. Luciano Quirino/Protagonista Titular.  Outubro/2024. Guga Melgar/Fotos.


O minimalista cenário (Marcos Flaksman) ambienta um clima atemporal, através de um painel frontal com projeções videograficas, extensivo a um figurino contemporâneo cotidiano (Samuel Abrantes) com sutil sugestionamento de costumes de época, sob os efeitos luminares, ora vazados ora focais, de Aurélio de Simoni.

Em mais uma de suas primorosas seleções musicais, Ary Coslov, em função dúplice como diretor, dá um panorama antológico entre trechos sinfônicos e vocais das óperas de Carlos Gomes. Incluindo, ainda, um movimento de sua inspirada Sonata Para Cordas, e algumas de suas melodiosas canções, destacando-se a personalista versão cantada de Ney Matogrosso para a modinha Quem Sabe.

O que é correspondido no espontâneo registro gestual (Marcelo de Aquino) do ator em suas movimentações pela caixa cênica ou pelas inflexões referenciais de um maestro regendo, com um discricionário acerto, embora não consiga escapar de reiterativos movimentos, longe da modulação composicional das obras apresentadas.

Onde a força da narrativa dramatúrgica (Miriam Halfim) com uma assumida sequencialidade coloquial dos desafios enfrentados por Carlos Gomes, de sua infância em Campinas, passando pelos seus encantamentos amorosos e sua chegada à capital do Império acabando por conquistar, por seu talento,  o reconhecimento de D. Pedro II, indo se aperfeiçoar em Milão, e compensado pelo triunfo de Il Guarany e de algumas outras óperas.

Até o advento de períodos difíceis, acentuados pelo fracasso de Maria Tudor, pela Proclamação da República (sendo ele, mais monarquista que o próprio Imperador) e por um câncer terminal, interrompendo seu derradeiro alento artístico no Conservatório de Belém do Pará, em 1896, completados seus sessenta anos.

Enquanto o enredo da peça no seu angulo musical faz ecoar a importância de um compositor que, embora preso a um melodismo operístico italiano, ousou abordar temas pátrios como o indigenismo usando instrumentos nativos e a escravidão, falando para o nosso tempo com o presencial de um ator (Luciano Quirino), subliminarmente identificável física e racialmente com Carlos Gomes.

Conectado por uma qualitativa  trilha sonora (Ary Coslov)  capaz de caracterizar as várias facetas do estilo de um  compositor entre a linguagem musical italiana, mas também habilitado por imprimir um sotaque artístico sob raízes brasileiras. Ou mesmo de vislumbrar um ocasional e discreto experimentalismo à moda wagneriana.

Tudo enfim concorrendo - dramaturgia refinada, direção luminosa e convicta performance atoral - para um espetáculo que merece ser conferido por sua proposta teatral didática, de resgate e tributo a um dos grandes personagens da arte musical e da cultura brasileira.


                                                  Wagner Corrêa de Araújo


Maestro Selvagem está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal/Centro/RJ,  quinta e sexta, às 19h; sábado e domingo, às 18h. Ate o dia 27 de outubro.

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