ABSOLVIÇÃO : TEATRO VERDADE SOB A ANGUSTIANTE E PERTURBADORA SOMBRA DE UM ANJO VINGADOR


Absolvição. Owen O'Neil / Dramaturgia. Daniel Herz/Direção Concepcional. Andriu Freitas/Performance. Março/2025. Victor Hugo Cecatto/Fotos.


O cineasta, ator e dramaturgo irlandês Owen O’Neill ficou inicialmente conhecido por seus inúmeros stand-ups, sob uma pontuação irônica de humor negro que ele transpôs também, num crescendo mordaz, para seus experimentos teatrais e cinéfilos. Ideário que este acabou levando à culminância em sua mais polêmica criação cênica - a peça Absolvição.  

Conturbado pelo absoluto conservadorismo da igreja católica, especialmente nas comunidades paroquianas de seu país, capaz de silenciar diante da permissividade abusiva quanto a crianças inocentes por parte tanto de clérigos algozes, como da postura de pais insensatos que se colocam ao lado destes, chegando a acreditar nestes atos como um processo de remissão dos pecados.

No dimensionamento de uma temática que se constitui num dos maiores desafios que afeta tanto ao catolicismo quanto à maioria das igrejas evangélicas, estas últimas com a justificativa, em outros termos, de expulsão corporal dos demônios e, ambas, escondendo-se por trás de uma sagaz privacidade “sacramental e confessional” de alguns padres e pastores.  

Até que se ouçam os alarmes denunciantes seja da parte  de vítimas corajosas assumindo este papel em dúplice confronto como testemunhas ou juízes ou, quem sabe, na missão de um anjo vingador na intenção de fazer justiça própria à causa que lhes fez calar o grito, enquanto sofriam cruéis assédios, na pureza e na incapacidade de avaliar o certo e o errado em fases iniciais da infância.


Absolvição. Owen O'Neil / Dramaturgia. Daniel Herz/Direção Concepcional. Andriu Freitas/Performance. Março/2025. Victor Hugo Cecatto/Fotos.


O que o monólogo Absolvição, de Owen O’Neill, faz na intensidade universalista da primorosa tradução de Diego Tesa, e na correspondente performance irreprimível de um jovem ator (Andriu Freitas), sempre surpreendente e revelador,  ao convergir numa direção concepcional avassaladora (Daniel Herz) com subliminar sotaque “artaudiano”, imprimindo à peça um clima psicofísico de assombroso impacto.

Colocando o ator e  espectadores na ambiência mental de uma espada suspensa sobre suas cabeças, diante dos relatos sádicos, plenos de sangue e vísceras, por um protagonista sem identificação nominal. Mostrando os assassinatos sequenciais de clérigos que ele tortura e mata consciente da culpa de cada um deles como pedófilos.

O que é vislumbrado em minimalista concepção cenográfica e indumentária de diferencial plasticidade (em dúplice criação de Wanderley Gomes), ora sugerindo o gradeamento artesanal de um confessionário, ora a imaginária cela prisional de um serial killer, descalço e com apenas um short e uma camiseta.

Onde, sombras e luzes discricionárias (Aurélio De Simoni), ressaltam a original presença de cadeiras antigas, com assentos dilapidados pelo tempo, servindo como inusitados elementos cênicos para emoldurar as ações macabras do personagem protagonista.

Possuído, ali, de um ódio insano, sanguinário e homicida no ímpeto de precipitar nas purgações infernais, a falsa sacralidade daqueles violentadores da castidade pueril de suas pequeninas vítimas, sem distinção entre meninos ou meninas.

O admirável empenho performático do ascendente  talento de Andriu Freitas provocando, sob folego ininterrupto, o suspense de um thriller na tensa plateia, da energizada pulsão da sua corporeidade muscular a uma angustiante expressão facial, de seu olhar questionador à convicta entrega à textualidade dramatúrgica.

Acompanhada de soturnas sonoridades, no entremeio de breves acordes musicais (Pedro Araújo), a narrativa vai induzindo a inesperadas mutações,  entre os prós e contras, o certo e o errado, no repúdio ou na aceitação das enigmáticas dialetações de um personagem.

Assassino ou vítima, padre arrependido de suas vilanias ou talvez uma daquelas crianças tornada adulto, anjo exterminador ou um emissário divino? Na complementação dos sessenta e cinco  minutos, passo a passo, prendendo sensorialmente a atenção do público, para o que der e vier,  até chegar à inimaginável reviravolta do epílogo... em espetáculo obrigatório para quem gosta de sólido teatro verdade sintonizado com a contemporaneidade...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo  


Absolvição está em cartaz no Espaço Abu/Copacabana sexta e sábado, 20h; domingo, às 19h, até 30 de março.

FLORESTA AMAZÔNICA / CIA DE BALLET DALAL ACHCAR : A SIMBÓLICA VOLTA AOS PALCOS DE UM MARCO DA DANÇA EM FORMAS BRASILEIRAS

Floresta Amazônica / Cia de Ballet Dalal Achcar. Dalal Achcar/Concepção Coreográfica/Direcional. Março/2025.Valério Silveira / Fotos.


Esta obra da coreógrafa e diretora Dalal Achcar foi uma criação precursora (1975), no universo da dança clássica-romântica em moldes brasileiros, como primeiro balé completo de extensão padronizada em dois atos, a abordar o exotismo ancestral indigenista e a riqueza ecológica daquela que é considerada o pulmão da terra - sendo titulado como Floresta Amazônica,  por Heitor Villa-Lobos, em 1958. 

Esta vigorosa suíte sinfônica tinha servido de ponto de partida para uma produção fílmica americana (Green Mansions) não tão bem sucedida como sua trilha sonora que acabou integrando seu legado musical, sendo uma de suas mais inspiradas composições. E foi precedida apenas por um poema sinfônico (Amazônia) de mesma autoria, direcionado à dança, mas sem alcançar a mesma repercussão. 

Em sua estreia, 1975, no Municipal carioca, na acurada versão de Dalal Achcar, esta criação teve parceria artística do Royal Ballet de Londres, através de um de seus mais renomados coreógrafos (Sir Frederik Ashton) na idealização do Grand Pas-De-Deux para a participação protagonista de uma dupla estelar - Margot Fonteyn e David Wall.

Dez anos depois alcança seu dimensionamento definitivo como um balé completo em dois atos, mantendo na íntegra a sua partitura original, então executada, em caráter memorável pelo maestro Henrique Morelembaum, frente à Orquestra Sinfônica e Coro do Theatro Municipal, com a soprano solista Maria Lúcia Godoy.

Que simbolismo tão especial esta sua recente volta ao Municipal, no entremeio de tantas datas tão significativas, 50 de sua estreia, 40 da marcante performance TMRJ, ao mesmo tempo, que faz lembrar o centenário de uma das maiores sopranos do País ainda entre nós -  Maria Lúcia Godoy.


Floresta Amazônica / Cia de Ballet Dalal Achcar. Dalal Achcar/Concepção Coreográfica/Direcional. Março/2025.Valério Silveira / Fotos.


Retomando seus elementos estéticos originais, sendo mantidas, as projeções de um dos mais celebrados figurinistas na época, o argentino José Varona  e a de um dos nomes absolutos da cenografia Hélio Eichbauer, sob  artesanal concepção coreográfica / direcional de Dalal Achcar. Não deixando de citar, nesta atual remontagem, os ambientais efeitos de luzes vazadas e focais por Felício Mafra.

Tudo como il faut para uma obra que devia ser do repertório do Balé do TM/RJ pela força de sua brasilidade, não só coreográfica, mas musical e temática, tão oportuna quando a complexidade florestal, o manancial aquático, vegetação e animais, sem esquecer dos remanescentes dos povos originários, continuam sob enfrentamento de invasões depredatórias.

“A minha única e insistente influência extramusical é diretamente da natureza, especialmente a de meu país”. Palavras precisas do próprio Villa-Lobos e que podem ser aplicadas a esta bela iniciativa artística na transposição coreográfica da Floresta Amazônica. Onde tudo flui para engrandecimento desta obra, desde o acerto da escolha da bela gravação à conexão de seus elementos indumentários / cenográficos. Além de um enredo a partir de narrativas lendárias com assumido sotaque folclorista na configuração da tipicidade de seus personagens.

Destacando o empenho de um vasto e bem ensaiado elenco jovem de bailarinos da Cia de Ballet Dalal Achcar, orientado pelo maître de ballet e remontador Eric Frederic, ressaltando convictas atuações em variados papeis solo ou em afinadas formações grupais. Numa similaridade performática com movimentos ora de puro gestualismo clássico, presencial nas estilosas pontas das bailarinas, ora tendendo para uma energizada corporeidade masculina nas danças características indígenas.

Alcançando uma culminância sensorial palco/plateia quando as duas luminosas canções (poemas de Dora Vasconcelos) dão vazão a uma representação glamourosa de técnica e lirismo à talentosa e virtuosística dupla ascendente de bailarinos  Gabriela Sisto, como a Deusa da Floresta, e de Fernando Mendonça no papel de Homem Branco.

Completando, assim, a exuberante reapresentação da Cia de Ballet Dalal Achcar de uma obra, mais próxima de um esmerado classicismo romântico, em meio a sutis tonalidades contemporâneas, abrindo com brilho qualitativo a Temporada Carioca de Dança 2025.

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo

 

Floresta Amazônica / Cia de Ballet Dalal Achcar está em cartaz no TM/RJ, de 20 a 22 de março, às 20hs, até domingo, 23/02, às 16h.



MÚSICAS QUE FIZ EM SEU NOME : LAILA GARIN EM MAIS UM ACERTADO LANCE DE DADOS CÊNICOS / MUSICAIS


Músicas Que Fiz Em Seu Nome. Laila Garin / Tauã Delmiro / Dramaturgia. Gustavo Barchilon / Direção. Laila Garin / Performance. Março/2025. Van Brígido Fotografia.


“Na tentativa de não sofrer, terminamos optando por não sentir. Plastificamos nossa pele. Embalsamamos nossos afetos”. É a partir de uma das inspiradas reflexões poéticas e filosóficas de Viviane Mosé que Laila Garin, em dúplice imaginário com Tauã Delmiro, estruturou a narrativa dramatúrgica de seu diferencial monólogo cênico musical Músicas Que Fiz em Seu Nome.

Dando, assim, partida a um envolvente jogo teatral conduzido com a habitual artesania de um dos experts da nova geração do musical brasileiro – Gustavo Fiszman Barchilon. Onde a força qualitativa de tão acertadas parcerias acaba imprimindo à proposta perspectivas de uma maior trajetória, muito além desta sua instantânea temporada inicial.

Tendo ao seu lado uma equipe tecno/artística que confere a maior visibilidade artística a um despretensioso espetáculo que, apesar de ser dimensionado como um show cênico por seus idealizadores, pode ser classificado muito mais próximo de um teatro musical, mesmo sob sua formatação de monólogo.

Afinal, contar com a performance de uma protagonista solo como Laila Garin tão irradiante, seja por por seu presencial cênico seja por sua singularidade vocal, é fator incontestável para que esta atriz/cantora venha, como sempre sob um sotaque carismático, alcançando uma sólida trajetória Brasil afora, especialmente depois que se tornou emblemática sua personificação de Elis Regina nos palcos.


Músicas Que Fiz Em Seu Nome. Laila Garin / Tauã Delmiro / Dramaturgia. Gustavo Barchilon / Direção. Laila Garin / Performance. Março/2025. Van Brígido Fotografia.


A trama dramatúrgica (Laila Garin e Tauã Delmiro) conecta comédia e melodrama, partindo de curioso relato sobre procedimentos estéticos com “plastificações” faciais (das correções dematológicas a cuidados capilares), de sua personagem titular - uma noiva (Laila Garin) - às vésperas de seu casório, para se transformar, custe o que custar, numa nova Leide Milene. 

Isto tudo muito bem sugestionado por intermédio da vistosa indumentária (Fabio Namatame) própria a uma cerimônia nupcial, na tipicidade dos seus emblemas - da branqitude rendada do vestido longo extensiva ao véu, mais o indispensável buquê de rosas vermelhas.

Surgindo, de repente, como uma noiva radiante e portentosa em sua alta postura frontal, ampliada em seu figurino com sutil referencial de uma "babushka" russa gigante, preenchendo com bela plasticidade o espaço cenográfico (Natália Lana) sob funcionais variações luminares  (Maneco Quinderé) .

Onde a trilha sonora, com cerca de duas dezenas de canções, entremeando gêneros populares diversos, vai do repertório romântico assumidamente, por vezes, de tons brega / sentimentais, a alguns clássicos da MPB e até incluindo uma versão em português de Ne Me Quitte Pas. No primoroso tratamento musical de Tony Lucchesi (piano e regência) e seu naipe afinado de instrumentistas (Léo Bandeira na bateria, Thais Ferreira no cello, Jhony Maia, na guitarra e violão).

Para fazer esquecer as sofrências afetivas e as desilusões existenciais enfocadas, aqui, com uma humorística ironia entre o riso e as lamentações, há uma correspondência plena de instintiva espontaneidade, das marcações direcionais (Gustavo Barchilon) às expressões faciais e o gestualismo corporal de Laila Garin.

A atriz/cantora descortinando todos os contornos de sua personagem em irrepreensível e cativante representação vocal e textual, sob um coesivo nível qualitativo performático para este seu primeiro experimento autoral, sabendo como absorver plenamente a atenção do espectador.

Enquanto Gustavo Barchilon mostra, outra vez,  seu pleno domínio da gramática cênica do teatro musical, partindo agora de uma trama simples mas, que ele torna com sua reconhecida maturidade no gênero, de explícito alcance sensorial palco/plateia, com promissoras perspectivas na temporada 2025 ...


                                              Wagner Corrêa de Araújo

                                         

Músicas Que Fiz em Seu Nome está em cartaz no Teatro do Copacabana Palace, em curta temporada,  dias 11, 12, 19, 21, 25 e 27 de março; até os dias 01 e 02 de abril, sempre às 19hs.

SIDARTA : LIBERTÁRIA CONEXÃO DRAMATÚRGICA E EXISTENCIAL ENTRE A ESPIRITUALIDADE E A CORPOREIDADE

Sidarta. Angel Ferreira / Performance, Concepção Autoral e Direcional. Março/2025. Philipp Lavra / Fotos.


Publicado em 1922, sendo cronologicamente seu quinto romance, Sidarta foi uma das duas  obras fundamentais, ao lado de O Lobo da Estepe, para a concessão do Prêmio Nobel de Literatura a Hermann Hesse 24 anos depois de sua publicação. Embora parcela significativa da crítica literária considere Demian, 1919, como sua proposta ficcional mais avançada e inventiva.

E é a partir de uma livre adaptação, em formato de monólogo, que o ator Angel Ferreira faz sua primeira incursão num espetáculo solo, concebido, dirigido e interpretado por ele e, agora, alcançando depois de instantâneas apresentações, uma mais longa e significativa temporada.     

O fascínio exercido por esta narrativa, além de inspirar gerações por seu apelo ascético e filosófico, conclamando pela paz interior e pela busca do sentido da trajetória existencial, levou-a por vezes às telas sendo mais conhecida a versão de Conrad Rooks, 1972, e nos palcos coreográficos, a adaptação de Angelin Preljocaj, em 2010, para o Balé da Ópera de Paris.

Mas uma versão fílmica experimental brasileira de Walter Daguerre, em curta metragem (Eu, Sidarta) chamou bastante a atenção da crítica em 2012, por sua estética diferencial com o olhar armado na contemporaneidade. O que levou-o a integrar a equipe de criação artística deste Sidarta cênico, como o responsável pela interlocução dramatúrgica.


Sidarta. Walter Daguerre / Interlocução Dramatúrgica. Beth Martins / Renato Livera / Supervisão Artística. Março/2025. Philipp Lavra / Fotos.


Onde o ideário inicial de Igor Angelkorte, aqui adotando como um dos reflexos especulares de sua transmutação existencial, após um afastamento de sete anos de sua carreira atoral, o nome de Angel Ferreira. E, nitidamente, marcado por um instintivo intuito de aperfeiçoamento psicopersonalista, após seguidas releituras de Sidarta.

Longe dos palcos e da TV, passando por um processo de mutação interior sob profunda e alentada busca de si mesmo, isolando-se, nas matas e rios da Chapada dos Veadeiros, em Cavalcante (Goiás), num retiro de mortificação metafísica de corpo e de alma. Que, em 2024, conduziu, afinal, ao processo de criação autoral, direcional e performática da peça Sidarta.

Contando com o valioso apoio de um apurado staff, a saber, além de Walter Daguerre, trazendo a supervisão artística de Beth Martins e Renato Livera, composta ainda pelo apoio de Lavínia Bizzoto. Para um espetáculo de dimensionamento minimalista, a começar do único elemento plástico, um simbólico tapete com design orientalista.

Sem qualquer figurino, salvo uma breve aparição do ator numa indumentária leve e quase transparente no seu prólogo, desenvolvendo-se, a seguir, um absoluto e assumido desnudamento de sua corporeidade até o epílogo, pós cem minutos da representação.

Sua nudez tendo o significativo metafórico do despojamento de qualquer elemento que esconda ou disfarce a natural fisicalidade humana, pelo ato de entrega total à busca de nossa interioridade espiritual e “de como conviver com o seu eu”, remetendo à textualidade de Hesse. Mesmo o mais conservador e acomodado dos espectadores, em sua imersão total na força e no carisma de suas palavras, acaba aderindo à mensagem estética da proposta.

Ampliada pela energia cativante que o ator imprime na conexão das variadas modulações verbais, expressando as diferentes personagens do livro,  com a espontaneidade de seu gestualismo corporal, num quase teatro coreográfico. Pulsão estendida sob a plasticidade de sotaque meditativo dos efeitos luminares (João Gioia e Renato Livera), seu intérprete encarnando, sempre com raro empenho artesanal, os conceituais filosóficos do universo dos Brâmanes.

Como Sidarta, um ator transmutado (Angel Ferreira) assumindo, com corpo, sangue e alma, que aqueles ensinamentos seriam, com certeza e fé,  seu próprio credo de arte e de vida. E, assim, podendo enfim recorrer como mote e signo, daí em diante, até o mais íntimo de si mesmo, à sábia reflexão de Hermann Hesse no entorno do personagem :

Refletiu profundamente, até esta sensação avassalar por completo e chegar a um ponto em que reconheceu causas - pois reconhecer causas, parecia-lhe, era pensar, e só através do pensamento as sensações se tornam saber e, em vez de se perderem, tornam-se reais e começam a amadurecer”...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo  


Sidarta está em cartaz no Teatro Poeirinha /Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h, de 07 de março a 27 de abril.

MEU REMÉDIO : QUANDO A IDENTIDADE NOMINAL CURA AO DECIFRAR OS MISTÉRIOS DA VIDA E DA ARTE

Meu Remédio. Mouhamed Harfouch / Dramaturgia e Performance. João Fonseca/Direção. Março/2025. Claudia Rodrigues / Fotos.


Celebrando uma bem sucedida trajetória artística de 30 anos, o ator Mouhamed Harfouch desvenda, sob inteligente humor, os segredos no entorno de sua ancestralidade árabe-portuguesa e do exotismo de um nome próprio na configuração de uma vida profissional dedicada aos palcos.

Tudo isto a partir de um original ideário que o levou a escrever e titular esta peça como Meu Remédio, em formato monologal e contando, em sua montagem, com um artesanal dimensionamento cênico propiciado pela direção sempre acurada de João Fonseca.

Inspirando-se no apelido conferido pelo porteiro de seu prédio que confundia a pronúncia verbal de Mouhamed com "meu remédio" e do enfrentamento habitual dos assédios irônicos dos colegas de classe, rindo quando se dirigiam a ele ou fazendo trocadilhos jocosos com seu nome.

O que acabou levando-o a assumir, sem nenhuma alteração e sem demonstrar qualquer constrangimento, a sua identidade original na carreira atoral. Tendo, sequencialmente, se firmado como um dos nomes mais talentosos de sua geração, em diversos segmentos, além do teatro, na televisão e no cinema.


Meu Remédio. Mouhamed Harfouch /Dramaturgia/Peformance. Nello Marrese/Cenografia. Março/2025. Cláudia Rodrigues/Fotos.


Sendo que desta vez, neste seu primeiro monólogo, mostra múltiplos ofícios atuando numa performance em que sua textualidade despretensiosa, não só provoca o riso pelo acerto de suas colocações bem humoradas, ao mesmo tempo em que se exibe como cantor, instrumentista solo e, ainda, na versatilidade de seu gestualismo corporal.

Mas o espetáculo alia ao seu propósito lúdico, um pensar retrospectivo sobre o passado familiar no legado da vida de tantos imigrantes dos países árabes que, aqui, se estabeleceram sob diferenciais características na sua miscigenação como cidadãos brasileiros adotivos.

Onde, quebrando a quarta parede, o ator estabelece liames com a plateia, comunicando-se diretamente com alguns espectadores no questionamento sobre quem escolheu o nome de nascimento de cada um e o significado que emprestam a isto, tanto na vida pessoal como no convívio social.

Em espaço cênico (Nello Marrese) despojado preenchido por poucos elementos cênicos, desde um baú carregado por registros fotográficos de seus antepassados, como de seu singular percurso existencial, lembrando passagens divertidas com seu pai, de típico sotaque, e de uma mãe com quem se aconselha sobre se pode mudar o seu complicado nome.

Enquanto se apresenta em indumentária (Ney Madeira e Dani Vidal) mais cotidiana num sutil referencial indo de uniforme escolar a roupas de trabalho. Para chegar a uma surpreendente mutação da plasticidade ao evocar as túnicas árabes, numa vigorosa e afetiva conexão Síria/Brasil, em meio a envolventes efeitos luminares (Dani Sanchez).

Embora Mouhamed Harfouch favoreça um lado de maior comicidade em seu empenho pelo encontro cúmplice entre ator/espectador, Meu Remédio nunca deixa de revelar um convicto investimento numa perceptível carga dramática capaz de conduzir à reflexão.

Afinal, em nossa passagem pelo planeta, antes de mais nada, ficamos conhecidos pelo nome que carregamos, pontuado desde  os momentos de absoluta alegria ao contraponto de angustiosas tensões  que nos cercam até o instante terminal.

E é na força de sua espontaneidade interpretativa que Mouhamed Harfouch faz irradiar seus identitários recursos histriônicos e dramáticos por intermédio de uma peculiar gramática cênica, imprimida no seguro comando cênico/direcional de João Fonseca. Sabendo mostrar um crescendo de maturidade atoral em exercício dramatúrgico sinalizado por seu lado confessional e introspectivo.

Expandindo-se num jogo teatral vivo com reflexos curativos especulares ecoando, afinal, a esclarecedora palavra de seu próprio autor e intérprete: “A peça é uma comédia mas carrega uma reflexão sobre aceitação e pertencimento, sobre entender que, muitas vezes, o maior remédio é aceitar quem somos”...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo


Meu Remédio volta ao cartaz, agora no Teatro Vannucci, sábados e domingos, sábados às 20h; domingos, às 19h, de 15 de março a 27 de abril.


CANÇÕES QUE EU GUARDEI PRA VOCÊ : DESPRETENSIOSO TEATRO MUSICAL SOB UM SUTIL SOTAQUE DE INVENÇÃO




Canções Que Eu Guardei Pra Você. Zé Henrique de Paula / Direção Concepcional. Janeiro/2025. Alê Catan / Fotos.

 

Com um subliminar referencial temático e titular à romântica canção da dupla Erasmo/Roberto Carlos (As Canções Que Você Fez Pra Mim) o pequeno musical Canções Que Eu Guardei Pra Você promove, mais uma vez, um dos felizes encontros das direções teatral e musical, respectivamente de Zé Henrique de Paula e Fernanda Maia.

E, agora, por intermédio do ideário, junto a Marcos Griesi, de Felipe Heráclito Lima a partir de uma experiência pessoal no desafio de súbito término de um relacionamento amoroso. Aqui personificado nas surpreendentes mutações afetivas entre três casais,  representados por um cast de atores/cantores, integrado por Bruna Guerin, Felipe Hintze, George Sauma, Guilherme Magon, Karen Junqueira e Marília Lopes.

E que no clima divertido de um dos jantares diferenciais que Miguel (George Sauma), ao lado de sua parceira Malu (Bruna Guerin), gosta de oferecer para ampliar a simpatia entre estes e o outro par Renata (Karen Junqueira) e Tulio (Felipe Hintze). Mas, desta vez, incluindo também Bárbara (Marília Lopes) e Pietro (Guilherme Magon), este último um irredutível solteirão depois de muitas aventuras no passado adolescente, justificando-se, apesar de tudo, como namorado da amiga que veio com ele. 


Canções Que Eu Guardei Pra Você. Fernanda Maia/ Direção Musical. Janeiro/2025. Alê Catan/Fotos.


Fica assim estabelecida certa coerência com os outros dois casais, numa imaginária situação similar da possível estabilidade emocional das duas duplas. Mas entre drinques, conversas e comilanças, o clima psico/ambiental vai mudando, sob novos questionamentos personagens/atores, palco/plateia, numa quebra da narrativa sequencial pelo desmoronar da fidelidade conjugal como princípio.

Onde a temática, sem se ater rigorosamente ao dimensionamento sobre diversas ou identitárias sexualidades, se enquadra bem à proposta dramatúrgica de livres atrações e mudanças afetivas, tanto de um lado como de outro, correspondidas no espontâneo gestualismo e na unicidade de performances vocais de um convicto elenco.

Intermediado pela envolvência de canções que ora apresentam em solos, duos e formações grupais, dando vazão aos sempre excepcionais arranjos de Fernanda Maia, a partir da priorização do conhecido repertório de cantoras assumidamente LGBTAQIAPN+ (Adriana Calcanhoto, Ana Carolina, Cassia Eller, Maria Gadu, Marina Lima, Sandra de Sá)

Num expressionismo interpretativo de caráter intimista,  acompanhado por um mais que acertado quinteto de afinados instrumentistas (Bia D’Ávila, Giullia Assman, Mayara Alencar, Rodolfo Schwenger e Samuel Passos) dirigido potencialmente por Fernanda Maia.

E onde a minimalista concepção cenográfica (César Costa e Zé Henrique) é preenchida por tonalidades pictóricas meio naïfs no assumido exagero aquarelista tanto do painel frontal, entre o naturalismo e a fantasia de um espaço residencial, completando-se nos figurinos dia-a-dia (Mariana Sued),  sob  luzes mais vazadas que focais  (Fran Barros / Túlio Pezzoni)

Ainda que o roteiro dramatúrgico (Bernardo Marinho e Valentina Castello Branco) seja supervisionado pelo profissionalismo de Rafael Gomes, mesmo assim, em sua integridade textual, não consegue escapar de uma certa previsibilidade e de lugares comuns na abordagem das relações amorosas, num contraste com o teor poético de versos antológicos das canções vocalizadas pelos atores.

O assumido distanciar-se da habitual configuração do grande musical fazendo, aqui, o conceitual estético se apoiar numa narrativa cotidiana confessional no entorno do vai e vem das relações afetivas na convivência doméstica e social, inspira bem a propósito a pulsão deste jogo teatral.

Que ao ser imprimido pelo artesanal comando concepcional de Zé Henrique de Paula acaba, afinal,  por tornar a despretensão da comédia romântica-musical Canções Que Eu Guardei Pra Você” - uma lúdica surpresa teatral, valendo ser conferida como um promissor despontar da  temporada 2025.  


                                                    Wagner Corrêa de Araújo


                             
Canções Que Eu Guardei Pra Você está em cartaz no Teatro Clara Nunes/Shopping da Gávea, de sexta a segunda-feira, às 20hs, até 25 de fevereiro.


ROCK IN RI0 40 - O MUSICAL : A TRAJETÓRIA E O PROCESSO CRIADOR SOB O DESAFIO DE UM SONHO

Rock in Rio 40- O Musical. Charles Moeller/Dramaturgia e Direção. Claudio Botelho/Supervisão Musical. Rodrigo Pandolfo no papel de Roberto Medina. Janeiro/2025. Caio Galucci /Fotos.

 

Titulado muito a propósito, Rock in Rio 40 - O Musical quer fazer um tributo a um dos mais ousados projetos brasileiros no entorno do show business, em outra das realizações da celebrada dupla de especialistas no teatro musical - Charles Moeller / Cláudio Botelho.

A partir do ideário sobre o que está por trás e o público desconhece, na sua envolvência com o fascínio do produto final, num original direcionamento assumido neste espetáculo. Conectando, estéticamente numa espécie de documentário cênico-musical, o show em grandes proporções sob o ar livre transmutado em teatro, dimensionado nos limites de seu tradicional espaço cênico - o palco.

Não para falar cronologicamente de cada artista ou banda e como foi sua atuação, de 1985 aos nossos dias, mas priorizando a história daquela equipe de uma agência de publicidade em seus sequenciais atributos no empenho para tornar realidade o sonho quixotesco de um empresário - Roberto Medina.

Daí, tornando suas as palavras visionárias do personagem de Cervantes, com seu presencial conceitualizado na triste figura do cavaleiro andante, imerso no delírio de duelos imaginários com moinhos de vento, na  convincente e afetiva caracterização de André Dias (extensiva à outra sobre o pioneiro do grande musical brasileiro - Oscar Ornstein).


Rock in Rio - O Musical. Moeller / Botelho/ Ideário Concepcional. Com Beto Sargentelli, Malú Rodrigues, Rodrigo Pandolfo e Gottscha. Janeiro/2025. Caio Galucci/Fotos.


E para concretizar a narrativa dramatúrgica há as personificações típicas dos funcionários da empresa de Medina, a começar do próprio, em correspondente figuração atoral por Rodrigo Pandolfo que, mesmo longe de um perfil físico similar, já de imediato, mostra sua convicta entrega ao papel, mais inclusiva como ator do que cantor.

Ao seu lado, dividem o protagonismo, desde a chefe administrativa da agência (no caso a Artplan) Dora, figurada pela luminosa atriz/cantora Gottscha, ao funcionário João (Beto Sargentelli) e a estagiária recém contratada Beth (Malu Rodrigues), estes tornando-se, ao longo do enredo, o apaixonado par romântico do musical.

Onde um energizado Beto Sargentelli se destaca em absoluta caracterização de temas pop-roqueiros, enquanto uma extasiante Malu Rodrigues dá outra de suas potenciais performances em sotaque mais lírico e extensão vocal que a equaliza a uma prima donna do teatro musical brasileiro.

Precedida, no prólogo e em outras oportunas interveniências, do apelo como qualificada atriz, por Bel Kutner fazendo a mesma Beth em idade mais madura. Na busca de suas lembranças como aquela sonhadora estagiária, por intermédio de um livro que teria escrito, servindo de mote ficcional para contar a história do Rock in Rio.

A trilha sonora (Zé Ricardo), sob a direção musical de Marcelo Castro, é fragmentária num compasso de um pout pourri com temas não apenas de alguns grupos, internacionais ou brasileiros, que passaram pelo Festival. Estendendo esta faixa a canções que ali nunca integraram sua programação, como uma especial menção à música francesa em exímia interpretação da franco-brasileira Yara Charry.

O apuro cenográfico (Ana Biavaschi) na grandiosidade de um pórtico frontal remetendo à Cidade do Rock, é preenchido por projeções em 3D numa diversidade de ambiências, sendo ampliado pelas luzes ora vazadas ora psicodélicas (Vinicius Zampieri), ressaltando figurinos mais cotidianos (Fábio Namatame).  

Enquanto o reiterativo movimento de ida e volta do elenco de cantores/bailarinos em clima burocrático e institucional, ainda que seja intermediado por um funcional gestualismo coreográfico (Mariana Barros) cria uma certa expectativa, quanto à sequencialidade narrativa com novos enfoques, para maior parte dos espectadores, mas que acaba não acontecendo no segundo ato. 

Redimida quando André Dias reaparece como o  Quixote do Homem de La Mancha, com os quiméricos versos da canção Impossible Dream (na versão de Chico Buarque / Augusto Boal), concentrando ali um emblemático significado para o musical: 

Vou saber que valeu delirar / E morrer de paixão / E assim, seja lá como for / Vai ter fim a infinita aflição / E o mundo vai ver uma flor / Brotar do impossível chão”...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 

Rock in Rio 40 - O Musical está em cartaz na Cidade das Artes/Barra RJ, quintas e sextas às 20hs; sábados e domingos em duas sessões, às 15 e às 19hs. Até o dia 23 de fevereiro.

AQUELES QUE DEIXAM OMELAS : FABULAR E REFLEXIVA TRANSCRIÇÃO CÊNICA DE UM TEXTO FICCIONAL



Os Que Deixam Omelas. João Maia P/Direção Concepcional. Com João Pedro Zappa. Janeiro/2025. Beatriz Salgado / Fotos.


Uma das conceituadas escritoras americanas de ficção científica e realismo fantástico - Ursula K. Le Guin (1929-2018), apesar da vasta bibliografia que abrange ainda a poesia, a crítica e a literatura infantil, tem sua obra pouco divulgada entre nós, sendo ainda a autora do enigmático conto Aqueles Que Deixam Omelas, publicado originalmente em 1973.

Praticamente inédito, embora haja referência que teria integrado, em  limitada edição, uma antologia brasileira - Rumo à Fantasia - de contos fantásticos, em  2009. Mas que, agora, merece uma tradução direcionada, exclusivamente, para uma reveladora montagem reunindo uma equipe da nova geração do teatro carioca.

Onde João Maia P, advindo de maior experiência na área cinematográfica e algumas variadas incursões no universo cênico, faz sua estreia na direção de uma peça, em ofício dúplice ao acumular a responsabilidade pela versão em português do conto, mantendo absoluta fidelidade à íntegra do texto literário de Ursula K. Le Guin.

Sob subliminar propósito de uma quase leitura dramatúrgica, com todos os elementos estéticos de uma representação performática no formato de um monólogo pelo ator João Pedro Zappa (também de larga trajetória entre o teatro e o cinema), capaz de provocar imediata relação sensorial/afetiva com o público através de incisivos questionamentos evocados a partir da sequencialidade narrativa.  

Em passagens intermediadas que estabelecem um elo ator/espectador no entremeio de uma textualidade envolvente, situada entre o seu teor poético e a instigante decifração do significado fabular, moral e filosófico, de uma cidade idílica sinalizada pelas utópicas prosperidade e felicidade de seus habitantes.


Os Que Deixam Omelas. De Ursula K. Le Guin. João Maia P/Direção Concepcional. Com João Pedro Zappa. Janeiro/2025. Beatriz Salgado / Fotos.


À custa de um atroz segredo no entorno da desgraça de apenas um deles, isolado em funesto calabouço, uma  maldição que não fica imune ao conhecimento da comunidade, capaz até de lamentar por ele mas, ao mesmo tempo, temendo que sua salvação possa acabar de vez com o segredo paradisíaco de Omelas.

Por este motivo de cruel insensatez, alguns preferem deixar Omelas para sempre ainda que não saibam para onde ir, enquanto estão conscientizados de que esta partida os tornaria passíveis à realidade crua e nua do difícil suporte da condição humana, lá fora e além.

Na simplicidade funcional de um espaço cenográfico minimalista (Maria Estephania), surge o personagem/narrador (João Pedro Zappa) com sua mala de viajante e um figurino artesanal, com apliques e bordados, sob sensorial ambiência com efeitos de luzes coloridas e sombras (Luiz Paulo Neném).

Com um clamor de sinos marcados pela elevação das andorinhas, deu-se o início ao Festival de Verão da cidade de Omelas” é a frase que abre o conto de Ursula Le Guin e dá partida à inspirada releitura dramatúrgica, pela  luminosa direção concepcional de João Maia imprimida à  espontaneidade performática de João Pedro Zappa.

Onde este "bardo viajante" vai revelando em poéticas construções verbais, ampliadas nas variações de suas tonalidades vocais e na afetividade de seu gestualismo corporal, que ali prevalece a felicidade como um bem comum, sem necessidade das garantias de um exército, de um clero ou de quaisquer tipos de dirigentes.  

E, ainda, dentro deste clima de festiva e permanente alegria, como única interveniência musical, o ator interpreta na gaita os acordes referenciais à estação com Summertime, de Gershwin, seguidos pelas sonoridades em off do mesmo tema pela  Preservation Hall Jazz Band.

Vez por outra, ele questiona os espectadores se eles acreditam naquilo que estão vendo. Precedendo outras indagações, já de denúncia moral daquela “felicidade irresponsável e insípida” em detrimento do sofrimento alheio, no egoísmo dos que, só pensando em si próprios, preferem ignorar aquela realidade.

E é a pergunta - ainda creem? - que vai levando, num processo de  obra aberta à livre conclusão de cada integrante da plateia, enquanto a representação passa pelo corajoso desafio de enfrentar a escuridão do desconhecido, dando seu recado de reflexiva postura moral e filosófica, para todos Aqueles Que Deixam Omelas, sob um despretensioso mas imperdível encontro fabular entre a literatura e o teatro...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

Aqueles Que Deixam Omelas está em cartaz no Teatro Poeirinha, Botafogo, terças e quartas feiras, às 20h, até o dia 26 de fevereiro.

MEU CARO AMIGO : A PRAZEROSA TRAJETÓRIA DRAMATÚRGICA / MUSICAL DE UMA PERSONAGEM QUE SÓ QUER SABER DE CHICO BUARQUE


Meu Caro Amigo. Joana Lebreiro/Direção Concepcional. Felipe Babenco/Dramaturgia. Com Kelzy Ecard. Fevereiro/2025. Renato Mangolin/Fotos.


Está de volta aquele que foi o primeiro grande sucesso, no formato de uma representação solo, da atriz Kelzy Ecard em turnês brasileiras, que se estenderam por cinco anos, a partir da estreia carioca do monólogo musical Meu Caro Amigo, em 2009, resultado do ideário dúplice da atriz e do dramaturgo Felipe Barenco, contando com apurada  direção de Joana Lebreiro.

Onde é abordado, com leveza lúdica e bom humor, o dia a dia familiar e social de Norma Aparecida (Kelzy Ecard), sinalizado sempre no entorno de uma contínua e irrestrita paixão pelas canções de Chico Buarque, desde a infância e adolescência até se tornar professora de História, enquanto, ao mesmo tempo, referencia os acontecimentos políticos e culturais de um país então imerso em sombras.

O que nesta releitura, quando a personagem se torna então sexagenária, em 2016, possibilita fazer uma conexão crítica a partir dos provocadores e icônicos recados ideológico-musicais do compositor, tornando-se oportunos aos dias de hoje. 

Na constatação de que o conservadorismo do pai de Norma, um militar favorável a 1964 e, portanto, nada disposto a aceitar a admiração da filha por um irredutível entusiasta da democracia (Chico Buarque), prova que muita pulsão recessiva ainda vem resistindo por aí, na assumida tendência golpista da nossa última (des)governança.


Meu Caro Amigo. Joana Lebreiro/Direção Concepcional. Felipe Babenco/Dramaturgia. Com Kelzy Ecard. Fevereiro/2025. Renato Mangolin/Fotos.

Em espetáculo com qualitativo andamento e diferencial sotaque de seu roteiro musical (Marcelo Alonso Neves) a partir de antológicas canções do compositor, potencializadas por artesanal acompanhamento solo, ao vivo, do pianista João Bittencourt. Onde a vocalização de Kelzy Ecard é alternada também por citações originais das gravações de Chico Buarque, desde o seu primeiro LP, de 1966, com a disparada popular de A Banda.

A atriz sabendo como equilibrar sua afinada voz com uma performance gestual/dramática bem de acordo com a identificação personalista sugerida por temas dos mais densos que remetem aos tempos difíceis da ditadura, no caso de Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil), a registros mais lúdicos  e intimistas de situações amorosas, tais como Apesar de Você e Quem Te Viu Quem Te Vê.

O sugestivo décor do espaço cenográfico e indumentário (Dani Vidal e Ney Madeira) destaca um painel  com capas dos discos de Chico Buarque, sendo completado por uma mesa e cadeira  paralelas a um sofá, tendo à sua frente um microfone fixo e móvel, ressaltados por precisos  efeitos luminares  (Paulo Cesar Medeiros) quase sempre mais vazados. Tudo integrando-se, enfim,  a este retrato de pictórica afetividade, através da envolvência do comando concepcional de  Joana Lebreiro.

Kelzy Ecard, assumindo o lugar de tantas mulheres como Norma Aparecida,  fascinadas de corpo, sangue e alma, pelo cancioneiro do ídolo poético/musical, expande com irreprimível convicção a sua atuação cênica.  Em seus arroubos cantantes, intermediados por falas capazes de contextualizar a narrativa com o universo existencial da personagem naquele controverso momento histórico de um país.

Não deixando, aqui, de lembrar a justa causa que levou Chico Buarque, em parceria com Francis Hime, a  uma de suas mais emblemáticas composições. Na sua dedicatória, com especial afeto, ao dramaturgo Augusto Boal então nostálgico de um Brasil tão distante, no seu forçado exilio além-mar em terras lusitanas.   

O que, bem a propósito, titula este necessário espetáculo como Meu Caro Amigo, a partir da mensagem político/reflexiva desta canção quase uma carta, ecoando sua simbologia, do passado ao presente, ontem, agora e para sempre:

 “Aqui na terra tão jogando futebol

Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll

Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”...


                                           Wagner Corrêa de Araújo

 

Meu Caro Amigo está em cartaz no Teatro Sesi/Firjan, Centro/RJ, todas as  segundas e terças, às 19hs, até 25 de fevereiro.

OS MELHORES E OS PIORES NOS PALCOS CARIOCAS DE 2024 PELO BLOG PAULISTA ÓPERA E BALLET

 

Rusalka/A. Dvorak. André Heller-Lopes/Concepção Direcional. Ludmilla Bauerfeldt/Protagonista Tïtular. Novembro/2024. Daniel Ebendinger/Foto.


1 - O melhor espetáculo na temporada lírica do Theatro Municipal foi, sem dúvida alguma, Rusalka, de A. Dvorak, não só por ser sua primeira e inédita apresentação no mais tradicional palco de ópera do Rio de Janeiro. Mas, especialmente, pela originalidade na concepção cênico/direcional dada por André Heller-Lopes, fazendo uso da tradição sob um sotaque de contemporaneidade. 

2 - A soprano Ludmilla Bauerfeldt tornou-se uma unanimidade, no sentido contrário ao apregoado por Nelson Rodrigues, tanto no aplauso do público como nos elogios críticos, em performances titulares que a qualificaram como uma autêntica e absoluta prima-donna, tanto em Suor Angelica, de Giacomo Puccini como em Rusalka, na sua convicta entrega dramática e vocal a estes personagens.

3 - No naipe masculino não há como deixar de ressaltar as atuações seguras de dois destaques da nova geração, como as belas tessituras do baritono Vinicius Antique, este no Sargento Belcore do Elixir de Amor, de Gaetano Donizetti, e do tenor Giovanni Tristacci, superlativo no exigente papel do Príncipe em Rusalka.

4 - Destaques cenográficos na ópera ficam com a simplicidade funcional dos cenários e figurinos de Desirée Bastos para o Elixir de Amor e a potencialidade imersiva da concepção de Renato Theobaldo, um dos craques brasileiros neste oficio, para Rusalka.


O Elixir do Amor/G. Donizetti. Desirée Bastos/Concepção Cenográfica. Abril/2024. Daniel Ebendinger/Foto.

5 - A Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal teve uma intensa atuação na temporada 2024, mas ainda precisa atingir um maior perfeccionismo no tratamento de alguns de seus naipes como os sopros que, volta e meia, apresentam instabilidade principalmente nos balés e óperas. Sendo que, nestas ultimas, o alcance do  volume sonoro da OSTM muitas vezes abafa a expressão e a extensão de determinados timbres vocais.

6 - No que concerne à dança clássica, o Balé do Theatro Municipal / RJ apresentou sua melhor releitura através de La Fille Mal Gardée, na versão do coreógrafo uruguaio convidado Ricardo Alfonso, destacando-se pelo sotaque de envolvente teatralidade imprimida, desde a performance romantizada dos personagens a uma bem humorada pantomima.

7 - Enquanto o BTM, no seu empenho ascendente pela retomada de outros momentos de seu repertório clássico na temporada - tais como O Lago dos Cisnes e O Quebra Nozes, mesmo assim, não conseguiu alcançar uma mais completa equivalência qualitativa nestes balés, exigível por sua especial posição de única cia clássica oficial do país.


La Fille Mal Gardée/BTM/RJ. Ricardo Alfonso / Concepção Coregráfica. Agosto/2024. Daniel Ebendinger/Foto.


8 - Quanto aos piores espetáculos coreográficos do ano são vários, impossível citar cada um deles, frutos de uma imatura e apressada elaboração de propostas em busca de pequenos patrocínios. E que, na maioria das vezes, sob raríssimas exceções, falham na sua seleção e se apoiam em equivocados critérios, resultando em espetáculos sempre muito amadores.

9 - Na dança contemporânea as concepções avançadas de dois dos mais importantes nomes da coreografia brasileira atual (Alex Neoral e Renato Vieira) tiveram, outra vez, um caráter de autenticidade em seu  dimensionamento personalista. Respectivamente, no Entre a Pele e a Alma, pela Focus Cia de Dança, inspirada no tríptico de H. Bosch e no Gaveston & Eduardo, pela Renato Vieira Cia de Dança, esta última em bem vindo retorno com obra inédita. Ambos, ultrapassando as expectativas estéticas e coreográficas com ousados experimentos temático-sensoriais.


                                       Wagner Corrêa de Araújo

Entre a Pele e a Alma/ Focus Cia de Dança. Alex Neoral/Concepção Coreográica/Direcional. Junho/2024. Léo Aversa/Foto.

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