O MERCADOR DE VENEZA : CLÁSSICO SHAKESPEARIANO EM VERSÃO CÊNICA SOB INSTIGANTE CONTEMPORANEIDADE

 

O Mercador de Veneza /William Shakespeare. Daniela Stirbulov/Direção Concepcional. Dan Stulbach/ Protagonista. Maio/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.


Muitos dos especialistas na obra teatral e no legado  dramatúrgico de William Shakespeare ressaltam o quanto sua comédia dramática O Mercador de Veneza tem se tornado problemática aos tempos atuais, especialmente desde o Holocausto nos anos da Segunda Grande Guerra, pela forma estereotipada como sempre foram conceituados os judeus pela civilização cristã.

Havendo um recente avanço, neste preconceituoso tratamento, à causa dos permanentes conflitos enfrentados pelos palestinos, com a prepotência de um sionismo radical ao não aceitar em qualquer hipótese que eles ocupem, como nação soberana e independente, um território vizinho de Israel.  

Com perceptível predominância na modernidade destas encenações, de personagens da peça conservando suas denominações originais mas com menor ambiguidade que na trama original. Sendo dimensionadas num mesmo plano as contradições do conservadorismo e a defensiva postura entre um lado e o outro.

Acentuando ainda temas bastante pertinentes em nossos dias, da intolerância religiosa com o antissemitismo, a discriminação racial, a misoginia e a homofobia, a ascendente violência e um prevalente interesse do lucro num capitalismo dominante, sempre  em detrimento dos menos favorecidos na escala social.


O Mercador de Veneza /William Shakespeare. Daniela Stirbulov/Direção Concepcional. Dan Stulbach/ Protagonista. Maio/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.


Referenciando concepções mais recentes onde o papel do agiota Shylock ora é interpretado por uma mulher, ora por um negro, numa ambientação linkada com  toda esta sombria problemática. O que não fica longe da mais ousada concepção brasileira realizada  até hoje,  a partir de uma artesanal adaptação de Bruno Cavalcanti e de uma instigante direção de Daniela Stirbulov.

Onde propositadamente se confudem e se cruzam, subliminarmente, a ambiência temática no final da era quinhentista e uma realidade anos 90 quase atemporal, direcionada a tempos futuros. Em funcional minimalismo cenográfico (Carmen Guerra), extensivo à  indumentária e ao visagismo (Allan Ferc), conectando sutis traços característicos de personagens shakespearianos com um assumido sotaque de contemporaneidade.

Não deixando de ressaltar a envolvência dúplice de efeitos digitais (André Voulgaris) e luminares (parceria Wagner Pinto/Gabriel Greghi) em projeções num painel de Led. Completadas por sensoriais sonoridades percussivas (Caroline Calê) repercutindo o gestualismo psicofísico dos personagens (Marisol Marcondes).

Em síntese a narrativa dramatúrgica, desenvolvida no entremeio de doze atores em diferentes performances, confere um peso maior de humanismo ao agiota judeu Shylock (Dan Stulbach), no seu confronto com o mercador Antônio (Cesar Baccan), quando este solicita um empréstimo para auxiliar o amigo Bassânio (Marcelo Ullmann) em sua pretensão amorosa relativa a Pórcia (Gabriela Westphal).

Tudo convergindo para um polêmico julgamento quando o mercador, na inadimplência da dívida, tem que se submeter à insólita e cruel fiança contratual de entregar a Shylock uma libra de sua carne, com risco da própria vida.

Neste coeso e qualitativo elenco ficando dificil ressaltar a atuação personalizada de cada um deles em papéis de importância sequencial e alterativa, mas não há como deixar de destacar a estelar atuação de Dan Stulbach em seu convicto tom confessional, pleno de verdade interior e de consistente intensidade performática no domínio do palco.

Entre muitas subtramas vale indicar a espontaneidade dos atores Cesar Baccan e Marcelo Ullman no equilibrio expressivo entre suas ambições mercantilistas e egocêntricas e a ligeira conotação de um relacionamento gay, inédito na textualidade da peça. Além do cast  feminino, com seguras atuações de Gabriela Westphal, Marisol Marcondes e Rebeca Oliveira.

Mas é a irrepreensível direção concepcional de Daniela Stirbulov que faz deste Mercador de Veneza um espetáculo revelador, por sua potencial transposição cênica de uma clássica comédia dramática, entre a tradição e a modernidade. Que pode até não agradar aos irredutíveis puristas por sua proposta inovadora mas  que, através de seu alcance carismático palco/plateia, simboliza, sem dúvida alguma,  um investimento estético capaz de dignificar o atual panorama do teatro em moldes brasileiros...  

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo


O Mercador de Veneza está em cartaz no Teatro Nélson Rodrigues/Caixa Cultural/RJ, quinta às 19h; sexta às 20h; sábado e domingo, às 18h, de 22 de maio a 15 de junho/2025.

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