O SOM QUE VEM DE DENTRO : SOB UMA INTIMISTA CONEXÃO ENTRE A FICÇÃO LITERÁRIA E A VERDADE TEATRAL

 

O Som Que Vem de Dentro. Adam Rapp/Dramaturgia. João Fonseca/Direção Concepcional. Maio/2025. Cláudia Ribeiro/Fotos.

 

O escritor Adam Rapp com nove romances publicados, roteiros para a televisão e adaptações cinematográficas, chegou à Broadway em 2020 com O Som Que Vem de Dentro, peça que teve seis indicações para os prêmios Tony e que, agora, chega aos palcos brasileiros.

Com artesanal direção de João Fonseca, a partir de acurada tradução de Clara Carvalho, tendo a participação de dois atores de gerações diversas. Além da presença da maturidade atoral de Gláucia Rodrigues, quem contracena com ela é um surpreendente ator jovem André Celant.

Em completa sintonia com uma dramaturgia reflexiva ao mesmo tempo plena do compasso psicofísico de um thriller, sob o metafórico sotaque de um enigmático silêncio, como se os espectadores estivessem ali absortos apenas para  escutar a leitura de uma narrativa ficcional, pontuada pela melancolia e pela solidão de seus dois personagens autorais.

Enquanto, Bella Baird (Glaúcia Rodrigues), professora universitária de texturas literárias e também escritora com livros publicados, após um prólogo no formato de um monólogo, em que fala sobre o Dostoievsky de ‘’Crime e Castigo”, com seu personagem protagonista desdobrado em assassino, junto à revelação do diagnóstico dela ser portadora de um câncer terminal sinalizando, aqui, através destes fatos, uma possível decifração para o sequencial mistério desta  trama dramática.  


O Som Que Vem de Dentro. Adam Rapp/Dramaturgia. João Fonseca/Direção Concepcional. Gláucia Rodrigues e André Celant/Protagonistas. 


Entre outras citações literárias estrangeiras às quais a presente versão soube, por bem,  incluir passagens simbólicas de Machado de Assis a Clarice Lispector. Até ser interrompida por seu estranho e ensimesmado aluno Christopher Dunn (André Celant) que, fora de qualquer marcação prévia,  adentra pela sua sala.

Fazendo com que a  perturbadora invasão da privacidade de Bella vá, num crescendo, se transmutando em contato identitário de recíproca paixão intelectual. Longe de qualquer prevalência sexual, entre o processo criador de uma romancista cujo último livro, de anos atrás, Christopher acabou de ler, despertando ainda mais o sonho de se tornar, como ela, um escritor.

Onde a evocativa paisagem cenográfica (Nello Marrese) é traduzida na visão frontal de espectros de árvores cobertas pelo branco da neve, tendo à sua frente a sala de estudos da professora, no entremeio de uma estante sugestionando livros raros, enquanto os atores usam uma cotidiana indumentária invernal (Marieta Spada).

E na qual sutis e delicados efeitos luminares (Daniela Sanchez) irradiam uma ambiência climática que confunde ficção e realidade, teatro e literatura, alegria e tristeza, vida e morte. Especularmente refletidos na performance sempre envolvente dos dois intérpretes, comandados pela luminosa direção concepcional de João Fonseca.

Sabendo como equilibrar em sua proposta uma magia dialogal entre duas paralelas manifestações estéticas, fluindo do imaginário das páginas ficcionais aos seus desdobramentos presenciais na corporeidade e na vocalização dos dois convictos atores no preenchimento da caixa cênica.  

Gláucia Rodrigues se impondo no intrigante papel de uma mestra de literatura da sala de aula às inventivas páginas de um romance seu, sendo cativante em sua forma de expressar o orgulho de tudo que alcançou em sua dúplice trajetória, sentindo-se solitária em seus cinquenta anos, mas nunca deixando de ser compassiva com as oscilações comportamentais do personagem jovial de André Celant, o aluno e pretenso escritor.

Este por sua vez, diferencial na sua não dependência às plataformas digitais, vai transmutando seu isolamento discricionário e a teimosia próxima de um nerd mal saído da adolescência, impressionando pela sua representação verbal e gestual, ora do visionário talento de um ator, ora próximo a um ambíguo contador de histórias.

Os dois atores num simbiótico jogo teatral acabando por embaralhar a compreensão do público, em variados níveis mentais direcionando-o a uma indecifrável conclusão comum ou às múltiplas verdades de cada espectador quanto às expectativas de um previsível ou de um inesperado epílogo.

Ecoando, afinal, a precisa reflexão de Roland Barthes, no livro “A Morte do Autor”, podendo esta ser direcionada tanto à literatura como ao teatro : “Será sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que toda a escrita é ela própria essa voz especial composta por várias vozes indiscerníveis”...


                                                       Wagner Corrêa de Araújo   

                                                

O Som Que Vem de Dentro está em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, de sábado a segunda-feira, às 20hs, até 02 de Junho.

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