FOTO/LOURENÇO MONTE |
“O teatro, como a
peste, é feito à imagem dessa carnificina, dessa essencial separação. Desenreda
conflitos, libera forças, desencadeia possibilidades e se estas forças são
negras, a culpa não é da peste ou do
teatro mas da vida”.
Incisiva reflexão de A. Artaud que pode ser um referencial
especular para um cruel recorte psicofísico que marcou a trajetória existencial do ator e
diretor Ricardo Kosovski. E que, num pacto de poesia e pânico com seu filho, também
ator e dramaturgo, Pedro Kosovski, conduziu ao dilaceramento vivencial da trama
dramatúrgica de Tripas.
Impactante sensorialmente, equilibrando-se, à beira do abismo
, entre a vida e a morte, com seu relato nu e cru sobre a tragicidade de um
instante feroz do destino que , malgrado os reveses, tornou mais implícitos os liames de sangue e
arte que unem estes dois seres parentais.
Na perigosa fragilidade de um estado letárgico provocado por
um mal físico – uma crise violenta de diverticulite - que obriga a uma longa
internação hospitalar do Kosovski pai .
Onde, entre o difícil estágio de dores com arriscada septicemia
e potencializada insegurança mental, acontece finalmente o milagre da
recuperação. E que conduz a um acordo paternal/filial para uma viagem às raízes
familiares em Israel, mais precisamente no enfrentamento dos litigiosos
limites territoriais árabes/judaicos no Golfo de Ácaba.
Depois da árdua jornada de guerra contra a corporeidade doente, é este mergulho na
irracionalidade dos conflitos étnicos/políticos que acende a chama, num ritual
de celebração de volta à vida. Na ideia textual de um teatro alquímico de acerto de contas,
dividido entre autoria/comando diretor de
Pedro Kosovski, e voltado para interpretação
solo de Ricardo Kosovski.
Mesmo que, na representação desta episódica retomada de um
amargo gosto da vida, reabrisse as feridas puxando o fio intestinal, moldado em
sangue e fezes, desnudando simultaneamente, em palavra e fisicalidade, um inusitado
espetáculo de provocante incomodo – Tripas.
Capaz de provocar náusea, com a literalidade visual e
olfativa de entranhas metaforizadas, pela manipulação direta, real e sem disfarces
das membranas pegajosas e repelentes de um polvo.
Como por assustar pela
rudeza orgiástica do gestual performático(Toni Rodrigues) e pela vocalização de
nervosa tessitura, na instintiva e enérgica
autenticidade confessional assumida no protagonismo do ator(Ricardo Kosovski).
Contando ainda com o minimalismo funcional da concepção cenográfica(Lídia Kosovski), sob luzes entre
sombras( Renato Machado) e incisivos acordes ao vivo (Pedro Nêgo) da trilha
incidental de Felipe Storino.
Este teatro da vida tão próximo da crueldade artaudiana , remetendo também aos transes do descompasso cênico/corporal de Tadeusz
Kantor, alcança contumaz veracidade no contraponto critico assumido,
simultaneamente, por sua enérgica direção e sua irretocável performance.
Mas enquanto a muitos há de parecerem irracionais os avanços formalistas destas Tripas, a outros certamente há de tornar cúmplices por seu simbiótico arrojo estético/curativo.
Através do mistificante encontro pai/filho, ator/diretor, no
onirismo erotizado e na pureza incestuosa de um beijo de afetivo protesto
capaz, assim, de fazer reflexionar provocando lágrimas.
Wagner Corrêa de Araújo
FOTO/BIDI BUJNOWSKI |
TRIPAS está em cartaz no Teatro Poeirinha, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h. 60 minutos. Até 25 de fevereiro.