“Aquilo que sorve ou devora. E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso numa vertigem. Repito hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. Qualquer abismo”.
A partir de inspiradas passagens de Caio Fernando Abreu, de transcendente
significado, entre a poesia e o caos, sobre a difícil interatividade humana na
ambiência coletiva, citadina ou de comunidades, a diretora/coreógrafa Sônia Destri
Lie idealizou “Cinco Passos Para Não
Cair no Abismo” para a Companhia
Urbana de Dança.
No seu conceitual temático
há uma perceptível equivalência entre um inquieto dimensionamento
psicológico e a exposição de um incisiva fisicalidade gestual, num percurso
coreográfico entre trincheiras e em campo minado.
Exponencial pela resistência social, no viés da criação
artística, destes bravos lutadores/bailarinos das periferias cariocas(Allan
Wagner, André Feijão, Jessica Nascimento, Johnny Brito,Júlio Rocha, Miguel
Fernandez, Rafael Balbino e Thiago Williams).
Há mais de uma década empenhados na entrega ao ofício
redentor de seu status de marginalizações materiais e raciais, com um vitorioso
alcance nos rounds das arenas coreográficas além fronteiras.
Instintivo nas suas origens de morro ou de raízes suburbanas, funkeiro/sambistas, ou incentivado pelas sólidas bases do comando estético
de Sônia Destri Lie.
O que os torna capazes de aceitar o desafio de uma obra de
nuance narrativa quase metafórica e exigente estilismo que foge à habitual e
direta comunicabilidade palco /plateia, tão presencial em suas incursões.
O risco demanda esforço
físico e persistência na busca da carga emotivo/dramática necessária a esta proposta à
beira do “abismo cenográfico”, num
palco nu sob luzes vazadas (Renato Machado)sobre os bailarinos e os
espectadores. “Desguardado do anjo com
suas mornas asas abertas” protegendo
suas perigosas quedas solares e seus viscerais descompassos corpóreos, entre “farpas e trapos”.
Se um certo hermetismo criou distanciamento do público descontraído(grande
parte desacostumada à linguagem do
contemporâneo) que abarrotou o Municipal numa vesperal de domingo, a retomada
de um dos maiores êxitos internacionais da CUD - Na
Pista - levou o teatro à apoteose.
Numa composição cênica entre oito cadeiras, guiada por um envolvente
score musical(Rodrigo Marçal) de sotaque soul/hip hop/samba e até com acordes de E. Satie. Favorável a uma irrestrita troca de interações gestuais, ora em formações grupais,ora em solos
enérgicos de clássica mobilidade breaking .
No feeling alterativo
de quebras de quadris e ombros, referenciais robóticos, saltos espaciais e
corpos giratórios atirados ao chão. Em carismática
performance de cumplicidade e adesão da plateia, transubstanciada numa ritualística celebração espontânea da liberdade, em tempos de acelerado preconceito
artístico.
Wagner
Corrêa de Araújo
A Companhia Urbana de Dança apresentou-se, pela primeira vez, no palco do Theatro Municipal/RJ, na
vesperal do primeiro domingo de outubro.
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