LEOPOLDINA, INDEPENDÊNCIA E MORTE : RECADO PARA TEMPOS DE OBSCURA CONSCIÊNCIA NACIONALISTA

FOTOS/ MAÍRA BARILLO

Um espetáculo diferencial faz uma incursão a um dos momentos capitais de nossa história pátria esclarecendo mas, também, desmistificando fatos de nossa decisiva passagem para país independente.

Trata-se de Leopoldina, Independência e Morte, com escritura dramatúrgica e direcional por Marco Damigo. Através do olhar armado na personalidade e na figura de D. Maria Leopoldina, primeira esposa do Príncipe herdeiro D.Pedro e futura Imperatriz do Brasil, logo após os episódios que precipitaram a proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822.

Acontecimentos que tiveram a decisória intervenção de Leopoldina, como Regente na viagem de D. Pedro, através de atos e correspondência oficial, datados do dia 2 de setembro anterior, em conluio com José Bonifácio e o Conselho de Estado.

Levando à desmistificação histórica da exclusividade episódica de um ato isolado e de um grito heroico às margens do Ipiranga. E em paisagismo imaginário e fantasioso idealizado em quadro de Pedro Américo, de 1888, esteticamente inspirado na pintura europeia neoclássica e romântica de teor heróico-nacionalista.

A progressão narrativa da peça prioriza a personagem de Leopoldina (1797-1826) originária da Casa de Habsburgo - Lorena, arquiduquesa de requintada formação aristocrática, com acurada dedicação ao hábito da leitura e uma nítida preferencia pela pesquisa das ciências naturais, conhecimento linguístico e cultura musical, à parte de sua sólida experiência em assuntos políticos.

E que, aqui chegando, encontrou, em princípio, um Príncipe consorte com todos os atributos de  galanteria e nobreza, desfeitos na passagem dos anos, com suas traições amorosas, culminando com a de Domitila de Castro. E, ainda, em progressivo e cada vez mais desprezível tratamento à condição feminina de Leopoldina, quase considerada apenas como geradora oficial e infeliz de nove filhos, entre abortos e mortes, com sobrevivência do último e futuro herdeiro do trono, Pedro II.

O tratamento dramatúrgico não consegue, por seu próprio substrato histórico, escapar de um linear didatismo, natural para atender aos propósitos de uma peça com foco em personagem deveras conhecido, desde os bancos escolares. Embora não como deveria ser em revelador mérito da peça, num clamor de protesto às inverdades sobre seu ofício menor e pelo privilégio de sua idealista luta pela consolidação de um Império.

Ainda que se incorra a uma desnecessária e quase invasiva intervenção presencial do personagem José Bonifácio (Plínio Soares), com uma interpretação um pouco dura, meramente ilustrativa e professoral demais em relação ao sensorial tratamento imprimido ao papel titular, na convicta e espontânea entrega da atriz Sara Antunes.

O tom melancólico desta trama de sofrimentos e decepções pessoais alcança maior densidade psicofísica na luminosa performance da atriz, mas se completa, também, no contraste dos graves acordes de um cello às harmonias pastorais de uma flauta transversal, com segura interpretação ao vivo por Ana Eliza Colomar.

Sendo de bom gosto e funcionalidade a arquitetura cênica (Renato Bolelli Rebouças), entre projeções e plantas, sugestionando uma grande tapeçaria com ambiências palacianas, ora solenes, ora soturnas, especialmente nas cenas finais do delírio e morte de Leopoldina. Com figurinos (Cássio Brasil) variacionais em seus dois módulos solistas, indo da elegancia aristocrática ao despojamento e ao recato. Sempre sob os efeitos luminares (Aline Santini), ora vazados ora sublinhando climas emotivos.

Este arcabouço dramático em formato de um longo solilóquio, com um prevalente sotaque de tragicidade e de patéticos ecos da vida privada de uma Imperatriz provoca, em processo de transcendente reflexão, um abrangente referencial sobre a mulher na contemporaneidade, especialmente a brasileira, que continua, passados dois séculos, em busca ainda do seu digno e merecido lugar .

Para partilhar da construção social e do protagonismo político, além da vivência doméstica de esposas e mães, em processo igualitário ao outro sexo, longe de tantos e tamanhos absurdos na resistente habitualidade dos terríveis avanços e contínuos abusos machistas sobre o status e contra a identidade do feminino.

                                             Wagner Corrêa de Araújo



LEOPOLDINA, INDEPENDÊNCIA E MORTE está em cartaz no Teatro II (CCBB), Centro/RJ, de quarta a domingo, às 19h. 80 minutos. Até 23 de fevereiro.

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