Cura. Cia Deborah Colker. Outubro de 2021. Foto/Leo Aversa. |
Na passagem do segundo ano sob o surto pandêmico, logo após o
aparecimento das vacinas, o panorama coreográfico começou sua lenta e difícil
trajetória para a volta ao espetáculo presencial.
No universo europeu e americano, sob melhores condições de
aporte financeiro, grandes cias foram aos poucos retomando seus repertórios
dando prioridade a criações com o olhar armado na contemporaneidade, mesmo ainda
utilizando os recursos das plataformas digitais.
Começando pelo destaque da obra coreográfica de Marco Goecke, não há como negar que, em
pouco tempo, ele tenha se tornado o mais completo portador do que existe de
mais ousado nos novos caminhos abertos pela atual geração da dança contemporânea.
Sustentado por um conceitual lúdico-burlesco que privilegia o
universo circense, no entremeio da energia acrobática e de um expressionismo
facial que lembra máscaras e palhaçaria, a surpresa da substancial performance
do Ballet of the State Theatre Gärtnerplatz para La Strada de Marco Goecke, a
partir de Fellini/Rota. Tornando, afinal, obrigatória esta abordagem sob o
signo de avançada invenção coreográfica, sem deixar de lado o teor poético
original, para um dos maiores clássicos da história cinematográfica mundial.
Ou no dimensionamento cênico/coreográfico deste Nijinsky, para o Teatro Massimo de Palermo, que contrapõe a citação
instantânea da elegância e leveza de papeis como o Fauno, Petrushka e Espectro
da Rosa, com um prevalente frenesi de gestos, ora trêmulos ora sincopados,
direcionados por recortes de um assumido automatismo robótico.
E, já no final de instantânea temporada presencial do Balé da
Ópera Estatal de Viena, com Fly
Paper Bird, tendo como suporte musical a Quinta Sinfonia de Gustav Mahler
onde, mais uma vez, prevalecem os habituais tremores, pulsões e vibrações psicofísicas. Como se fossem marionetes manipuladas em movimentos de agressiva
irregularidade, trocando qualquer noção de paz gestual por um curto circuito de
altas tensões.
NIJINSKY. Coreografia / Marco Goecke.Martina Pasinotti (Terpsichore) e Alessandro Cascioli (Nijinsky) . Maio de 2021. |
Outro nome polêmico, com diversas transposições virtuais de suas obras, foi o
do inglês Matthew Bourne, em dimensionamento especial na última
versão coreográfica/cinética da mais popular das criações shakespearianas, onde
segue os mesmos passos provocadores e polêmicos das releituras de Mats Ek ou de Angelin Preljocaj. Sem nenhum lastro de fidelidade à clássica trama
original (como as de Kenneth MacMillan
para o Royal Ballet ou a de Franco Zeffirelli para o cinema).
Esta retomada híbrida de seu Romeo+Juliet, por sua ambientação nos esteios marginais das urbanidades
periféricas contemporâneas, está mais próxima das transposições fílmicas de
Robert Wise (a partir da West Side Story, de L.Bernstein) ou, nas de data mais
recente, por Braz Luhman e Steven Spielberg, esta última, em cartaz nos cinemas, revisitando Bernstein.
Com o substrato transgressor e o espírito irreverente que vem
imprimindo às suas criações de teatro coreográfico, onde a trama original de enredos clássicos para balés é transmutada em releitura inusitada e absolutamente
provocadora.
Por outro lado, o desafio mais complexo da resistência à brasileira em tempo de crise, onde a São Paulo Cia de Dança em mais uma das superativas ideias da diretora Inês Bogéa, ao expor o confronto clássico/romântico na releitura de Ana Botafogo para Les Sylphides (Chopiniana) e o clima contemporâneo, com musicalidade bossanovista de Só Tinha de Ser Com Você. Obra de marcante substrato inventivo por Henrique Rodovalho, abrindo, assim, com raro brilho, a temporada 2021 presencial da SPCD no Theatro São Pedro.
Focus Cia de Dança - Vinte . Coreografia de Alex Neoral. Novembro/2021.Foto/Manu Tasca. |
No Rio, em extrema oposição no que se refere a uma Cia
oficial, o complicado status do Balé do
Theatro Municipal, sobrevivendo a duras penas com um corpo de baile cada vez mais desfalcado e na
recorrência substitutiva por alunos da BEMO (Balé Escola Maria Olenewa) viabilizando, sob controvertidas condições tecno/artísticas, melancólicas performances que deixam longe
seus tempos gloriosos e o atributo de maior perfeccionismo clássico do país.
Enquanto a Focus Cia
de Dança trouxe com 20,
espetáculo comemorativo de suas duas
décadas e como tributo ao centenário de Clarice Lispector, uma das mais reveladoras apresentações do ano, sempre
com densidade emotiva e apuro técnico coreográfico, de imediata apreensão pelo
acertado empenho de Alex Neoral e sua incrível trupe atuando, aqui, como completos atores/bailarinos.
No incisivo “mergulho
na matéria da palavra” pelo olhar de Clarice, transmutado num corpo-verbal
dançando e se movendo no processo (coreo)investigativo da sensitiva corporeidade
exponencial de oito bailarinos em performance exemplar.
E, em pré lançamento nas plataformas digitais seguida de rápida
temporada presencial, a Cia Deborah
Colker prometendo novas perspectivas em seu processo criador, sob radical apelo
sensorial, na abordagem psico/coreográfica, em compasso de corporeidade
plástico/reflexiva, sobre uma imunodeficiência na transcendente e oportuna proposta
de Cura.
Wagner Corrêa de Araújo
São Paulo Cia de Dança / SPCD. Les Sylphides. Remontagem por Ana Botafogo. Junho 2021. Foto/Charles Lima. |
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