Fly Paper Bird, de Marco Goecke. Em destaque central o bailarino brasileiro Marcos Menha. Balé da Ópéra Estatal de Viena, Novembro 2021. Foto/Ashley Taylor. |
Poucas semanas após o reinício de sua temporada presencial, a
Ópera Estatal de Viena, sob novo surto pandêmico, é obrigada a interromper sua então bem sucedida temporada
oficial de 2021 e retomar sua programação virtual incluindo obras de seu
repertório dos últimos anos.
Entre inúmeras óperas e balés, um programa em caráter de estreia ao vivo na
primeira quinzena de novembro, volta ao cartaz, com disponibilização nas plataformas digitais, exibindo a filmagem de sua noite
de première. Titulando-se o espetáculo simbolicamente como No Sétimo Céu (expressão utilizada por Mahler ao dedicar o célebre Adagietto à sua mulher Alma) através de duas remontagens e uma antológica
performance da mais recente criação do coreógrafo Marco Goecke.
A Orquestra Filarmônica da Ópera de Viena, sob entusiástica regência de seu maestro titular Patrick Lange, apresentou uma típica seleção de obras sinfônicas de sotaque vienense desde valsas, polcas e marchas da família Strauss, como dois movimentos da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler, incluindo o tão celebrado Adagietto. Completando-se o programa com com uma exemplar composição da juventude francesa de Georges Bizet – a Sinfonia em Dó, com uma histórica trajetória de versões coreográficas.
O formalismo romântico das obras que integram a abertura e o
meio do programa alcança, aqui, uma visão absolutamente dissociada de qualquer rigidez
clássico/acadêmica mas antenada na passagem entre a tradição à vanguarda.
Pelo contrário, no olhar coreográfico de Martin Schläpfer o fluir melodioso dos ritmos da família Strauss é
aqui subvertido em quase caricata energia corpórea, no entremeio do rigorismo
de sapatilhas de ponta com assumida intervenção de certo descompasso nervoso.
Esta concepção coreográfica - Marsch, Walzer, Polka, original de 2006, tem uma releitura 2021 que alcança sensorial citação subliminar do tango argentino num retrato indumentário (Susanne Bisovsky) que recorre à tipicidade burlesca de personagens da Commedia dell’Arte.
Marsch, Walzer, Polka, de Martin Schläpfer. Balé da Ópera de Viena. Novembro 2021. Foto/Ashley Taylor. |
Quanto a Marco Goecke
não há como negar que, em pouco tempo, ele se tornou o mais completo portador do
que existe de mais ousado e polêmico na coreografia contemporânea. Negativado por muitos críticos
e detestado por parcela significativa do público, com a acusação de insistir numa
formula única e reiterativa de linguagem gestual, Goecke
teimosamente responde, inventivamente provocador, com outra obra sob a mesma diretriz estética.
Desta vez com Fly
Paper Bird, tendo como suporte musical o Scherzo e o Adagietto da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler onde, mais uma vez, prevalecem os habituais tremores, pulsões e vibração psicofísica especialmente das partes corpóreas superiores - mãos, braços, ombros e rosto - como se o sangue ameaçasse saltar das veias dos intérpretes/bailarinos.
Ou se fossem marionetes manipuladas em movimentos de agressiva
irregularidade, trocando qualquer noção de paz gestual por um curto circuito de
altas tensões. Numa possível e metafórica conexão com o titulo da obra fazendo,
vez por outra, uma correlação com o difícil bater de asas de um pássaro/homem ferido.
Numa soturna paisagem cenográfica (Thomas Mika) de luzes e sombras, tendo ao fundo a
silhueta de um grande pássaro, os figurinos dos bailarinos são representados em
forma de collants de malha cor da pele, sugestionando rasgos como se tivessem
sido violentamente fissurados por objetos cortantes.
Uma pausa de silêncio nos melancólicos acordes de Mahler
conduz às fragmentarias passagens balbuciadas pelos bailarinos de Mein Vogel (Meu Pássaro) de Ingeborg Bachmann, um dos mais emblemáticos
testemunhos da poesia austríaca de nosso tempo:
“Aconteça o que
acontecer: você sabe o seu tempo, meu pássaro / pegue seu véu e voe até mim
através da névoa”...
Neste desafio sobre a tragédia civilizatória ampliada pelos
catastróficos surtos pandêmicos, o pesadelo só é suavizado no resgate da absoluta
pureza coreográfica do balé branco em suas formas neoclássicas. Através de G. Balanchine, com Le Palais de Cristal, a partir da Sinfonia em Dó Menor de Bizet, numa das
criações do mais sublime perfeccionismo de todo acervo memorial/coreográfico do século XX.
Sem deixar também de ressaltar neste espetáculo, para orgulho de nossos bailarinos e da cultura coreográfica brasileira, a constatação da brilhante performance de Marcos Menha, tanto na criação de Goecke como na de Martin Schläpfer, cada vez mais se destacando como um dos melhores solistas do Balé da Ópera de Viena.
Wagner Corrêa de Araújo
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