RETROSPECTIVA TEATRAL 2019 : SOB BRAVO ENFRENTAMENTO PARA TEMPOS NEBULOSOS

CÁLCULO ILÓGICO / Foto - Bia Chaves

Como se não bastassem os inúmeros cortes de financiamento público e novas regras nos incentivos  oficiais, quase inviabilizando de vez a produção de espetáculos, uma onda de irrestrito retrocesso censório, guiada por um doutrinário político obscurantista, colocou em estado de atenção não só a classe teatral mas todo o universo cultural brasileiro.

PARTE I  – SEIS PERSONAGENS EM BUSCA DE UM ATOR

Tornadas raras as montagens mais exigentes aumentou, por sua vez, o número de monólogos. Ocasionados pela precariedade de recursos financeiros e sob o risco da dependência de textos mais originais e performances mais sólidas, afastando cada vez mais o público desta forma de representação dramatúrgica.

Se de um lado houve uma perceptível rejeição, por outro acabou surpreendendo com algumas das melhores criações de toda temporada teatral carioca. Através de propostas incisivas não só por sua abordagem temática como por sua formatação no uso  de soluções cênicas.

Desde a autoficção do dramaturgo uruguaio, Sergio Blanco - A Ira de Narciso, convergindo em carismático aporte sensorial, no embate psicológico e na instigante corporeidade alcançada pela representação de Gilberto Gawronski, sob direção conceptiva de Yara de Novaes.

Ou de Todas As Coisas Maravilhosas, na dúplice textualidade dos ingleses Duncan Macmillan/Joe Donahue, para um teatro empático que se expande em cena e conquista, com as delicadas nuances de seus pequenos mistérios, a adesiva cumplicidade do público, através de potencial interprete (Kiko Mascarenhas) e competente direção  (Fernando Philbert).

E é este ultimo que comanda a perspicaz releitura de Diário do Farol, a partir de João Ubaldo Ribeiro, com um luminoso Thelmo Fernandes no disfarce de feroz manipulador de emoções odiosas que exteriorizam os mais baixos instintos da condição humana. Sob o signo da maldade e das sórdidas injunções políticas de anos sombrios de regime militar, dando um recado de alerta ao Brasil de hoje.

Digressões algébricas com substrato psicopoético conduzem à escritura dramatúrgica, no formato de um monólogo autoral, da atriz Jéssika Menkel com Cálculo Ilógico, sintonizada por provocante performance emotiva, na sempre artesanal condução de Daniel Herz. Num desempenho energizado pela amarração de espontânea fisicalidade gestual enquanto, ao mesmo tempo, sedutor por seu élan introspectivo.

3 MANEIRAS DE TOCAR NO ASSUNTO / Foto de Dalton Valério.

Através de tema, de tanta urgência em momento de temível retrocesso político/cultural, o ator e autor teatral Leonardo Netto faz visceral incursão dramatúrgica e performática com sua peça 3 Maneiras de Tocar no Assunto. Num impactante processo investigativo que se desdobra em três solilóquios, de sequencialidade cúmplice e complementar, sobre todas as formas da intolerância e do não consentimento à condição humana homossexual. Com exponencial parceria de Fabiano de Freitas (direção), um expert cênico na decifração da questão LGBT.

Da concisa transmutação do Otelo shakespeariano para um ator e marionetes, através de Iago, em encenação que prima por seu rigorismo focal para conceder ao personagem titular, em seus divisionismos, veemência política e tônus psicológico, com uma mesma pulsão performática-diretorial e comum autoridade cênica (Márcio Nascimento e Miwa Yanagizawa).

Valendo ainda serem citadas outras personagens, entre outras tantas, presenciais em algumas envolventes experimentações solo. Do difícil suporte da condição homossexual, entre a infância e a adolescência, no revelador memorialismo cênico de Rafael Souza Ribeiro em O Homem Feito.

À transcendente incursão de Gregório Duvivier no processo questionador de Sísifo, em reflexiva e desafiante pulsão que conecta, com sagaz ironia, a ancestralidade mítica e o ideário existencialista da obra de Albert Camus ao vai e vem das absurdidades do momento político brasileiro.


                                             Wagner Corrêa de Araújo


DIÁRIO DO FAROL /  Foto de Rafael Blasi

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