ORPHÉE : UMA ÓPERA SOB EFEITOS CINÉTICOS E SIGNOS ESPECULARES

FOTOS/ ANA CLARA MIRANDA

“Os espelhos são as portas pelas quais a morte vem e vai. Olhe para si mesmo no espelho a vida toda e você verá a morte em ação". Nestas palavras Jean Cocteau, o escritor e artista múltiplo, define a simbologia metafórica de seu filme Orphée, ambientado no ano 1949.

Na recorrência a uma narrativa ancestral transmutada à modernidade de uma Paris do pós-guerra, no efervescente movimento do Café des Poètes, onde a fama do poeta Orphée, em crise criativa, enfrenta o progressivo sucesso de um autor mais jovem (Cégeste). E servindo, assim, como mote inspirador para a ópera de Philip Glass, estreada em 1993, com mesma titularidade da obra fílmica.

Cortejando uma sedutora Princesa (A Morte) Orphée testemunha, sob as instâncias do seu motorista Heurtebise, o atropelamento assassino do literato rival (Cégeste). Em sequencial trajeto através de espelhos, alterativo entre o mundo dos vivos e dos mortos. Dividindo-se entre a atração da enigmática mulher e o amor de sua esposa Eurydice que, por sua vez, é assediada por Heurtebise.

Concebida pelo compositor americano como a transposição inicial de uma trilogia operística sobre filmes de Cocteau, Orphée tem seu substrato estilístico numa partitura de sustento musical minimalista e na ação dramática de um libreto com quase absoluta fidelidade textual ao enredo cinematográfico.

Plena dos característicos riffs e rigorosos arpejos das composições de Glass, nas insistentes repetições das lentas harmonias tonais e episódicas intervenções jazzísticas e sons de carrilhões. E que a convicta regência de Priscila Bonfim diante de complexa paleta musical viabiliza, exemplarmente, diante de uma mais concisa Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal.

Numa escritura musical, com prevalência modal de uma vocalização recitativa na sua proximidade à fala teatral. Explorada na visceralidade de uma nuance dramatúrgica imprimida pelo comando conceptivo/direcional (Felipe Hirsch) para evitar quaisquer desequilíbrios de predomínio exclusivo do canto sobre a representação teatral.


Na competência de um elenco onde o  destaque maior fica com o quarteto protagonista. Sem potenciais exigências para facilitar o alcance das tessituras vocais, por seu delineamento composicional mais coloquialista no Ato I, mas sujeitando-se, às vezes, ao risco da perda diante de ocasionais alturas orquestrais.

Salvo em passagens do Ato II, estas com fraseados agudos e mais melódicos, nos duetos do sempre consistente barítono Leonardo Neiva no papel titular, com a surpreendente presença atoral, belo timbre e extenso registro de voz da soprano portuguesa Carla Caramujo (Princesa). 

Sem deixar de citar a força ascensional de nomes da cena lírica nacional, a soprano Ludmilla Bauerfeldt e o tenor Giovanni Tristacci, ambos preenchendo, com brilho, seus respectivos personagens - Eurydice Heurtebise. E de uma reveladora, embora instântanea, atuação do tenor Geilson Santos (Cegéste).

Felipe Hirsch enfatiza sua instigante versão dramática da ópera de Philip Glass a partir do clássico filme francês, anos cinquenta, na proposta de um espetáculo que impulsiona efusivos referenciais de outras linguagens e mídias artísticas.

Numa encenação direta e seca explorando a plasticidade de um jogo especular, onírico e surreal, materializado na envolvência de inventiva paisagem cênica (Daniela Thomas e Felipe Tessara) e acentuado nas marcações luminares (Beto Bruel) provocativas ora de medo, ora de encantamento.

Entre o lirismo romântico e um sotaque sombrio, ampliado nas tonalidades indumentárias (Marcelo Pies) remissivas ao black&white do filme. Extensiva a uma funcional fisicalidade gestual/coreográfica (Priscila Albuquerque e Bruno Beltrão) dos cantores/atores e do grupo de bailarinos (integrantes do BTM) sustentada em movimentos ao contrário, numa espécie de rewind fílmico.

Numa proposta investigativa de ópera/teatro sintonizada com a contemporaneidade e capaz, enfim, de mágica convergência estética para um cinético plano geral, com simultaneidade  ritualística, mítica e coloquial.

Onde close-ups reflexivos acontecem no deslocamento dos personagens, artistas e espectadores, em cúmplice e frontal miragem no espelho comum da condição humana e na perplexa expectativa de seu destino mortal.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


ORPHÉE está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, sexta, sábado, terça e quinta, às 20h; domingo às 17h. 150 minutos. Até 31 de outubro.

FREUD E MAHLER : CIÚME PASSIONAL, MÚSICA E PSICANÁLISE

FOTOS/ THIAGO SACRAMENTO

Em 1910 o compositor Gustav Mahler, finalmente, decide recorrer a Sigmund Freud, deixando de lado seu descrédito e resistência à psicanálise, pelo enfrentamento de uma onda de adversidades existenciais e sentimentos sombrios que então o dominavam, numa pulsão crescente a partir de 1907.

Num triênio avassalador de infortúnios sequenciais que incluíam a súbita morte de sua filha de 4 anos, a perda da direção da Ópera de Viena e o diagnóstico de um sério mal cardíaco. Com o fator agravante de um possessivo ciúme, perturbador do estável amor conjugal de oito anos com Alma Mahler, levando-o inclusive à perda da libido.

Desconfiando, cada vez mais, de que a mulher de sua vida continuava, outrossim, a inspirar, por seu talento musical (sufocado por preconceito do marido compositor) e beleza fisica, o assédio de outros artistas  tais como o pintor Gustav Klimt, o arquiteto da Bauhaus - Walter Gropius e o expressionista Oskar Kokoschka, tendo ela vivido maritalmente com estes dois últimos após a morte de Mahler.

Acostumado à sensitiva reflexão especular em suas composições do memorial familiar de amarguras e de sua melancólica e precária psique, Gustav Mahler acaba possibilitando, através de seu caso clínico, um retorno ao seu conturbado passado. Sob a técnica da livre associação mental já então prevalente como método da análise freudiana.

No episódico encontro de apenas quatro horas com o mentor mor da Psicanálise, na cidade holandesa de Leiden, no verão de 1910, em única sessão de desabafo e consolo. Sem qualquer registro detalhista do teor da conversa e apenas alinhavada em breves anotações epistolares do próprio Freud e na descrição sumária de uma discípula sua (Marie Bonaparte).

Mas capaz de se tornar, no entremeio do imaginário dramático e do substrato documentário, envolvente trama pelo experiente lavor autoral da dramaturga e escritora Miriam Halfim, sob a titularidade de Freud e Mahler. Reunindo dois celebrados atores – Guiseppe Oristanio e Marcello Escorel, sob uma sempre investigativa direção concepcional de Ary Coslov.

Numa narrativa fluente, de nuance confessional, que somatiza a problemática existencialista de Mahler (Marcello Escorel) ao universo psicanalítico de Freud (Giuseppe Oristanio). Em refinada escritura cênica que, a partir do conflito de paixão entre Alma e Gustav, viabiliza um registro comportamental e cultural de um momento premonitório na gênese do século XX.

Extensivo ao contraste musical do romantismo tardio de Mahler (com emblemáticas passagens de suas sinfonias) e o psicodelismo da sonoridade fusion (rock e eletroacústica) – do Tributo a Edgard Varese, por Frank Zappa, em potencializada trilha por dúplice oficio de Ary Coslov.

Com recatada mas funcional paisagem cenográfica (Marcos Flaksman), banco e telão frontal em alterativa transparência de projeções visuais e de simbológica forma escultórica feminina. Sob um desenho de luzes (Paulo Cesar Medeiros), ora vazadas ora focais, com marcações climáticas das dialetações e solilóquios. Além de indumentária (Brunna Napoleão) contrastante entre o coloquialismo e um discreto sugestionamento de época.

Numa veemente e emotiva performance de dois atores, com idêntico grau de luminosidade, na expressão comum de díspares temperamentos e diferencial representividade corporal. Sabendo Giuseppe Oristanio (Freud) imprimir ao seu papel uma espontânea energia e sutil irreverência crítica como contraponto à cativante irradiação dramática do desalento no personagem de Marcello Escorel  (Mahler).

E que no pleno domínio da autoridade cênica de Ary Coslov, além dos antagônicos e precisos contornos psicofísicos dos dois personagens com um prevalente subjetivismo temático, transcende seu espaço psicológico e seu tempo histórico, com empático sustento fílmico, conectando o passado e o futuro. Em espetáculo revelador na sua assumida concisão estética, sintonizado como um sólido teatro de entretenimento e de reflexão.
                                       
                                                Wagner Corrêa de Araújo


FREUD E MAHLER está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal/Centro/RJ, quintas e sextas, às 19h. 70 minutos. Até 21 de novembro.

IAGO : O SÓRDIDO JOGO DAS MANIPULAÇÕES DO PODER

FOTOS/DANIEL BARBOZA

Iago é uma das mais emblemáticas tipificações imaginárias da mente humana  para exemplificar e denunciar, através de um personagem fictício, a que ponto chega a vilania daqueles que estão próximos das benesses do poder político.

Embora W. Shakespeare, para criar a figura de Iago no rol dos papéis protagonistas de seu Otelo, tenha se inspirado em traços veristas do conto de 1584 (Un Capitano Moro) do italiano Giovanni Battista Giraldi Cinthio, a partir de um episódio de traição e morte ocorrido, em 1508, na ambiência governista veneziana.

Iago é um militar que representa o contraponto de seu superior hierárquico Otelo, na progressão dramática e narrativa da tragédia shakespeariana. É ele que, fazendo parte dos circuitos oficiais do Mouro na República de Veneza, ao ser preterido para o cargo de tenente em favor de Cassio, planeja uma hedionda vingança sugestionando ser este amante de Desdêmona, a virtuosa esposa de Otelo.

O caráter mais sinistro desta trama é a manipulação maquiavélica da mentira sob a aparência da verdade por um hábil e sagaz conselheiro politico. Que usa do disfarce psicofísico do afeto e da honestidade diante de um íntegro governante para fazer valer, sem qualquer razão e remorso, a vingança de um perdedor na sua recusa à derrota.

Na acurada adaptação de Geraldo Carneiro, o exímio tradutor da obra do bardo inglês, este Iago, em versão camerista de despretensiosa mas funcional simplicidade para teatro de animação, faz com que este se torne o substituto titular e condutor de um Otelo sintetizado em quatro personagens - Iago, Otelo, Cassio e Desdêmona.

Em convicta performance vocal/gestual com seguras modulações alterativas do ator Márcio Nascimento manipulando quatro bonecos, na envolvência dos acordes de um cello solista (Marcio Mallard), sob incisiva e dúplice direção concepcional (Márcio Nascimento e Miwa Yanagizawa).

Onde o alcance de seu ideário estético minimalista é perceptível no substrato discricionário dos elementos tecno-artísticos. Com suscinta e básica materialidade cênica (Bruno Dante e Carlos Alberto Nunes) da indumentária black do ator às sóbrias echarpes dos bonecos, com design de Tiago Ribeiro.

Sob efeitos luminares (Renato Machado) com prevalência de sombras entre nuances tonais, extensíveis à trilha sonora autoral (Rodrigo de Marsillac) em andamentos mais graves, de assumida expressão dos soturnos arroubos intencionais do maléfico Iago.  

Numa encenação que prima por seu rigorismo focal para conceder ao personagem titular em seus divisionismos, a veemência política e o dimensionamento psicológico que ele tem, com mesma pulsão performática-diretorial e comum autoridade cênica (Márcio Nascimento e Miwa Yanagizawa). E no transcendente conceitual de que no palco da vida não passamos de marionetes manipuladas pelo destino, tal como Iago faz com seus comparsas teatrais.

Se para alguns analistas shakespearianos e por uma definição psíquica Iago  configure o retrato preciso de um psicopata, nele se torna presencial o especular reflexo do egoísmo comportamental do oportunista, sempre alerta à sua hora e vez de exercer o vicioso ofício do domínio energizado pelo mal, atropelando tudo e todos. 

O que transcende o significado de sua  releitura inclusive ao medíocre e execrável comportamental de nosso meio político e de nossas governanças, com prevalente olhar  voltado às causas próprias.

O que levou o irônico referencial desta verdade na apresentação textual de Geraldo Carneiro a sofrer  incabível restrição censória, em recente processo coercitivo tornado cada vez mais habitual à cultura em nosso país.

Num constatável paradoxo de um desagradável incidente e de um bravo e oportuno enfrentamento de progressivo retrocesso cultural. Mas que, por parte da consciência teatral, alcança um desagravo, enfim, no recado a ser dado, custe sempre o que custar, doa a quem deva doer...

                                             Wagner Corrêa de Araújo



IAGO está em cartaz no Sesc Copacabana( Sala Multiuso), de quinta a domingo, às 18h. 60 minutos. Até 27 de outubro.

3 MANEIRAS DE TOCAR NO ASSUNTO : EU SOU ASSIM - E DAI?

FOTOS/ DALTON VALÉRIO

O relacionamento físico-afetivo entre dois iguais, no entremeio de muitos embates milenares de intolerância e preconceito, tem a idade da raça humana. Em  luta insana que nunca deixou de assumir cruéis facetas, com inumeráveis vitimizações, entre famosos e anônimos, sob um olhar sem qualquer perdão de seus contemporâneos.

Tendo sido menos velada em quase  episódica trégua, na ancestralidade grega clássica, no chamado amor aos meninos imberbes. Onde o amante mais velho podia beijar o amado e andar com ele, à causa da casta beleza juvenil provocadora de irresistível e permissiva pulsão sensual.

Com ato suspensivo pós lei mosaica cristã, lançando todos os seus adeptos à ira de Deus. Para sempre condenáveis, pela vilania de seus vícios e atos anormais, ao fogo do inferno e, por outro lado, facilitando a incitação de secular ódio social. Até a emblemática declaração de uma guerra total (Stonewall, 1969) às posturas excludentes dos afetos homoeróticos, universalizando a bandeira LGBT como substitutivo do amor que não podia dizer seu nome.

E é a partir da abordagem deste tema, de tanta urgência em momento de temível retrocesso político/cultural, que o ator e autor teatral Leonardo Netto faz visceral incursão dramatúrgica e performática através da sua peça 3 Maneiras de Abordar o Assunto. Na formatação de monólogo, sob a direção exponencial de Fabiano de Freitas, outra vez sustentada com maestria no seu oficio cênico de decifração da questão LGBT.

Em integralizada progressão dramática do ideário estético de um espetáculo de assumida contenção cenográfica (Elsa Romero) com  olhar armado em catártica representação solo (Leonardo Netto), desdobrando-se entre a dor e a revolta, sem apelar para os clichês da auto-comiseração e da condescendência.

Contando com valioso substrato tecno-artístico, desde os  efeitos luminares de climatizações emotivas (Renato Machado) às assertivas incidências pop/rock/eletrônicas (Leonardo Netto/Rodrigo Marçal), além do acerto na opção pela sobriedade de um figurino coloquial (Luiza Fardin). Num processo investigativo que se desdobra em três solilóquios, de sequencialidade cúmplice e complementar,  sobre todas as formas da intolerância e do não consentimento à condição humana homossexual.

Do preconceito familiar ao bullying na escola e sua expansão na comunidade urbana, sob uma implacabilidade persecutória com resultados de criminalização assassina ou de desesperada purgação na recorrência à auto-imolação. Sob assustador relato descritivo de casos de repulsiva vitimização, incluídos os absurdos índices do contexto brasileiro.

Sucedendo-se a este primeiro módulo -  O Homem de Uniforme Escolar, um interregno histórico na retomada de quadro remissivo da rebelião nova-iorquina de Stonewall, há exatas cinco décadas, e aqui com simbiótico significado na sua titularidade - O Homem com a Pedra na Mão.

Onde Leonardo Netto, em convicto e extraordinário tour de force alterativo, como narrador e intérprete, imprime diversas modulações verbais/gestuais (Marcia Rubim), definidoras de personagens-signos numa madrugada libertária e decisiva à celebração universal da data, 28 de junho, como o  Dia do Orgulho  Gay.

Concluindo o incisivo  tríptico sobre a problemática da homofobia, agora na sua transposição às esferas do poder político e da governança, no segmento O Homem no Congresso Nacional. Com um registro, de nuance mais documental, a partir do ainda difícil e pouco contumaz acionamento legislativo a favor da causa.

Mas é na exposição final da subjetividade marginalizada do homossexual, no impactante delírio de um amplo painel cinético, que, fica constatado o paradoxo entre a misantropia e o altruísmo dos que saíram do armário e dos que precisam vencer o enclausuramento.

No desvendamento de que este optar pela diversidade  resulta no atributo, além dos limites da ambivalência, de aceitar um amor sem distinção de gênero e nas mais diversas dimensões. Sem culpa e sem represália, assegurando a dignidade e o direito à livre escolha de qualquer cidadão.

Em sinérgica proposta metateatral de Leonardo Netto e Fabiano Freitas que, reflexivamente, conduz a um emblemático e oportuno questionamento. Afinal, algum  problema em querer ou poder ser assim?...
                                    
                                             Wagner Corrêa de Araújo 


3 MANEIRAS DE TOCAR NO ASSUNTO está em cartaz no Teatro Poerinha/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 80 minutos. Até 22 de novembro

VAN GOGH POR GAUGUIN : ENTRE O RELATO ONÍRICO E A VERDADE ARTÍSTICA

FOTOS/ LEEKYUNG KIM

O curto período de convívio pessoal entre Vincent Van Gogh e Paul Gauguin, quando este último resolve fugir das agitações de Paris e passar um tempo na calmaria da província, entre Arles e Auvers-sur–Oise, no trimestre final de 1888, fez com que estes dois pintores irmanassem, a partir de uma intimista amizade epistolar, seus simultâneos ideais artísticos.

Mas, ao mesmo tempo, acabou por incitar viscerais desafetos e agressividades que culminaram na  partida súbita e controvertida de Gauguin.  E numa  continuada auto-imolação de Van Gogh, reafirmando seu subjetivismo com brutalidade física, iniciada pela amputação de sua orelha e, sequencialmente, por um tiro suicida.

A esta altura todo um conturbado quadro psíquico já se manifestara, com instantânea e áspera pulsão, levando o artista holandês a um avançado estado de ceticismo e de depressiva solidão. Que a chegada de Gauguin, ao invés de sustar, transmutou em acirrado contraponto crítico,  tanto no contexto estético como no dimensionamento psicológico-existencial de ambos.

A narrativa dramatúrgica de Thelma Guedes para Van Gogh por Gauguin parte de um metafórico insight nesta passagem decisiva na definição dos propósitos de vida e de obra de um e do outro. Num imaginário delírio provocado pela sífilis que acabaria levando Gauguin (Augusto Zacchi) à agonia, onde este dialoga de seu leito mortal com o espectro de Van Gogh (Alex Morenno), sob uma bem urdida direção concepcional de Roberto Lage.

Em progressão dramática desenvolvida em tons, ora confessionais (a partir de extratos veristas da correspondência de ambos), ora ficcionalizados com um referencial poético, sugestionando uma passionária amizade de substrato estético mas com perceptíveis caracteres de atração homoafetiva.

Onde não há preocupação, tanto textual como direcional, de se ater à fidelidade biográfica e cronológica na exposição dos fatos, levando-se em conta de que tudo não passaria de um relato pessoal onírico, causado pela doença de Gauguin que, aqui, parece assumir o protagonismo mor.

O que propicia maiores chances performáticas ao ator Augusto Zacchi, mesmo com um tom acima em suas modulações, que ao seu parceiro de cena - Alex Morenno.  Desde sua espectral figura como parte de um sonho delirante do outro, tornando-se um personagem mais intimidado e com menor visceralidade em suas falas. Extensivo ao gestual mais comedido, apesar de sua notável identificação visual com o retratado (Van Gogh).

Embora tivessem traços similares de incorporação visionária como exponenciais estetas de uma época de abertura a novas perspectivas para a criação plástica e pictórica. Enclausurados, na verdade, ambos em suas respectivas insanidades nos recíprocos embates humanos e artísticos.

Para a  sustentação deste diálogo entre dois personagens-pintores, a iluminação (Kleber Montanheiro) enfatiza tonalidades variacionais, entre sombras e cores, para simular traços cromáticos das respectivas  obras. Inclusive com a intencionalidade de cobrir, abstratamente, a absoluta ausência figurativa em telas brancas expostas ou manipuladas com miméticas pinceladas pelos atores.

Para a qual concorre interativa trilha sonora incidental (Aline Meyer), com prevalência de acordes  impressionistas, marcando estilos e gêneros de uma época de progressiva diluição do realismo  paisagístico e retratista.

Numa ambientação cenográfica (Paula De Paoli, incluída a indumentária) de um atelier em processo de desconstrução à base de molduras, telas, cavaletes, garrafas vazias, pincéis e quaisquer outros detritos dispersos aleatoriamente pelo palco.

Como se refletissem os confusos estados de conturbação mental dos dois artistas/personagens Que por sua vez portam figurinos atemporais, com manchas de tinta que se estendem aos trajes e à corporeidade dos atores.

Em espetáculo arquitetado para dar voz aos dois pintores/atores, mesmo que a representação do papel de Van Gogh seja mais alegorizada que a de Gauguin, na atenuação dos surtos causados por seus fantasmas, o direcionamento das nuances diferenciais propostas aos dois personagens e a entrega atoral fazem com que a montagem mereça ser conferida.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


VAN GOGH POR GAUGUIN está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim (Teatro)/Ipanema, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. 75 minutos. Até 27 de outubro.

A COR PÚRPURA : UM MUSICAL PELO EMPODERAMENTO DA MULHER NEGRA

FOTOS/ CARLOS COSTA

Ao publicar o seu romance epistolar (The Color Purple) em 1982, Alice Walker não só fazia um tributo às lutas da mulher negra no enfrentamento do racismo e todas as formas de violência social e doméstica, capazes de levar ao estupro, ao incesto, e aos descomedimentos machistas contra mães e filhas. Mas também, através de um retrato de opressão, denunciando  num grito de rebeldia, a ancestralidade e a resistência do domínio patriarcal.

O que lhe possibilitou o Prêmio Pulitzer de Ficção, um dos primeiros a ser concedido a uma escritora de pele não branca. Levando a uma sequencial e celebrada versão cinematográfica (Steven Spielberg), 1985, seguida do musical da Broadway com mesma titularidade em 2005 e à segunda adaptação dez anos depois.

Em mais uma cuidadosa tradução e adaptação do libreto por Artur Xexéo, o musical chega pela primeira vez aos nossos palcos sob um conceitual estético de super produção, com 17 atores e apurado staff tecno-artístico sob potencializado comando concepcional de Tadeu Aguiar. E mais fidedigna à montagem original de 2005 que a da sua recriação, em 2015 .

A narrativa, tanto nas telas como nos palcos, em linhas  gerais fala das mulheres afro-americanas na zona rural da Geórgia no alvorecer do século XX, a partir de cartas escritas pela protagonista Celie (Letícia Soares) e direcionadas ora a Deus, ora à sua irmã e missionária na África, Nettie (Ester Freitas).

Provando, antes de tudo, que ainda havia uma  escravidão velada, nas dilaceradas restrições de uma sitiada sobrevida da negritude feminina. Onde Celie perde sua auto-estima na insensatez do padastro que a engravida duas vezes, sem direito à guarda dos bebês, até ser entregue, em condições aviltantes, para um casamento escravocrata com o brutamonte Mister (Sérgio Menezes).  

E só redescobrindo, entre insultos e sacrificios, como se afirmar como ser humano e como mulher, exemplificando-se na insubmissa Sofia (Lilian Valeska) e na irreverência da cantora de clubes noturnos, Shug Avery (Flavia Santana). Com intervenção de outros personagens vividos, entre outros, pela competência de Jorge Maia ou por um energizado Alan Rocha.

Onde o qualificante  resultado como realização de teatro musical, deve-se a um seguro e investigativo empenho diretorial que se estende a uma artesanal exploração das diversas linhas vocais, de perceptivel prevalência nos naipes femininos. Nas carismáticas performances tanto de Leticia Soares ao exuberante presencial cênico, como atriz / cantora,  de Lilian Valeska.


Sem esquecer o absoluto destaque de  afinado conjunto de oito instrumentistas, sob a eficaz égide musical de Tony Lucchesi, irradiando uma trilha black music, sustentando-se do R&B ao spiritual. Aditivada, ainda, nos harmônicos grupos corais  e no brilho da cumplicidade coreográfica de Sueli Guerra.

Com assumido acerto na opção cenográfica (Natália Lana) de sugestionamento realista, contrastando com a exclusiva prevalência de cadeiras no décor da Broadway, possibilitando transmutações ambientais dos dois andares e escadas laterais de uma casa móvel, com referencial de um estado sulista americano.

Completando-se nas marcações luminares (Rogério Wiltgen), no entremeio de cores boreais sob sombras black e tonalidades purpúreas, ressaltando ainda a tipicidade coloquialista dos figurinos (Ney Madeira e Dani Vidal).

De um lado, a representividade de uma saga da raça negra e do feminino, no revigorante paradigma musical dos embates de uma comunidade em estado de permanente alerta e de irmandade contra a opressão.

De outro, a requintada realização de A Cor Púrpura, outra vez autentificando o alcance estético e a credibilidade do musical à brasileira. E, antes de tudo, sabendo em momento de retrocesso político/cultural, perseverar com radiantes luzes no combate a esta abominável onda obscurantista.  

                                           Wagner Corrêa de Araújo



A COR PÚRPURA está em cartaz na Cidade das Artes/RJ, sexta às 20h30; sábado, às 17 e às 20h30; domingo às 17h. 180 minutos. Até 03 de novembro.

MONSTROS : FILHOS TERRÍVEIS E PAIS CÚMPLICES EM MUSICAL POCKET

FOTOS / JANDERSON PIRES

No panorama dos controversos embates disfuncionais do sistema educacional com o qual convivemos, através de informes midiáticos que diariamente perturbam nossos corações e mentes, há as vítimas e os vitimizadores, entre pais e filhos, sem grande diferencial nos propósitos de um lado ou do outro.

Um romance de Jean Cocteau – Les Enfants Terribles -  já havia mostrado, há quase um século (1929), o quanto o desequilíbrio na ambiência familiar pode estender o conflito - genitores e filhos - ao meio social, produzindo seres absolutamente abomináveis.

A começar da casa para a escola, através do comportamental superprotecionista de pais em posições extremadas no front de defesa de seus rebentos, fazendo com que estes últimos se identifiquem também como monstruosos déspotas na imposição de suas vontades.

Neste habitual ato de classificar seus filhos como seres especiais acima da média, qualificados demais a ponto de serem imunes a qualquer culpa em bullyings e faltas na convivência comum com os outros colegas de classe. Na egotista avalição de supra paternalismo, considerando inferiores todos os outros diante do perfeccionismo genético de suas crianças.

Na recorrência a esta abordagem, o jovem ator, dramaturgo e diretor argentino Emiliano Dionisi surpreendeu o público e a crítica portenha com a peça Os Monstros, original de 2016. Que em sua proposta estética seria, em verdade, um musical fora dos padrões do gênero, sombrio e bem humorado, irônico e reflexivo, ao mesmo tempo lúdico e provocador.

Não só por sua composição cênico/sonora como por seu substrato temático. Estruturado numa gramática dramatúrgica de breves e acelerados monólogos, intermediados pela prevalência de alterativas  canções solistas e episódicos duetos.

E que tem, agora, sua primeira versão em palcos brasileiros, sob comando concepcional de Victor Garcia Peralta, para os atores/cantores Claudio Lins e Soraya Ravenle e com a trilha sonora original (Martin Rodriguez) transmutada em set eletrônico pelo músico/tecladista (Azullllll).

Através do contraponto dos personagens Cláudio (Cláudio Lins) e Sandra (Soraya Ravenle), na representação atoral de um pai e de uma mãe, de casais diferentes, respectivamente com um menino (Francisco) e uma menina (Luiza), filhos e alunos da mesma escola, referenciados em imaginária interlocução presencial.

Em espaço cenográfico (Fernando Rubio) de assumido despojamento sob o sustento plástico minimalista de um único elemento escultórico (um mecânico grampo-sargento) e de indumentária (Claudio Tovar) de executivo coloquialismo, sob recatados traços luminares (Maneco Quinderé) de claridades e sombras.

Funcionando, em sua progressão dramático e composicional, na proximidade de um contexto de ópera de câmara de estilização barroquista/clássica, alterativa nas suas oito canções e na textualidade de nuance recitativa, ao interagir dois personagens e um conciso staff musical.

Com o diretor Victor Garcia Peralta, outra vez dando continuidade a um ideário mor de revelação da nova dramaturgia hermana, agora viabilizada através de dois atores “monstros” do teatro musical brasileiro - Cláudio Lins e Soraya Ravenle.  Em magnetizadas inflexões vocais-gestuais de exteriorização psicofísica dos demônios internos, no papel de pais tiranos disfarçados em conciliadores do convívio  traumático com filhos terríveis.

Sem deixar de  constatar que Monstros, com sua encenação direta e seca, não deixa de ser um espetáculo difícil e menos palatável aos apreciadores do gênero, na sua sutil utilização do lúdico e de assumido contraponto crítico aos elementos estéticos do musical tradicional. 

Capaz mesmo de incomodar parte do público padrão ao se abstrair do glamour cenográfico do grande musical, incluída uma trilha sem qualquer facilidade memorável e apreensiva acessibilidade de seus instantaneos acordes melódicos.

Inquietando por sua abordagem temática, ao questionar a apatia conduzindo à reflexão, dificulta, enfim, o embarque imediato daquele espectador acomodado que vai ao teatro apenas para fugir de uma realidade que pode ser a dele.

                                            Wagner Corrêa de Araújo



MONSTROS está em cartaz no Teatro PetroRio das Artes/Shopping da Gávea, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 20h. 100 minutos. Até 27 de outubro.

O ANJO DO APOCALIPSE : IRREVERENTE FABULÁRIO DRAMATÚRGICO DE AMOR E DE GUERRA

FOTOS/ PABLO HENRIQUES

Tudo começou no Oriente Médio e tudo vai acabar no Oriente Médio" - funcionando  como uma epígrafe autoral de Clovis Levi para sua mais recente incursão dramatúrgica a que ele titulou, com referencial bíblico e contexto político, de O Anjo do Apocalipse e viabilizada cenicamente sob o comando diretorial de Marcus Alvisi. 

Na conexa unicidade dos quatro cavaleiros do Apocalipse no papel solo de um Anjo anunciador, transmutado  em irreverente e provocador personagem símbolo da secular guerra ideológica, com substrato religioso, entre cristãos, judeus e  muçulmanos.

Particularizada, com o olhar armado na contemporaneidade, num conflito sanguinário, sustentado por irreprimível onda de violência, no entremeio de invasões e atentados, nas imediações territoriais de Israel e da Palestina. 

Através do relato testemunhal do Anjo (Marcello Escorel) sob compasso de atemporalidade, em torno dos encontros vivenciais e amorosos de um casal – o judeu Eliakim (Daniel Dalcin) e a palestina Zahra (Juliane Araújo) - redivivo de imemoriais épocas e ancestralidades bíblicas até o século XXI.

Por incisivo dimensionamento psicofísico e inquisidor processo dramático de revelações casuísticas do processo que os leva a uma pulsão emotivo/erótica, no ir e vir do apaixonar-se estando sempre em lados oponentes.

Onde o minimalismo dos recursos cênicos (José Dias) é preenchido pela envolvência dos efeitos luminares (Aurélio de Simoni) e nas marcações incidentais da trilha sonora (Alvisi e Joel Tavares). Presencial na corporeidade dos três atores em indumentárias básicas (Maria Duarte) que possibilitam sutis caracterizações de seus personagens no universo árabe/judeu.

Sabendo Marcello Escorel construir seu carismático personagem com sensorial gestualismo e rompante ironia, nas suas contestadoras dialetações bíblicas, enquanto seu desafio opinativo às ordenanças celestiais serve de lúdico e interativo contraponto palco/plateia.

Completada pela participação dos jovens atores Daniel Dalcin e Juliane Araújo, revelando sensível esforço para superar as eventuais fragilidades de um ofício em processo de maturação. Com unicidade performática e adequação física à exigente versatilidade dos seus respectivos papéis e mais convicta exploração dos contornos psicológicos na representação feminina.

Conduzindo a trama com empatia ao imprimir densidade rítmica às passagens de recortes oníricos, o direcionamento de Marcus Alvisi viabiliza uma performance sólida como investimento estético e consistente em sua intencionalidade crítica.

Tornando prevalente a cativante narrativa textual de Clovis Levi transubstanciada no sugestionar, em processo metafórico, a trajetória pânica da raça humana para uma era de irreversível irracionalidade. Onde o fratricídio, nos embates do fundamentalismo ideológico-religioso, transmuta o epílogo em instante de feroz amargor pela apocalíptica advertência do "anjo exterminador".

Sem deixar de referenciar, em subliminar metalinguagem, a extraterritorialidade desta culpa terminal. Na especular intolerância de um ideário de retrocesso e de obscurantismo, sob uma certa e insensata governabilidade...

                                           Wagner Corrêa de Araújo


O ANJO DO APOCALIPSE está em cartaz no Teatro Ipanema/RJ,sexta, sábado e segunda, às 20h.; domingo, às 19h. 90 minutos. Até 07 de outubro.

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