ALMA DESPEJADA : RESIGNIFICANDO O LEGADO EXISTENCIAL SOB METAFÓRICO RETORNO POST MORTEM

 

Alma Despejada. Andréa Bassit/Dramaturgia. Elias Andreato/Direção. Irene Ravache/Intérprete. Agosto/2024. Fotos/João Caldas.

 

Há peças que fascinam tanto pela luminosidade imprimida por seu intérprete que o espectador acaba imergindo em estado de absoluto encantamento como é o caso do monólogo Alma Despejada, com Irene Ravache, uma das maiores surpresas na atual temporada dos palcos cariocas.

Um dos experimentos mais vistos do teatro virtual do período pandêmico e, agora, de volta desta vez em formato presencial. Depois do êxito nas telinhas, com muitas indicações e prêmios dos júris teatrais, no biênio de um surto que não só assustou mas apressou o fim de muitos dos humanos.

Em que a assumida despretensiosidade de sua dramaturgia, por Andréa Bassit, estabelece um clima fabular no relato da volta post mortem de uma velha senhora àquele que fora o seu último habitat antes da sua partida terminal, num quase reflexo especular daqueles dias de pânico e de morte.  

Sua dramaturgia autoral vai avançando pelos espaços memoriais da simples trajetória existencial de uma professora aposentada de português, apaixonada pela pronúncia e pelo significado das palavras, no entremeio de suas lembranças da ambiência familiar, junto ao marido, dois filhos e uma sempre fiel empregada doméstica.

Onde o convicto comando direcional de Elias Andreato confere ao espetáculo uma singular climatização emotiva aos relatos dia-a-dia de Teresa (por Irene Ravache), a personagem protagonista, “alma despejada", descortinando como uma morta, fatos de seu cotidiano enquanto viva.


Alma Despejada. Andréa Bassit/Dramaturgia. Elias Andreato/Direção. Irene Ravache/Intérprete. Agosto/2024. Fotos/João Caldas.


Em espaço cenográfico sendo desconstruído no imaginário de seu acúmulo de caixas, por Fábio Namatame, também responsável pela indumentária dia-a-dia da atriz. Sugestionando apenas a lembrança do que restou daquele apartamento, ressaltada em luzes ambientais mais vazadas, por Hiram Ravache, filho da atriz, e enfatizada por incidental e discricionária trilha  sonora (Daniel Grajew e George Freire).  

Onde uma personagem feminina conecta, em linguajar marcado pela sutileza ingênua dos lugares comuns, sob irônico bom humor, as impressões espectrais de uma mulher morta. Aparentando neste papel ser de avançada idade, em funcional coesão com a própria fisicalidade de Irene Ravache tornada, em 2024, octogenária.

Na tessitura de narrativas, do que fora visto ou ouvido pela personagem, com um sotaque mais de prevalente impessoalidade no dimensionamento sobre o convívio com os seus através do olhar armado de um ser vivo que, ali, no papel de professora, esposa e mãe, teria sido testemunha de tudo e de todos.

Das histórias em família sinalizadas como felizes, paralelas a eventos externos com envolvimento de seu marido Roberto em saga de corrupção política. Ao mesmo tempo em que mostra Teresa, na sua tipicidade de mulher classe média, deixando-se apegar ao estado de noveau-riche, sem atentar ter sido isto resultado das armações escusas do seu consorte.

Este desvio, com superficial abordagem de caráter político-policialesco, interrompendo temporariamente a atenção do espectador acostumado, até então, a uma textualidade de fluente leveza através de sua identificação com os delicados relatos triviais de uma vida comum como qualquer outra.

Ampliada, se tentarmos decifrar o sentido vocabular do nome Irene, em sua ancestralidade  grega traduzido como um significativo de paz. Irene Ravache, sendo mulher e atriz, na carismática envolvência de sua performance,  quebrando as barreiras do mais distanciado e insensível espectador.

Sem deixar, também, de ecoar as reflexivas palavras de um artesanal empenho de Elias Andreato, na simbolização metafórica de seu ideário estético, na entrega ao processo da direção concepcional para Alma Despejada : “É como se precisassemos abandonar a matéria para sermos conscientes de nós mesmos”...

 

                                        Wagner Corrêa de Araújo



Alma Despejada está em cartaz no Teatro dos Quatro, Shopping da Gávea, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até dia 29 de setembro.

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