Brás Cubas. Armazém Companhia de Teatro. Setembro/2023. Fotos/Mauro Kury. |
“Ao verme que primeiro
roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias
póstumas”. (Machado de Assis/Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881). Esta dedicatória do
escritor tornou-se um emblemático signo na trajetória ficcional do escritor, em sua passagem do romantismo para a estética realista.
Por intermédio de um dístico transcendente que, por sua
mordaz ironia e seu ceticismo provocador, fez de Memórias Póstumas de Brás Cubas uma das obras machadianas mais inspiradoras
de multiversões, ao lado de Dom Casmurro
e de O Alienista, para os palcos e para
as telas.
O que acontece, outra vez e agora, sob o dimensionamento de uma meta linguagem dramatúrgica absolutamente luminosa, por seu caráter de inventiva releitura à luz da
contemporaneidade, através da adaptação de Mauricio Arruda Mendonça e do
comando concepcional de Paulo de Moraes para a Armazém Companhia de Teatro.
Titulada como Brás Cubas, a peça está reunindo um elenco e uma equipe tecno-artística de primeiro plano o que, afinal, faz desta criação teatral uma das grandes surpresas da atual temporada nos palcos cariocas.
A começar do roteiro dramatúrgico de Mauricio Arruda Mendonça
sabendo alinhar o respeito às linhas básicas do original machadiano a um olhar
armado na contemporaneidade, o que confere ao espetáculo um funcional enfoque
da tradição literária sob um viés de modernidade.
Brás Cubas. Paulo de Moraes/Direção Concepcional. Setembro/2023. Fotos/Mauro Kury. |
E que transparece mais ainda na plasticidade da
arquitetura cenográfica (no dúplice ideário de Paulo de Moraes e Carla Berri)
frontalizada por portais altos que remetem ao século XIX e por uma parede/mural
com o típico estado de abandono e deterioração de nossos dias, aqui sendo "pichada" por
letras e números referentes à temática abordada.
Onde uma vistosa indumentária (Carol Lobato) conecta traços
de época com insinuações sutis de figurinos atemporais, tudo sempre ressaltado
por efeitos luminares (Maneco Quinderé) ancorados por variações diáfanas conectadas
à abordagem metafísica de um espaço/tempo post-mortem.
Enquanto acordes de uma trilha incidental alterativa, ao
vivo, entre Ricco Viana e Rafael Tavares, torna-a mais ousada em seu processo criativo de atualização ao inserir acordes que passam de românticos temas, ora cantorias
ora dançantes, a sonoridades funk/rap.
Possibilitando um envolvente gestual, energizado no entremeio
de uma imersiva corporeidade, fruto dos delírios de um Brás Cubas defunto, na conjunta direção de movimentos imprimida por
Patrícia Selonk e Paulo Mantuano.
Havendo que se destacar nesta instigante montagem a atuação performática
de um elenco acertado, ponta a ponta. Iniciado pela extasiante interpretação simultânea
no protagonismo titular de Brás Cubas
por Jopa Moraes e Sergio Machado. Preenchendo ambos, via admirável consistência
psicofísica e força interior, os meandros confessionais do papel.
Mais o irrepreensível presencial dramático, com teor extensivo da
saga machadiana, na espontaneidade cativante das intervenções de outro de seus personagens
célebres Quincas Borba (Felipe Bustamante).
Além do escritor Machado de Assis redivivo em cena na fiel reprodução verbalizada
e física do próprio, por Bruno Lourenço, confundindo ator e personagem.
Completando-se o brilho do sexteto atoral, nas notáveis figurações
do feminino na vida amorosa de Brás
Cubas, através do atrevido sensualismo de uma de suas amantes Marcela (Lorena Lima) e o burlesco bom comportamento
casto da outra – Virginia, por Isabel
Pacheco.
Com este Brás Cubas,
Paulo de Moraes e a Armazém Companhia de Teatro dão mais uma lição de
maturidade no entorno de um momento superior da arte teatral. Com sua vibrante
gramática cênica e seu inventário dramático, plenos de contraponto critico e sabendo, antes de tudo, como sintonizar o seu enigmático tempo ancestral com o
mundo de hoje .
“Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente
que saí quite com a vida. E imaginará mal : porque ao chegar a este outro lado
do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste
capítulo de negativas : Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado da nossa miséria”...
Wagner Corrêa de Araújo
Brás Cubas está em cartaz no CCBB, Teatro II, de quarta a
domingo, às 19h. Até o dia 01 de outubro.
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