O Lago dos Cisnes/Balé do TMRJ. David Motta Soares e Cláudia Mota. Maio/2022. Fotos/Jorge Luis Castro-Revista Dança Brasil. |
Há mais de um século, desde o sucesso da versão de 1895, pós a fracassada estreia russa em 1877, O Lago dos Cisnes se tornou um protótipo do balé romântico e da dança clássica. Neste sentido, a composição de Tchaikovsky ficou marcada por seu fator simbológico não apenas no plano musical (com a utilização do leitmotiv) e coreográfico (o rigor da técnica acadêmica a serviço do potencial sinfônico).
Estendendo seus significados aos questionamentos
psico/filosóficos da duplicidade personal, contextualizada no romance “O Duplo”
(1846), de Dostoievsky, inclusive
inspirando, na década anterior, a trama dramatúrgica do filme Cisne Negro. No
balé, o desdobramento sensorial do personagem Odete><Odile, em seu
processo de encantamento, vai de um idílico romantizar a um exponencial sensualizar,
na personificação da brancura ou do negrume de um cisne.
E é esta transmutação do eu no outro que permitiu a
mutabilidade de suas identificações, da madrasta inicial ao feiticeiro Von Rothbart, como na passagem do
feminino ao masculino, nos cisnes da polemizada versão de Matthew Bournes. Ou no complexo edipiano do Príncipe Siegfried pela Rainha Mãe, segundo a
transcrição de Mats Ek’s.
Também o seu itinerário cênico/brasileiro é significativo e singularizado pela pioneira versão integral nas Américas, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, há mais de meio século,1959, através da remontagem de Eugenia Feodorova. Sendo a última versão completa, apresentada neste histórico palco, a de 2016, em concepção comandada por Yelena Pankova e originalmente criada por ela, a partir de ligeiras variações, em 2006.
E, agora, depois de seis anos, o Balé do Theatro Municipal faz sua primeira tentativa de retomada de
um dos mais emblemáticos clássicos de seu repertório, já quase próximo do
centenário da Cia., o que acontecerá quase ao final da década seguinte. Após
enfrentar diversas crises, das financeiras aos dois anos de interdição por motivos
sanitários, pela eclosão da Covid.
Precipitada pela partida de diversos integrantes/solistas do Corpo de Baile que
optaram por companhias do exterior, especialmente europeias.
Naturalmente, isto representou uma grande perda na preservação da qualidade de sua trajetória técnica, mantida primordialmente pelo preparo,
rigoroso e cotidiano como deve ser, para suas temporadas anuais. E a questão se agravou mais
com a falta de concursos para renovação de suas vagas e substituição daqueles
que estão já fora da faixa etária ideal e não apresentam mais o mesmo
rendimento físico/artístico em suas atuações.
Com esta interrupção de dois anos pelo surto pandêmico e o engessado preenchimento por falta de novos concursos, o Balé do TM/RJ continuou arriscando-se a não fazer mais jus à sua tradição qualitativa de única companhia
clássica oficial do país. O que, claramente,
foi demonstrado pela melancólica e equivocada performance de As
Bodas de Aurora, onde o brilho dos poucos solistas entrava em
flagrante conflito com um improvisado elenco, complementado fragilmente à base de alunos da
Escola Estadual Maria Olenewa, ao lado de um decadentista suporte cenográfico e
imprecisões técnicas.
Através dos recursos de um bem-vindo patrocínio, os atuais diretores (Hélio Bejani/Jorge Teixeira) do Corpo de Baile conseguiram, finalmente, realizar este O Lago dos Cisnes, um pouco mais próximo da qualidade de percurso das remontagens deste clássico, bastante funcional mas ainda carente do alcance absoluto de um esteticismo ideal.
Desde o prólogo, mesmo assim, fica instaurado um clima quase de magia da
representação, tanto por uma maior segurança do Corpo de Baile, complementado
com bailarinos contratados para a apresentação e ainda com suporte da EEDMO,
como pela energia, consistência e desenvoltura dos solistas. Ampliado em acertado
contraponto na sustentação da OSTM, conduzida com mãos firmes pelo maestro Tobias
Volkman, com apenas um pequeno descompasso na gradação do volume sonoro do naipe de sopros, no inicio do primeiro ato, em noite de estreia.
O Príncipe Siegfried
de David Motta Soares, como já era o esperado por seu apuro profissional na
passagem pelo Bolshoi Ballet, exorbitou sua primorosa técnica e sua elegante gestualidade
em porte esguio, dando potencial leveza à sua entrega passional ao personagem. Com
uma ressonância de brilho privilegiado também na performance de Claudia Mota,
em sua imposição equilibrada e aprimorada do arquétipo dialogal Odete/Odile. Sem deixar de
falar na espontaneidade criativa e do sempre energizado domínio cênico/corporal
do Bobo da Corte de Cícero Gomes.
Mantido, ainda, neste O
Lago dos Cisnes, o senso plástico da cenografia e dos figurinos voltados à tradição,
em sintonia com o processo coreográfico a partir da criação original (Petipa/Ivanov). Dentro de uma certa
releitura técnica e com pequenas alterações no enredo, não tanto significativas
ou prejudiciais ao andamento da pulsão estética de uma obra carismática da
história da dança.
Wagner Corrêa de Araújo
O Lago dos Cisnes, com o Balé e a OSTM, está em cartaz no
Theatro Municipal/RJ, Cinelândia, de sábado 14/05 até a próxima quinta feira, 26 de maio, às 19h.
Um comentário:
O que você sabe sobre volume de som e orquestração, meu caro???
Em uma obra imponente como esta, obviamente faltou som e estilo nas cordas, de orquestra profissional, e não esta formada boa parte por estudantes, graças ao desmonte que o estado,comandado por milicianos, vem impondo ao TM.
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