SÃO PAULO CIA DE DANÇA. Amálgama, de Henrique Rodovalho. Dezembro 2020. Fotos/Charles Lima/Nicholas Marchi. |
Como manter acesa a chama na peculiaridade das artes cênicas sem o elemento presencial palco-plateia que arrasta em processo ritualístico, no entremeio da expressão estética e do élan emotivo, atores, bailarinos, músicos e espectadores? Ou como atuar em área de criação artística, agora potencialmente tornada de risco por suas perigosas proximidades físico/corpóreas, na instantaneidade de contágio exterminador no ar?
Mas, aos poucos, estão sendo desveladas soluções ainda que em
compasso de emblemáticas alegorias diante do desmoronar de sustentáculos
estéticos seculares. Enquanto os palcos são
novamente ocupados por bravos defensores do ideário e do oficio coreográfico,
as plateias indecisas continuaram condenadas à ausência física e à impossibilidade do
aplauso.
Mesmo com a fissura deste carismático ritual interativo
palco/plateia, neste patético 2020, foram aparecendo as primeiras tentativas,
ainda que, em sua maioria, quase sempre reiterativas em suas saídas via
recursos áudio virtuais, na expressão simbólica do isolamento social e do
distanciamento físico.
E a primeira grande surpresa nas plataformas digitais foi a
disponibilização de espetáculo construído sob prescrições sanitárias, diante de
enfrentamento coreográfico das limitações de um tempo de pânico, pelas cias 1 e
2 da NDT-Nederlands Dans Theater,
em energizada lição gestual para despojada caixa cênica ressaltada por efeitos
luminares. Ora na simbológica titularidade - Standby - remissiva a um tempo de espera, numa provocativa
releitura, à luz da contemporaneidade, do vocabulário clássico por Paul Lightfoot, ora na metafórica alusão
personalista a um momento de despedida em She
Remembers, de Sol Léon.
Por outro lado, destacaram-se as coreografias de ambiência colaborativa com paisagens naturais, por vezes em exponenciais componentes cênicos. Como Dance of Dreams, criação coletiva do San Francisco Ballet, tendo sua culminância no terraço de um arranha céus, sob o leitmotiv de paixão e morte, no antológico score sonoro de Bernard Hermann para o thriller Vertigo (A. Hitchcock). E no visceral experimento coreográfico Silent Burn Project da Akram Khan Company, o capítulo conclusivo Our Animal Kingdom, tributo sensorial ao meio ambiente em representação mimética ao ar livre, com pulsão de sacralidade, ao privilegiar um recorte de animação coreo/fílmica para diferentes seres da fauna terrestre.
STANDBY. Nederlands Dans Theater. Julho 2020. Foto/ Pieter Offringa |
Nossos criadores também vem incursionando, apesar dos
pesares, pelos caminhos da busca
investigativa para enfrentar, com garra, coragem e espírito inventivo, o
desafiante panorama de perigo e caos.
A São Paulo Cia de
Dança não se deixou imobilizar em momento algum, reproduzindo nas redes virtuais
obras de seu repertório, num catalizador mix
clássico-contemporâneo. Auspiciosas também
as surpresas de sua incansável mentora mor Inês Bógea em inéditos produtos coreográficos,
via lives na sua sede acadêmica, nos Teatros São Pedro e Sérgio Cardoso e em diferenciais ambiências metropolitanas.
Em especial, no lúdico
e reflexivo encontro de linguagens artísticas, sob um provocador dimensionamento
concepcional coreo/cinético, em Amálgama,
de Henrique Rodovalho. Fazendo interagir corporeidade, movimento, música,
plasticidade, no sensorial dialogo estético entre os bailarinos e 23 obras primas do
acervo, no Museu de Arte Contemporânea da USP.
Enquanto Alex Neoral e sua Focus Cia de Dança, através de Corações
Em Espera, praticamente inaugurava, em terras cariocas, as proposições pelas
redes virtuais de preciso intercâmbio de simultaneidade coreográfica, com seus
sete bailarinos em solos de similaridades gestuais e coincidente paisagismo cênico
de âmbito domiciliar, a partir de diferentes sítios urbanos em abrangência nacional.
Fundamental foi, do Rio a Nova York, a relevância do papel de identidade feminina, nas propostas sensitivas, desenvolvidas sempre com raro apuro, em
realizações conjuntas e individuais, pelo múltiplo talento das artistas Marina
Salomon e Regina Miranda, nos seus tributos ao centenário de Clarice Lispector.
Valendo ainda a extensão de outras performances de vídeo-dança,
com sólido sustento num teatro coreográfico de contestação e perplexidade
contra quaisquer formulações obscurantistas, na peculiar psicofisicalidade de outros
bailarinos/atores/coreógrafos, como Denise Stutz, Márcio Cunha e Tiago Oliveira.
No fechamento de um conturbado ano cultural, a má captação fílmica
do Quebra-Nozes pelo Ballet du Grand Theatre Geneve deixou a desejar na sua carência de visão crítica em soturna descaracterização da releitura de um clássico
do período natalino. Bem ao contrário, da surpreendente transcrição com sotaque
fassbinderiano do Otello, pelo Balleto di Roma, ambos na temporada internacional
da Dellarte 2020, de um primeiro ano em que esta não
aconteceu ao vivo e a cores.
Mas vale ressaltar também aqui o simbiótico significado do último segmento da moção virtual de integrantes do Ballet do Theatro Municipal/RJ, dentro da série Libertus apresentada por Ana Botafogo. Onde
os bailarinos Rodrigo Negri e Priscilla Mota, em incisiva gestualidade, dão em Valsa no Asfalto (com coreografia do
primeiro) reflexivo recado, para tempos tanto de incerteza sanitária quanto de
carente dignidade política, em emotiva exploração coreográfica sob processo interativo
com um carismático espaço público. Além, é claro, do contagiante referencial
pandêmico-carioca do vazio de uma autóctone passarela da cultura popular
brasileira...
Wagner Corrêa de Araújo
VALSA NO ASFALTO. Rodrigo Negri e Priscilla Mota. Dezembro 2020. Foto/Léo Queiroz. |
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