HEITOR VILLA-LOBOS. Foto intimista. Museu Villa-Lobos/divulgação. |
Entre os iniciadores da música popular brasileira vale
lembrar o decisivo papel exercido na sua formatação estética, entre os séculos
XIX e XX, por compositores como Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.
Este último conseguiu estabelecer um diferencial com suas releituras de três variados gêneros de dança urbana – o tango, a valsa e o maxixe em formas brasileiras – sendo o músico mais solicitado nas reuniões familiares, nos bailes da sociedade, além de seus habituais acompanhamentos instrumentais, ao piano, nos cinemas e teatros cariocas da Belle-Époque.
Quanto a Chiquinha Gonzaga há que se considera-la a precursora legítima do samba enredo, pois foi quem primeiro escreveu música praticamente destinada ao carnaval. Sua composição “Ô Abre-Alas”, de 1889, tornou-se um clássico por sua função antecipadora como obra de particularidade pensada para os folguedos carnavalescos.
Mas o samba característico só iria surgir mesmo em 1917, numa antológica gravação fonográfica de “Pelo Telefone”, de Ernesto dos Santos popularmente
conhecido como o Donga. Aparecendo, sequencialmente, grupos primitivos de
sambistas tais como o Grupo do Coringa, o Grupo Carioca e a orquestra de Chico
Bóia.
Começava, então, um novo capítulo de importância capital na
trajetória de nossa música de raízes populares. Era o princípio da MPB como criação artística autônoma,
original e de infinita riqueza melódica e rítmica. E, numa eclosão de gêneros
novos, indo desde a valsa urbana e a valsa sertaneja à seresta, além da marcha rancho
antecessora do samba, o baião, o samba-canção e o samba de morro.
CHIQUINHA GONZAGA. A última foto (1932), aos 85 anos. |
Abrindo-se, ainda, a era de exportação de nossos ritmos e
melodias populares que, especialmente através do sucesso de Carmen Miranda,
alcançou as telas mundiais via Hollywood. Cerca de 30 anos depois, em
energizado surto inventivo, era a hora e a vez da Bossa-Nova, movimento capaz
de conferir à MPB um status de som universal, pelo alcance de sofisticada modernização
das sonoridades do samba tradicional.
Com Villa-Lobos, o Brasil decretaria a sua completa
independência musical no chamado gênero erudito. Primeiro compositor brasileiro
a tomar consciência da enorme potencialidade das raízes folclóricas e
indigenistas, ele transcenderia as bases
acadêmicas da escrita musical na riqueza exploratória do colorido e do impulso
rítmico das formas musicais populares do País.
Foi um momento de total libertação da sintaxe e do conteúdo
sonoro que, até então, tinham sido imprimidos estruturalmente às partituras composicionais
pelo olhar secular/rebuscado dos europeus, então, os verdadeiros detentores
da estética musical.
Villa-Lobos valorizaria não apenas aqueles acordes surgidos
de combinações estritamente musicais, mas também sabendo privilegiar o purismo das
sonoridades naturalistas. Ao compor o “Uirapurú”,
em 1917, procurou reproduzir o barulho primitivo e dissonante das florestas
tropicais brasileiras, inclusive recorrendo à tipicidade de instrumentos indígenas
o que, à época, soou como algo ousado, inusitado e desbravador.
Teve também sua fase de exaltado nacionalismo em composições
destinadas a despertar nos brasileiros o sentido de cidadania e de
nacionalidade como o fez, por exemplo, em “Invocação
em Defesa da Pátria” e “Descobrimento
do Brasil”. Referencial ainda foi
sua obra didática para a infância e juventude, incentivando a formação de
grandes corais populares, e a sua singular releitura contemporânea do barroco bachiano.
Para caracterizar bem Villa-Lobos basta dizer que influenciou
toda uma geração não só de compositores pátrios além de impressionar autores do relevo de Olivier Messiaen que chegou a declarar “serem os Choros de Villa-Lobos uma das mais
originais criações de um artista contemporâneo”.
De Villa-Lobos à vanguarda e à nova música popular a
trajetória estava aberta e seria apenas um passo, seguido pela afirmativa
imposição, num plano internacional, da criação brasileira, enaltecendo a busca
inventiva no oficio de compositor, seja no campo erudito como em incisivas
veredas do cancioneiro popular.
Com seus mentores Caetano Veloso e Gilberto Gil, o tropicalismo acabaria, a partir da
segunda metade do século, sendo um dos mais surpreendentes fenômenos da música
popular brasileira com sua visão integrativa da linguagem artístico-musical.
Em conexão, simultânea e sem preconceitos, de um Brasil
tropical/primitivo a um Brasil tecnocrático da cultura e da comunicação de
massas. O Brasil urbano e da palhoça, o Brasil de Iracema e de Ipanema, o
Brasil da piscina burguesa e da água azul de Amaralina.
Da modinha imperial, languida e lírica, à visceral
interatividade dos acordes em compasso virtual foram mais de dois séculos nos
quais muitos caminhos se cruzaram num mix de pulsões nativistas e futuristas.
Capazes, assim, de inserir o Brasil musical na era das viagens
pelos espaços siderais e pela mente, tornando-o um dos sustentáculos de uma
cultura planetária com o olhar armado na contemporaneidade.
Wagner Corrêa de Araújo
TROPICALIA-PANIS ET CIRCENSIS. Capa do disco. 1968. Foto/divulgação. |
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