A MÚSICA DOS OLHOS : UMA BREVE TRAJETÓRIA DA TRILHA CINEMATOGRÁFICA

ALEXANDER NEVSKY. S. Eisenstein, 1938. Trilha de S. Prokofiev. Foto/Divulgação.


Veja o  filme, leia o livro, ouça o disco. Embora o cinema inspirado em obras literárias atraia maior legião de fãs que correm atrás dos livros transformados em roteiros para a tela, as trilhas sonoras também ocupam um lugar à parte na preferência de muitos espectadores, não necessariamente integrantes do universo musical.

A música sempre esteve indissoluvelmente ligada à trajetória histórica do cinema. Desde as primitivas experiências de Meliès e Lumière já se sentia a necessidade premente de cobrir o silêncio das imagens através de um acompanhamento musical, com músicos solistas (na maioria das vezes ao piano) ou através de pequenos conjuntos orquestrais.

Neste repertório inicial, populares temas musicais de compositores românticos, de Rossini a Johann Strauss Jr passando por Offenbach, num desfile de galopes, valsas, marchas e aberturas. Mas a primeira partitura concebida especialmente para o cinema apareceu, em 1894, nos pequenos filmes denominados “Pantomimas Luminosas”, de Émile Reynaud, constituindo-se de algumas variações para piano, por Gaston Paulin.

Durante um longo período, o problema maior foi o da sincronização de música/imagem. Era tão complexo isto que o francês Grimoin Sanson chegou a sugerir a projeção em primeiro plano da batuta de um maestro, orientando assim os músicos que ficavam sempre em posicionamento inferior ou lateral à tela. E aí vem um detalhe pitoresco, o aparecimento de guias musicais para o cinema, com indicação de trilhas sonoras ideais para as cenas de amor, riso, violência, crime ou morte.

Alguns curiosos exemplos : catástrofe (abertura Tannhäuser, de Wagner), cena dramática ("Sinfonia Patética", de Tchaikovsky), atmosfera solene (abertura Oberon, de Weber), cena sinistra (“Quadros de uma Exposição”, Mussorgsky/Ravel), aparições mágicas (“Uma  Noite no Monte Calvo”), lutas ("Dança Eslava, opus 15", de Dvorak), paixão amorosa ( Reverie, de Schumann).

Outra novidade surgida foi a de partituras incidentais montadas à base de fragmentos de vários autores, numa autentica salada musical, sem qualquer critério estético no entremeio de estilos e de épocas. E o primeiro compositor importante a escrever para o cinema foi Saint-Saëns, no filme “O Assassinato do Duque de Guise”, realização de Henri Lavedan, em 1908.

O CANTOR DE JAZZ. Al Jolson no primeiro filme sonoro, 1927. Foto/Divulgação.

A partir daí, a adesão dos compositores foi maior. Mas a dessincronização sons/imagem continuava a dar muita dor de cabeça, além de sugerir loucas imagens se os acordes ou os ruídos viessem atrasados. Quando, em 6 de outubro de 1927, estreou “O Cantor de Jazz” nascia, então,  o cinema falado. Sendo esta uma de suas primeiras grandes revoluções, não se separando mais música e cinema e surgindo enfim a trilha sonora exclusiva para a tela.

Chegando esta quase a ser considerada como a música sinfônica popular de nosso tempo, numa carona comum a partir do sucesso comercial de muitos filmes. Afinal, a trilha sonora passou, às vezes, a se aproximar do mesmo peso de grandes obras musicais, com estilos de escrita composicional que vão da linguagem do romantismo às mais sofisticadas tecnologias electro acústicas impulsionadas a partir do século XX.

Basta ouvirmos atentamente partituras elaboradas pelos precursores deste gênero, na maioria músicos europeus de formação erudita, obrigados pelos conflitos pré e pós Guerra Mundial a migrarem para a América do Norte. Desligando-se das imagens projetadas e concentrando-se nas intervenções musicais é como se, na verdade, estivéssemos numa sala de concertos.

Um exemplo clássico é a partitura de Max Steiner para “E O Vento Levou”, de 1939, com seus leitmotivs românticos e dramáticos. Sem deixar de citar as inspirações sinfônicas de E.W. Korngold, Dimitri Tiomkin, Miklós Rózsa, Franz Waxman, seguidos neste percurso por Maurice Jarre, Elmer Bernstein e Alfred Newman, para chegar à originalidade epigonal de autores como Bernard Herrmann, Nino Rotta, Ennio Morricone, Michel Legrand, entre muitos outros.

Havendo ainda um outro filão de compositores de reconhecido mérito histórico, com algumas raras mas bem sucedidas incursões em obras autônomas para trilha cinematográfica como S.Prokofiev, D.Shostakovich, A.Honneger, A.Copland. E, aqui, Villa-Lobos na preciosa colaboração para o “Descobrimento do Brasil”, 1937, de Humberto Mauro.

Há que se lembrar também do substrato sonoro composto ora por excertos sinfônicos, ora por temas eletrônicos ou simplesmente pelos uso antológico de canções. Uma tendência fragmentária tendo como base principal composições curtas, especialmente do repertório vocal da MPB como aconteceu em grande maioria nas produções brasileiras. Com exceções é claro através de mais sofisticado uso dos recursos sinfônico-cameristicos em trilhas independentes, por exemplo,  de Wagner Tiso e John Neschling.

De volta à ancestralidade das experimentações da sétima arte, naquele momento em que ainda se fazia uso recorrente de músicos nas sessões cinematográficas, continuava prevalente o desafio da incerteza de que haveria um dia a inclusão de acordes sonoros junto aos fotogramas da  película fílmica.

Mas foi, exatamente ali, em plenos anos 20, na fase ainda dos inventos no entorno das técnicas fílmicas de imagem e de som, que o pioneirismo da teórica, crítica de cinema e mentora de experimentos vanguardistas - a francesa Germaine Dulac - foi capaz de fazer a previsão da essencialidade obrigatória da trilha cinematográfica titulando-a, emblematicamente, como "a música dos olhos".

                                             Wagner Corrêa de Araújo


O DESCOBRIMENTO DO BRASIL. Humberto Mauro, 1937. Música de Villa-Lobos.

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