LA TRAVIATA. Filme de Franco Zefirelli. 1982. Foto/divulgação. |
Para o coreógrafo Maurice Béjart, o Século XVIII teve o teatro como dono absoluto, o Século XIX foi a era da ópera e o Século XX levou a dança à culminância.
Foi entre as duas últimas décadas da vida de W.A. Mozart (1756-1791) onde surgiriam os
primeiros grandes campeões de um repertório operístico que se estendeu até os
nossos dias. Passando por seu apogeu criativo no século seguinte quando a ópera
ocupava, em caráter lúdico-artístico popular, o espaço que seria a posteriori do cinema.
Havia, então, simultâneas estreias de espetáculos líricos e
certos compositores chegaram a números recordes nos teatros do mundo inteiro.
Como Bellini, Donizetti e Rossini
escrevendo tantas óperas por encomenda que o sucesso fácil tornou-se temporário
e acabou por eliminá-las definitivamente
do repertório em período relativamente curto. No Século XIX, ir à ópera era o
equivalente, em termos de diversão, de ir ao cinema hoje. Havia óperas e operetas para todos os gostos e, muitas vezes,
os compositores faziam concessões para alcançar um público cada vez maior.
A primeira ameaça a este estado de coisas começou com o drama
lírico de Richard Wagner trazendo uma
nova linguagem e uma verdadeira revolução na concepção do espetáculo
operístico. O próprio Giuseppe Verdi,
então o ídolo absoluto da ópera italiana na segunda metade do século, acabou
cedendo no seu modo de encará-la esteticamente e escreveu um Otelo e um
Falstaff mais dramatúrgicos, que surpreenderam de vez o público e balançaram a
crítica da época.
Mesmo com o surgimento de outro nome mais mítico, já no
início do Século XX, o prestígio absoluto da cena lírica já estava sendo
abalado pelo fenômeno do cinema. Até a década de 20, quando a sétima arte
começa a se tornar definitivamente arte de consumo, a ópera ainda teve seu
grande público que acorria curioso para ver as ainda inúmeras estreias do gênero cênico-musical. Giacomo
Puccini teria sido, assim, o último operista ao inteiro gosto deste público.
Com a inventividade deflagrada pelo modernismo musical, o velho
estilo e a fórmula tradicional do bel-canto foram questionados e já nas
primeiras décadas começaram a diminuir as temporadas dos teatros dedicadas
exclusivamente à ópera. Com a gradual substituição de seus repertórios por
espetáculos mais leves como operetas, comédias musicais e, alguns destes, até
mesmo por filmes silenciosos acompanhados por um pequeno conjunto orquestral.
Começava, aos poucos, a se delinear a era do cinema que, rapidamente, iria se transformar
numa arte de multidões, num nível próximo ao que tinha sido a ópera no período anterior.
O cinema, no entanto, não esqueceria a ópera como
substitutivo na preferência popular e várias delas foram para a tela em
adaptações compactas ou filmagens diretas, mas ainda bastante precárias, de
espetáculos ao vivo. Mas todas estas tentativas redundavam em habitual fracasso
comercial e desinteresse do público, na condenação da crítica especializada e na própria objeção dos
músicos e cantores envolvidos nestas produções para as telas.
A FLAUTA MÁGICA. Filme de Ingmar Bergman. 1975. Foto/Divulgação. |
Esta situação perdurou até os anos 70, cometendo até algumas injustiças e imperdoáveis ausências de registros documentais. Como as performances de Maria Callas limitadas a algumas filmagens de concertos em Hamburgo e Colônia e à insegurança de uma transmissão televisiva, com certo amadorismo, de um segundo ato da Tosca, no Convent Garden, Londres 1964, o único legado de atuação cênica, como cantora, da emblemática carreira da soprano. Alguns anos mais tarde, ela protagonizaria uma Medéia, no filme de Pasolini, apenas como uma excepcional atriz dramática e sem qualquer intervenção que remetesse à sua celebrada trajetória de intérprete lírica.
Nos primeiros tempos do Cinema Mudo, houve uma tendência de
aproveitamento dos enredos das grandes óperas, favorecida por uma certa
grandiloquência muito em moda nos filmes da época. Carmen ou La Traviata
eram as mais adaptadas, de forma sintética utilizando-se inclusive arranjos
instrumentais para piano, órgão ou pequenas orquestras. Onde constatava-se a primeira razão
alegada para o insucesso da ópera no cinema tendo como base o fato de que o
espetáculo lírico era manifestação de peculiar substrato estético, ou seja,
tornava-se impossível filmar uma grande ária em sua integridade, fazendo prevalecer
a técnica cinematográfica com sua mais breve sequencialidade narrativa e seus instantâneos
cortes.
A outra rejeição vinha
dos amantes fanáticos do bel-canto, impossibilitados da ovação presencial em
cena aberta, perdendo o teatro lírico, com esta ausência, parte substancial dos
caracteres de féerie que arrastam,
num mesmo impulso, espectadores e cantores em delírio de música, vozes e dramas
humanos teatralizados. Para as já grandes plateias de cinema, já desacostumadas
com o tradicional espetáculo ao vivo, assustava dispender duas horas ou mais numa sala escura
ouvindo extensas árias e duetos e o
desenrolar de um enredo na tela, ao contrário do palco, sem qualquer intermezzo ou entreatos.
Mesmo assim, numa variante ascendente da evolução operística,
as operetas e os musicais foram tomando seu lugar, através do melhor dimensionamento
de equilíbrio entre leves histórias amorosas, no entremeio de texto falado,
canto, coreografia e música. Foi a era de ouro da opereta americana e seus ídolos,
entre outros, Deanna Durbin, Maurice Chevalier, e a dupla Nelson
Eddy / Jeannete Macdonald. Gênero de grande apelo popular até a eclosão da Segunda Grande Guerra,
estendendo-se até os anos cinquenta quando cedeu lugar aos musicais.
Só a partir do final dos anos 50, cineastas conhecidos como Roberto Rosselini se aventuraram em
transcrições da Traviata, dos Contos de Hoffman e até de uma obra contemporânea Jeanne au Bucher, texto de Paul
Claudel e música de Arthur Honneger.
Abriam-se as portas para Luchino Visconti e Franco Zefirelli migrando de suas
notabilizadas régies nas principais
casas de ópera europeias para as surpreendentes versões cinematográficas dos anos 70
em diante.
Antecedidas pela possibilidade de transformar um ópera em
outra obra priorizando a estética cinematográfica, como foi o caso da Carmen
Jones, em 1954, por Otto Preminger. Quase jazzística, com entrecho contemporâneo,
inspirado livremente na música de Bizet e na novela de Prosper Merimée.
Iniciava-se um novo tempo no cruzamento de duas linguagens
artísticas, em releituras gerando verdadeiras obras primas independentes da rigorosa fidelidade ao original. Como a Flauta
Mágica de Mozart/Bergman, com sua
incisiva alternância da visão do palco e das reações da plateia. Ou como a bem
sucedida experiência conjugando dança, canto lírico, teatro e cinema em West Side Story, de Leonard Bernstein por Robert
Wise. Ou do incrível uso, com um referencial de recitativo, do meio termo entre canto e fala modulados
musicalmente sob leitmotivs por Michel Legrand e
pela cinematografia de Jacques Demy,
através de uma quase ópera - Os Guarda Chuvas do Amor.
E, dos anos 80 ao terceiro milênio, com as novas tecnologias,
indo do videocassete ao blu ray, para chegar às redes virtuais,
em novo surto de ampliação de público, fissurando a noção habitual de ser um espetáculo
elitista, atraindo a atenção dos diretores teatrais e constituindo-se, enfim,
num inegável renascimento da velha paixão pela ópera.
Wagner
Corrêa de Araújo
WEST SIDE STORY. Filme de Robert Wise.1961. Foto/Divulgação. |
Um comentário:
Bravissimo artigo, Wagner.
Parabéns!!!
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