Carmen/Ópera de Bizet. Julianna Santos/Concepção Direcional. Julho/2023. Fotos/Daniel Ebendinger. |
Das páginas novelescas de Prosper
Merimée à transposição operística de Georges
Bizet, Carmen vem inspirando
diferenciais releituras e provocantes resssignificados para a clássica personagem
de uma cigana, mitificada como símbolo precursor dos embates pela afirmação do
feminino.
Das adaptações cinematográficas, divididas entre um
dimensionamento dúplice de fidelidade seja pelo original romanesco seja pela
sua formatação em ópera, indo de Lubitsch
a Godard, de Rossi a Saura, passando
pela instigante concepção dramatúrgica de Peter
Brook ou pela transgressora visão cênica de Gerald Thomas, além das
inúmeras versões de pura dança ou de híbrido teatro coreográfico-musical.
Marcada, nas últimas décadas, por idas e voltas na cena
lírica do Municipal, sendo algumas das mais marcantes a direção concepcional de
Sergio Britto nos anos 80 ou uma mais recente, por Allex Aguilera um ex-integrante
de La Fura dels Baus. E, agora, na artesanal
direção cênica de Julianna Santos, mais conectada no respeito à tradição sob um sutil
sotaque de modernidade.
Onde se estabelece um confronto com os multifacetados figurinos de época (no capricho detalhista de Marcelo Marques, um completo expert em trajes para ópera) caracterizando ora militares ora ciganos, ao lado de recortes cotidianos de cigarreiras, campesinos e crianças, junto a indumentarias típicas flamencas ou de instauração da tauromaquia.
Carmen, de Bizet. Solistas, Coro, Balé e Orquestra do TMRJ. Julho/2023. Fotos/Daniel Ebendinger. |
Sem carregar uma arquiteturação realista do paisagismo
cenográfico, no sugestionamento de simbologias metafórico-conceituais nas diferenciais ambientações dos quatro atos. Como se, ali, o leitmotiv do tema do destino se
tornasse sensorialmente visível numa caixa cênica preenchida apenas por
alguns elementos materiais (como mesas e bancos transmutados simultaneamente de uso
militar a tablado flamenco).
Em supreendente plasticidade pictórica de Natalia Lana, desta
vez ampliando suas incursões estético-cenográficas do palco dramatúrgico ao
universo musical da ópera, potencializadas nos belos efeitos luminares
claro/escuro de Paulo Ornellas. Tornando-se
perceptível a unicidade da proposta diretorial/cênica de Julianna Santos no
alcance de uma psicofisicalidade performática, tanto nas atuações vocais dos
solistas como na sua extensão gestual aos encontros entre estes e os grupos corais, adulto e infantil.
Quanto à Orquestra
Sinfônica/TM, esta voltando a ter o necessário requinte, como suporte de
superação para tempos difíceis vividos, na complementação de seus naipes com experientes
músicos, estimulados pela amadurecida regência de seu maestro titular (Felipe
Prazeres) na captação dos efusivos acordes romântico/hispânicos que a partitura
exige.
Além de uma destacada participação incidental do Corpo de
Baile/TM (com o acerto coreográfico de Hélio Bejani) retomando o antigo hábito
francês de incluir, em sua integralidade, partes composicionais baléticas
nas performances operísticas. Onde também o já tão conhecido quarteto cantante protagonista, mais uma vez, mostra o bravo
desempenho de quem domina, musical e dramaticamente, os seus personagens
A começar da mezzo
soprano titular Luisa Francesconi numa adequação absoluta ao seu papel,
tanto no físico como na potencialidade vocal. Já na primeira grande ária, em
notável crescendo, soltando progressivamente a voz, plena de convicta passionalidade
em momentos célebres como a Seguidilha ou
a Habanera.
Há que se destacar também as luminosas modulações tonais na tessitura vocal de tenor lírico, no caso de Eric Herrero e seu sempre
carismático Don José, na culminância
romantizada que imprime, por exemplo, à
antológica ária "La fleur que tu m’avais
jetée”.(Com um recado à parte, para
que, como um meritório diretor artístico, programe o devido tributo ao centenário de
morte de Puccini em 2024).
Ou no sensitivo dueto "Parle moi
de ma mère" com a soprano Flávia
Fernandes, na suavidade estoicista do
gestualismo alcançado por ela e na pureza angelical da vocalização de sua Micaela, na romanza "Je dis que rien ne m'epouvant". Sem deixar de ressaltar o presencial
masculino sempre impositivo do Escamillo,
pelo barítono Leonardo Neiva, no alcance de uma ideal ressonância
interpretativa para seu Torero na assobiável "Chanson du Toréador".
Certa vez, ao entrevistar Antonio Gades, perguntei como ele via suas duas Carmens, a fílmica e a teatralizada no
palco. Relembro aqui uma resposta que, certamente, há de servir como
referencial especular para o significado simbólico desta remontagem de uma
ópera secular que, além do rico substrato musical, revela um reflexivo processo de projeção
deste icônico personagem feminino nos
dias de hoje.
“O filme trata de uma
assimilação ou quase possessão dos intérpretes de Carmen pelos personagens. Mas
para o teatro, eu quis uma coisa totalmente distinta: projetar a essência desta
Carmen no que ela tem de mais fundo e mais autêntico...”
Wagner
Corrêa de Araújo
A ópera Carmen está em cartaz no TMRJ/Cinelândia, em horários diversos, desde sua estreia em 14/julho.
Nos dias 16, 23 e 30, às 17h; 21, 26 e 28, às 19h. Até 30/07.
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