O ELIXIR DO AMOR : BELA MONTAGEM ABRE PROMISSORA TEMPORADA LÍRICA NO MUNICIPAL CARIOCA

O Elixir do Amor. Ópera/TMRJ. Menelick de Carvalho/Direção Concepcional. Abril/2024. Fotos/Daniel Ebendinger.


Com o Elisir d‘Amore, de Gaetano Donizetti, um  exemplar modelo na tradição da opera buffa italiana, inicia-se a temporada lírica 2024 do TMRJ. Que promete trazer outros títulos destacáveis como o Tríptico, na comemoração do centenário da morte de Giacomo Puccini, além da Rusalka, de Antonín Dvorák, uma obra-prima do repertório tcheco e raramente presente em nossos palcos.

Sem deixar de mencionar a apresentação da primeira ópera composta por Puccini – Le Villi – que completa o tributo ao  compositor, além da estreia de mais uma das mais que bem-vindas criações operísticas sob sotaque de brasilidade, por João Guilherme Ripper, desta vez com Candinho, numa homenagem a Candido Portinari.

Gaetano Donizetti, ao lado de Vicenzo Bellini e de Gioacchino Rossini, foi um dos mais ativos compositores operísticos italianos da primeira metade do século XIX. O Elixir de Amor, de 1832, sua mais popular ópera cômica, antecedeu sua mais famosa ópera dramática Lucia de Lammermoor, de 1835.

Com libreto de Felice Romani, é ambientada no meio rural e mostra o embate amoroso travado entre Aldina, uma rica proprietária, e seus dois pretendentes, Nemorino, um tímido aldeão, e Belcore, um sargento de passagem por ali com seu pelotão. Sendo tudo resolvido pelo charlatão Dulcamara e sua falsa poção mágica, capaz de produzir os mesmos fluidos da paixão lendária de Tristão e Isolda.


O Elixir do Amor. Ópera/Gaetano Donizetti. TMRJ. Felipe Prazeres/Maestro Titular. Abril/2024. Fotos/Daniel Ebendinger.

A montagem do Municipal carioca, embasada na tradição do original, acontece em dois atos que preenchem a caixa cênica do palco com os bonitos cenários e figurinos de Desirée Bastos, inspirados pela conexão do orientalismo turco ao provincianismo franco/italiano.  

Com assumido conceitual estético de plasticidade pictórica no entorno da ingenuidade e pureza do design de uma peça infantil, caracteres sempre acentuados nas variações focais e pelos vazados efeitos luminares de Paulo Ornelas, no sugestionamento de um quadro cênico primaveril.

Onde a Orquestra Sinfônica do TMRJ, no seguro comando por Felipe Prazeres, procura se equilibrar nas indicações de uma partitura dimensionada entre a energia dos acordes rítmicos e a leveza dos andamentos líricos. Sabendo aproveitar bem as intervenções do corpo Coral preparado pelo seu maestro Edvan Moraes, mesmo com ligeiros desencontros entre um grupo e outro.

Tudo acompanhado por uma cada vez mais reveladora concepção cênica/direcional de Menelick de Carvalho, sabendo quebrar aquela antiga rigidez na postura gestual dos intérpretes da grande ópera e que fazia, usualmente, prevalecer o canto em detrimento de uma boa atuação atoral.

Com expressiva performance entre a comicidade e o lirismo tanto do elenco protagonista como nas movimentações dos integrantes do Coro, desde seu oficio de camponeses numa fazenda como na festa comemorativa de um casório, aproveitando-se aqui a mesma ambiência cenográfica nos dois atos.

Havendo que se notabilizar a escolha de um acertado protagonismo a começar da soprano Michele Menezes (Adina) no magnetismo de um talento ascendente com seu fraseado espirituoso e sua elegante coloratura. Seguido pela mais ocasional participação de outra soprano Fernanda Schleder, no seu simpático presencial e na convincente vocalização da personagem Gianetta.

No staff masculino, o barítono Vinicius Atique com o brio de seu talento vocal imprimindo ao sargento Belcore a animada configuração de um convicto militar e de um atrevido amante.

Intermediado pela chegada triunfante e as entradas explosivas do prestidigitador Dulcamara anunciando seu elixir milagroso (Udite, udite, o rustici), na envolvência da maturidade como baixo/barítono de Savio Sperandio.

Enquanto Anibal Mancini exibe um potencial registro intermediário de tenor lírico desde a aria Quanto é bella à exuberância vocal alcançada com a romanza Una Furtiva Lacrima. Direcionando-se para o epílogo feliz de uma opera buffa que, na despretensão de uma montagem de deliciosa fluidez, promove um carismático encontro palco/plateia...

 

                                                    Wagner Corrêa de Araújo

 

O Elixir do Amor está em cartaz no TMRJ, desde o ultimo dia 19, estendendo-se, em horários diversos, entre quarta, sexta e sábado, até o domingo 28 de abril.

RAUL SEIXAS – O MUSICAL : SOB UMA DRAMATÚRGICA "METAMORFOSE AMBULANTE" DE UM ÍCONE DO ROCK BRASILEIRO

 

Raul Seixas-O Musical. Direção/Dramaturgia/Leonardo da Selva. Com Bruce Gomlevsky. Abril/2024.Fotos/Dalton Valério.


Quase duas décadas após o exponencial êxito de sua versão performática de Renato Russo, Bruce Gomlevsky incursiona - em Raul Seixas - O Musical - por uma diferencial concepção dramatúrgica no entorno da vida e da obra de um dos mais emblemáticos nomes do rock brasileiro.

A partir de um belo ideário autoral e direcional de Leonardo da Selva, inspirado não só no texto das canções como nos diversos manuscritos do cantor - compositor, a peça se estrutura num processo investigativo livre do costumeiro registro cronológico e sequencial do musical biográfico.

O que lhe confere uma originalidade específica no dimensionamento da personalidade de Raul Seixas em narrativa imaginária sobre um dos possiveis atravessamentos solitários pela madrugada, na intimidade de seu estudio residencial, quando, então, são relembradas cerca de vinte de suas composições.

Intermediadas por seu pensar existencial, como artista e cidadão, sempre conectado com a problemática mundial voltada às vivências de seu próprio país, como um dos pioneiros do gênero roqueiro de marcas nacionalistas, ao lado de um caracter comportamental que o conceitualizou sob o signo de um “maluco beleza”, lembranças certamente originárias do Baú do Raul.


Raul Seixas-O Musical. Leonardo da Selva/Direção Concepcional. Com Bruce Gomlevsky. Abril/2024. Fotos/Dalton Valério.

O que possibilita conhecer o lado visionário de Raul sonhando ser reconhecido também como escritor, o que aconteceria mais tarde na prevalência da trajetória literária de seu parceiro letrista Paulo Coelho, enquanto caberia a Seixas o ofício reconhecido de um roqueiro desbravador de novos caminhos.

Inicializados em dúplice memorial, no legado do rol da fama, pela transgressiva temática de suas primeiras parcerias  com Paulo Coelho - “Nasci Há Dez Mil Anos Atrás” ou “Sociedade Alternativa”, seguidas pela libertária exclusividade composicional de Raul levando, inclusive, à censura dos anos ditatoriais, no desafio de letras “Como Vovó Já Dizia”.

O que potencializa a envolvência de um enredo dramático/direcional (Leonardo da Selva) que transmuta o tema das canções de Seixas num compasso imaginário e, ao mesmo tempo realista, em proposta documentária/musical na sua junção de passagens da vida de artista com reflexões cotidianas do seu processo de criação.

Tudo aqui depurado pela solidez do tratamento sonoro dado por Gabriel Gabriel que é correspondido pela absoluta funcionalidade de uma banda, integrada por Ziel de Castro (guitarra), Maninho Bass (baixo), Júnior Monteiro (teclados) e Carlos Oliveira. (bateria), além da participação da cantora Sadili.

Dando vez a incidentais intervenções de acordes da lavra de Little Richard, Elvis Presley e Beatles, em arranjos para cordas, sopros e vozes corais extensivos aos temas musicais de Raul Seixas. Ampliados pela força gestual imprimida por Marina Salomão ao protagonista titular e pela indumentária característica da tipicidade do compositor e sua época no exotismo marcante de alguns elementos de sua indumentária (Maria Callou).

Completado  pelo brilho psicodélico das luzes (Gabriel Prieto) que levam a um imersivo mergulho numa caixa cenográfica (Nello Marrese) povoada por objetos que representam, plasticamente, o universo personalista de Raul Seixas e que lhe possibilitou muitas viagens ousadas e inventivas pelos espaços siderais da sua mente.

E que faz alcançar uma coesiva dialetação, entre as canções e a verbalização dos manuscritos, num tom confessional sustentado na autenticidade psicofísica de um irrepreensível intérprete (Bruce Gomlevsky).

Sabendo assumir seu personagem com cativante espontaneidade e vigoroso elan performático. Ecoando um carismático conluio coletivo palco-plateia ao  incorporar, convictamente, o icônico apelo de Nasci Há Dez Mil Anos Atrás :

Prefiro ser essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”...

                                                     Wagner Corrêa de Araújo


Raul Seixas-O Musical está em cartaz no Teatro EcoVilla Ri Happy/Jardim Botanico, sexta/sábado 20h; domingo 19h. Até 21 de abril.

PÉRSIA / GRUPO SOBREVENTO : ENTRE O MEDO NA DIÁSPORA IRANIANA E A ESPERANÇA NO BRASIL

 

Pérsia/ Grupo Sobrevento. Sandra Vargas e Luiz André Cherubini/Direção Concepcional. Abril/2024. Fotos/Marco Aurélio Olímpio.


Em tempos tão conturbados pelo radicalismo de insensatas ambições políticas, pelo retrocesso de comportamentos sociais sob o domínio do fundamentalismo religioso, acentuado na misoginia, no machismo e na repulsa às opções de identificação sexual, árida tem sido a situação do povo iraniano.

Isto se refletindo, especularmente, no desafio da busca de qualquer saída diante da ameaça das perseguições e até dos chamados tribunais revolucionários direcionando suas decisões judiciais, entre a vida ou a morte, àqueles que ousam pensar diferente do opressivo dirigismo governamental.

E é o pesadelo representado pela dramática odisséia de fuga desta diáspora, que inspira a última criação dramatúrgica do Grupo Sobrevento simbolicamente titulada como Pérsia, comemorando os 38 anos da Companhia, por intermédio de um belo ideário teatral de seus diretores/fundadores Sandra Vargas e Luiz André Cherubini.

Em espetáculo que inclui também em cena, os atores Mauricio Santana, Sueli Andrade, Liana Yuri e Daniel Viana. Num conceitual estético que exalta a liberdade através da milenar tradição poética e artística de uma nação forçada, por sua trajetória distópica, à aculturação migratória em outros países, no caso específico da peça o Brasil, conectando assim dois povos e duas culturas.


Pérsia/ Grupo Sobrevento. Sandra Vargas/Luiz André Cherubini/Direção Concepcional.Abril/2024. Fotos/Marco Aurélio Olímpio.

Num dimensionamento criador de teatro de animação que há quase quatro décadas tornou o Sobrevento um exemplar modelo brasileiro, estendendo suas apresentações a cerca de 40 países, incluído o Irã, em 2010, no conceituado Fajr Festival em Teerã.

Com este gênero cênico que se notabilizou a partir dos surrealistas e dos futuristas, onde os objetos passaram a ter autenticidade metafórica de almas próprias. Sacralizados, além de sua mera funcionalidade material, tanto nas artes plásticas e cinéticas quanto na criação teatral.

Indo muito além dos limites ancestrais do teatro de sombras e de marionetes, em novos signos cênicos que se classificam como teatro de animação ao possibilitarem, na manipulação e uso de objetos que, assim, transcendam seu significado inicial.

Aqui, na envolvência cenográfica (Luiz André Cherubini em parceria com Mandy) da poética plasticidade de uma árvore com seus galhos secos, centralizada na ocupação do espaço arena remetendo a uma paisagem desértica, que tanto pode sugestionar a terra deixada para trás como o sertão brasileiro.

Projetando sombras num sensorial efeito luminar  (Renato Machado) sobre um solo de areia onde são colocadas casinhas de papel para passarinhos figurando numa imagética, memorial e nostálgica, o passado vivido pelos habitantes, obrigados por diferenciais circunstâncias a um vôo de partida sem previsão de volta.  

Onde um destaque mais que especial é alcançado pelo apuro estilístico dos figurinos de João Pimenta na miscinegação de tonalidades aquareladas tanto da tradição persa/iraniana como brasileira, potencializados pelo presencial de instrumentos típicos das duas culturas musicais.

Em antológica trilha (no comando musical de William Guedes) executada pelos músicos/atores que se dividem entre cantorias e citações de poetas da Pérsia de ontem ao Irã de hoje, ao lado de versos brasileiros que vão de Manuel Bandeira a letras de Caetano Veloso.

A narrativa dramatúrgica (Sandra Vargas) tendo como base desde tocantes depoimentos de imigrantes iranianos em seu processo da aculturação, ao conluio das aspirações existenciais destes personagens reais com experiências confessionais dos próprios atores.

Tudo, enfim, tornando o Sobrevento maior ainda em sua qualitividade como teatro de animação neste seu alcance dramático  para nos fazer refletir sobre a tragédia vivida por tantos povos (acentuada agora pelos massacres na faixa de Gaza).

Forçados todos, por uma implacável rota do destino, a abandonar sua terra de origem na busca da esperança em outras plagas, tentando, apesar de tudo, redimir mesmo assim a lacuna irremediável desta separação...  

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo


Pérsia/Grupo Sobrevento está em cartaz no Sesc Arena/Copacabana, de quinta a domingo, às 20hs, até 21 de abril.

CLAUSTROFOBIA : QUANDO O CONFINAMENTO SE TORNA UMA METÁFORA DAS MÁSCARAS SOCIAIS

Claustrofobia. Rogério Corrêa/Dramaturgia. Cesar Augusto/Direção concepcional. Com Márcio Vito.Março/2024. Fotos/Nil Caniné.


A conexão de uma luminosa tríade do universo teatral  brasileiro – o dramaturgo Rogério Correa, o diretor César Augusto e o ator Márcio Vito – faz de Claustrofobia um dos espetáculos mais supreendentes da atual temporada carioca.

Partindo de um ideário autoral de Rogério Corrêa que já completou três décadas de brilhantes experimentos em Londres, desde sua formação universitária ali como roteirista, mas sem nunca deixar de lado suas vivências teatrais brasileiras.

Transmutadas em versões virtuais de obras direcionadas tanto aos públicos daqui e de lá, pela abrangência de suas  temáticas, especialmente aquelas focadas nas demandas afirmativas da realidade gay contemporânea.

Algumas delas em pleno período pandêmico, “De Bar em Bar”, 2020, com direção de Isaac Bernart e “Entre Homens”, 2021, sob o comando de César Augusto, vistas em plataformas digitais e sobre as quais tivemos o prazer de postar críticas elogiosas.

E, agora, pela primeira vez, Rogério Corrêa acompanha presencialmente todo o processo de criação cênica através da montagem nos palcos cariocas de sua peça mais nova, contando com uma diferencial performance solo de  Márcio Vito e a sempre artesanal direção concepcional de César Augusto.


Claustrofobia. Rogério Corrêa/Dramaturgia. Cesar Augusto/Direção. Márcio Vito / Ator. Março/2024. Fotos/Nil Caniné.

Titulada como Claustrofobia redireciona, em sua origem linguística-verbal, à ambiência reclusa dos claustros de monastérios com seus solitários ocupantes dialogando, metaforicamente, ora com um Deus invisível, ora digladiando com seus fantasmas mentais.

Podendo remeter também ao espaço sufocante dos elevadores no seu reiterativo sobe e desce, onde a única saída são as paradas entre os andares ou o convívio intantâneo e frio com os que por ali entram e saem como automatos.

Esta imagem inspira assim o próprio isolamento no difícil suporte da condição humana. E de maneira mais acentuada para os que tem sua labuta diária sustentada no ofício maquinal dos ascensoristas, tal como o personagem Marcelino.

Aqui em sensorial e tocante representação por Márcio Vito dividindo-se em tríplice função atoral, ora como o assalariado nordestino e migrante na metrópole, na luta por seu frugal auto sustento destinado, também, às carências de sua mãe.  Ou confrontado, na invisibilidade de uma total falta de perspectivas em seu dia a dia, com o desprezo de Stella, uma orgulhosa executiva do prédio comercial que só pensa em sua ascensão funcional.

Além da postura controladora do porteiro Webberson, incluída a sua invasiva e torturante trilha sonora (na funcional idealização de André Poyart) sob a prevalência de acordes percussivos e que potencializam a sufocação daquela caixa mecanica. Num reflexo especular da ambição de chegar a ser um destes policiais milicianos que abundam por aí, pós tolerância do quadriênio recessivo promovido por uma insensata (des)governança.

Com seu incisivo referencial de instalação plástico/escultórica preenchendo o vazio da caixa cênica, realização conjunta de Cesar Augusto e Beli Araújo, incluída aí uma parceria  na indumentária cotidiana no uso de um tipo de largo e escuro macacão.

Tudo ampliado pelos efeitos luminares (Adriana Ortiz) no entremeio de claros e a prevalência de sombras, com energizada nervosia da gestualidade corporal, na adequação da proposta de movimento por Andrea Maciel.

Claustrofobia se destaca, assim, por seu intuito de intimismo aproximativo palco/plateia, ator/espectador,  ao expor o conturbado conflito psicofísico na revelação, sem retoques, das máscaras sociais que ocultam nossas verdadeiras identidades.

Na potencialidade questionadora de sua dramaturgia  (Rogério Corrêa), no alcance de uma visceral performance (Márcio Vito) e no acerto de um provocativo direcionamento (Cesar Augusto) voltado à decifração dos explosivos enigmas de um conturbado personagem, como não encontrar subliminar similaridade, em Claustrofobia, da lição sartreana antecipadora do conceitual existencialista, já perceptível em Huis Clos (Entre Quatro Paredes) no cáustico enunciado de que o inferno são os outros  :

O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo


Claustrofobia está em cartaz no Teatro III, CCBB/RJ, de quinta a sábado, às 19hs; domingo ás 18hs; até 14/04.

MEGURI/TRIBUTO À DANÇA CATÁRTICA DO SANKAI JUKU : NA DESPEDIDA DE SEU IDEALIZADOR USHIO AMAGATSU (1949/2024)

 

Sankai Juku / Meguri. Julho /2016. Fotos/ Cortesia Arquivo Sankai Juku.


Há uma correlação simbólica entre a criação expressionista de Mary Wigman e o orientalismo contemporâneo de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, os criadores do estilo coreográfico Butoh.

Quando a coreógrafa e bailarina alemã se propôs a “dar forma ao caos", no conturbado período que levaria ao nazi/fascismo, isto ecoou também na década de 50, num Japão fissurado por uma dramática ocidentalização.

É quando surge o estilo butô (Ankoku Butoh), a “dança das trevas”, expressão pioneira da vanguarda coreográfica japonesa, numa estética que conquistou o mundo com sua temática ancorada sobre a tragicidade da condição humana.

Retomando  a tradição zen-budista, para se confrontar com a crise civilizatória, o butô deveria se apoiar, segundo o pensamento de Kazuo Ohno, na “vida que nasce da morte e na introspecção para aceitar este dualismo”.

Onde prevalece uma dança teatralizada que retoma a percepção do pensar  de Wigman, de quem Kazuo foi aluno, –“Suportar a vida, aceitá-la e glorificá-la no ato de criação”.

Aqui os dançarinos/atores, numa cenografia minimalista, ressaltam a gestualidade, através da extremada sutilização da postura de mãos, braços, pernas e troncos.

Na extroversão da interioridade, diante da juventude e da decadência corporal, na trajetória tragicômica do nascimento à finitude.

Assim a  Cia Sankai Juku, concebida, dirigida e coreografada por Ushio Amagatsu, completa seus 40 anos, com sua invenção personalista do butô ligado à contemporaneidade pela transubstanciação reflexiva da ancestralidade espiritual japonesa. 


Cia Sankai Juku / Meguri. Julho/2016. Fotos/Cortesia Arquivo Sankai Juku.


E, desta vez, com um verdadeiro poema coreográfico Meguri - Mar Exuberante, Terra Tranquila - metaforizando, pelo movimento, o conceitual físico/filosófico : terra, água, fogo e ar.

Com oito dançarinos, numa trilha refinada entre a “ambient music” e o rock progressivo e um muralismo cênico de exponencial plasticidade, sob  luzes atmosféricas, inspirado em fósseis marinhos paleozoicos.

Cobertos todos eles por uma maquiagem corporal, textualizada num branco melancolizado, extensível aos figurinos, com a similaridade disfarçada, apenas, por leves insinuações de pigmentos em verde e vermelho.

Em circulares movimentos e na sensitiva postura solar, sob o essencialismo gesticulatório de espiritualização da fisicalidade.

Entre a mascaração das faces, meditativas  e  assombradas, ou na dissonância de súbitos saltos de apelo orgíaco.

Num carismático convite, palco/plateia, para uma dança, poética e catártica, da alma pela vida.

 

                                                 Wagner Corrêa de Araújo

 


Esta última apresentação no Rio de Janeiro da Cia Sankai Juku com o espetáculo Meguri, aconteceu em julho de 2016, no palco da Cidade das Artes, quando a Cia estava completando seus 40 anos.

CIA DE DANÇA DEBORAH COLKER / SAGRAÇÃO : NUMA VISCERAL RELEITURA À LUZ DOS POVOS BRASILEIROS ORIGINÁRIOS


Sagração / Companhia de Dança Deborah Colker. Março/2024. Fotos / Flávio Colker.


A mais recente obra da Companhia de Dança Deborah Colker completa a trilogia de conceitual antropológico/ritualístico inicializada por Cão Sem Plumas.   Da terra que se auto-define pela aridez da lama no insólito trajeto do homem/caranguejo, inspirando-se na imagética poética cabralina para figurar o mangue nordestino.

Seguida pela praga da moléstia que assedia, entre trevas, a condição humana e onde o sonho para vencer a peste depende da sua libertação pela Cura. Que, bem a propósito, titula uma coreografia atravessada pelas crenças de redenção nas entidades do Candomblé, com inserções  bíblicas pela dramaturgia do rabino Nilton Bonder.

E, agora, em 2024, na lembrança do ideário estético revolucionário da Sagração de Stravinsky com seu descortino em 1913 de uma nova era musical/coreográfica, no presságio de Nijinsky (“Ela abrirá horizontes novos, iluminados pelos raios do sol. Tudo será, então, diverso, novo e belo").

Esta outra Sagração, desta vez foi concebida, coreografada e dirigida por Deborah Colker, com plena brasilidade, ao remeter em sua releitura, a uma diferencial transmutação metafórica do primitivo cenário de aldeães russos em saga indigenista no entorno dos povos originários da terra brasileira.


Sagração / Companhia de Dança Deborah Colker. Março/2024. Fotos / Flávio Colker.

Distanciando-se assim de uma quase absoluta fidelidade narrativa e sinfônica das versões referenciais de Maurice Béjart, Kenneth MacMillan, John Neumeier, Angelin Preljocaj, Pina Bausch. Preferindo seguir, ainda que em parte, a trajetória aberta pela transgressiva concepção do britânico Akram Khan, de ascendência bangladeshiana, com o uso de outras inserções musicais.

No caso da criação coreográfica de Deborah Colker, intermediando ou superpondo partes da partitura stravinskyana ao lado de autóctones acordes rítmicos indigenistas, com prevalência de sonoridades percussivas, tendo como base os arranjos autorais da trilha de Alexandre Elias.

Partindo da cosmogonia evolucionista dos quatro elementos (água, fogo, ar e terra) integralizada num intencionalismo épico da representação coreográfica, cênica e musical de como teria sido o princípio do homem e do universo no olhar indígena.

Onde a decifração do mistério de sua primitiva sacralidade é miscigenada com o Gênesis bíblico, por intermédio do roteiro concepcional da diretora e coreógrafa Deborah Colker, em sua dúplice parceria dramatúrgica com o escritor judaico/brasilianista Nilton Bonder.

Trazendo à cena figuras dos relatos do Antigo Testamento como uma Eva distante do Eden, aqui personalizada numa ascendência negra/africana, ao lado de um Abraão descompromissado de sua fabular missão, além de intervenções vocais em off de Takumã Kuikuro explicando crendices místicas em seu linguajar indígena.

Num surpreendente desfile de caracteres do mundo animal e herbívoro, indo das bactérias aos quadrúpedes e serpentes, numa tipicidade  indumentária (Cláudia Kopke) tudo sob provocante ambiência imaginária a partir da artesanal direção de arte de Gringo Cardia.

Completada na original envolvência do uso cenográfico de bambus/estacas como móbiles, capazes de um mágico sugestionamento, metamorfoseados em tabas, barcos, redes e lanças. E que se estende a uma plasticidade espacial na caixa cênica conectando terra e céu, ampliada nos efeitos luminares  de Beto Bruel.

Para expressar, via energizada e imersiva proposição performática e gestual para um afinado elenco de 15 bailarinos, o legado das tradições lendárias dos povos originários, fazendo de Sagração um tributo à passagem do trigésimo aniversário da Companhia de Dança Deborah Colker.

Entre um senso de metafórica selvageria da corporeidade pulsante dos bailarinos e a mistificação cerimonial/ritualística da cena dançante sob o compasso da ancestralidade indigenista, sinalizados com o olhar atento de Deborah Colker. Sempre ancorado nos avanços do atual universo coreográfico, em inédita e brava busca inventiva de uma das mais celebradas companhias brasileiras da dança contemporânea. 

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo


Sagração/Companhia de Dança Deborah Colker está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, de quinta a segunda, em sessões vesperais e noturnas, até 25 de março.

FORTALEZA : OS DESAFETOS ADOLESCENTES NO ENFRENTAMENTO, EM PROCESSO DRAMATÚRGICO, DA LIVRE OPÇÃO SEXUAL

 

                                                                 

Fortaleza. José Pedro Peter/Dramaturgia. Daniel Dias da Silva/Direção Concepcional. Março/2024. Fotos/Roberto Cardoso Jr.


O desafio que começa na transição entre os lúdicos momentos da ingênua afetividade de uma amizade infantil, transmutando-se no despertar conflituado da atração intimista com erotizada pulsão, entre dois adolescentes em tempo escolar, direciona a reveladora e sensitiva abordagem, em safra da mais recente dramaturgia carioca, titulada bem a propósito como Fortaleza.

Na estreia autoral de José Pedro Peter tendo como parceiro performático Carlos Marinho, outro ator da nova geração,  tendo ambos já uma bem inicializada trajetória pelos palcos cariocas. E, aqui, sob o artesanal comando de Daniel Dias da Silva, reconhecido  por suas sempre luminosas  passagens atorais e direcionais pelo universo teatral Brasil afora.

Numa narrativa marcada por um sotaque de contemporaneidade na expressão da luta empreendida por um estudante de postura mais convicta – Bruno (José Pedro Peter) - sentindo haver ali a reciprocidade da identificação sensorial entre dois corpos masculinos, mesmo com a insegurança e o medo do outro colega apelidado como PH (Carlos Marinho).


Fortaleza. José Pedro Peter/Dramaturgia. Daniel Dias da Silva/Direção. Com José Pedro Peter e Carlos Marinho. Março/2024.


Turbado este último pela perceptível prevalência do lastro de rejeição para uma espécie de amor que o resistente conservadorismo da sua família e do bullying na ambiência escolar, extensivos ao conservadorismo do meio social, teimam em  considerar como proibido e abjeto. O que no seu futuro existencial há de lhe provocar um amargo arrependimento e um intransponível complexo de culpa.

Levando-o, naqueles momentos confessionais de sua então trajetória escolar, a se refugiar, questionado perante a dúvida e a aceitação, entre as muralhas de uma “fortaleza”. Que, pelo ângulo de outro personagem, poderia também sugestionar a irresistível e fortificada segurança de Bruno em afirmar-se na sua assumida individualização sexual.

Em espetáculo despretensioso com seu singular minimalismo cenográfico (Janaína Wendling e Paulo Denizot), preenchido apenas por uma espécie de utilitário armário escolar com seus múltiplos significados. Sequenciado na indumentária cotidiana (Humberto Correia) e nas luzes sombreadas  (dúplice ideário de Paulo Denizot) ora vazadas ora focais, tudo, enfim, convergindo para uma funcional mas, ao mesmo tempo, imaginária ambientação cênica.

O talento de dois atores (Carlos Marinho e José Pedro Peter) desdobrando-se em personagens sob diferenciais situações psicofísicas, no acertado tom de gestualização das corporalidades (Marcelo Aquino). Transitando junto com as palavras  no descortino de uma dramaturgia jovem de potencial maturidade que flui pela força sinérgica imprimida pela direção de Daniel Dias da Silva.

Ampliada nas referências musicais anos 80/90, de Cazuza à banda Oasis onde a canção Wondewall é capaz de inspirar um significativo recado reflexivo por intermédio de frases poéticas e incisivas  como : “Eu não acredito que alguém/ sinta o mesmo que eu sinto por você agora”.

Para tema tão necessário em tempos recentes de tanto preconceito, a partir da regressão promovida por um ex --governo sustentado pelo negacionismo e pela intolerância. Tanto no que se refere às seculares conquistas político/filosóficas da liberdade de pensamento quanto à plena aceitação da livre escolha da sexualidade...

 

                                   Wagner Corrêa de Araújo


Fortaleza está em cartaz no Espaço Abu / Copacabana, de sábado a segunda, às 20h; até o dia 1º de Abril.

LYGIA : REINVENÇÃO DO PAPEL DO ARTISTA EM SENSORIAL DIMENSIONAMENTO CÊNICO



Lygia. Dramaturgia/Direção Concepcional/Maria Clara Mattos/Bel Kutner. Com Carolyna Aguiar. Março/1924. Fotos/Leekyung Kim.

 

Coube à artista mineira Lygia Clark impulsionar verdadeira revolução estética no conceitual de uma obra inicializada no ofício escultural quando a partir dos anos 60, na continuação investigativa de permanente processo transformador, fez da desmistificação um signo absoluto de sua própria trajetória no universo da criação plástica.   

Longe da pura contemplação do belo mas em proposta na qual  se classifica como “não artista tornando prevalente o relacionamento sensorial entre a obra, o espectador e ela própria, numa inclusão de práticas terapêuticas voltadas para decifração dos enigmas de seu eu, direcionados à compreensão do outro e aos mistérios do mundo.

E é no entorno desta instigante argumentação que a dramaturgia de Maria Clara Mattos promove uma completa e luminosa parceria especular de experimento cênico/plástico com a diretora Bel Kutner. E que encontra seu eco na visceral performance de Carolyna Aguiar, fazendo da originalidade do monólogo Lygia uma diferencial surpresa da temporada teatral.


Lygia. Dramaturgia/Direção Concepcional/Maria Clara Mattos/Bel Kutner. Com Carolyna Aguiar. Março/2024. Fotos/Leekyung Kim.


Ainda que, desde 2019, já tenha passado por outras apresentações em espaços cariocas mais alternativos, a começar na Região Portuária, seguida por indicação de melhor dramaturgia no Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) pós temporada na Paulicéia, em 2022, e, agora, de volta ao cartaz num mais tradicional espaço/palco do Rio.

Em postulação híbrida o espetáculo usa o espaço cênico (num ideário do Studio Mameluca) sugestionando simultaneamente uma galeria de arte, povoada por elementos plásticos/terapêuticos tridimensionais manipuláveis (conchas, pedras, sacos plásticos, luvas, tesouras, barbantes), além dos celebrados Bichos, como referenciais de suas criações para possibilitar, assim, a interatividade corpo a corpo com os espectadores.

Um verdadeiro exercício pedagógico e teatral propulsor de espontâneo incentivo ao compartilhamento de atitudes criadoras que envolvem a personagem titular com a plateia, sob expansivos efeitos luminares (Samuel Betts) que acentuam ainda a identificação indumentária (Andrea Marques) bastante aproximativa da atriz com a artista e a personagem.

Criando um espetáculo/performance onde Carolyna Aguiar é a própria Lygia Clark rediviva sob perceptível psicofisicalidade e verdade interior irradiada em cada gesto. Transmutando-se em dois tempos confessionais paralelos, no entremeio da explanação das suas teorias estéticas seguidas pelo jogo teatral/plástico vivo com intuitos artísticos/curativos a ser compartilhado com cada um dos presentes.

Em potencializado experimento teatral Lygia, resultante de um irrestrito acerto no encontro vigoroso de tres destacados nomes femininos do universo cênico brasileiro (Maria Clara Mattos, Bel Kutner e Carolyna Aguiar), sob a inventiva abordagem memorialista, dramatúrgica, plástica e terapêutica, desta emblemática personalidade da arte brasileira.

Lygia Clark ou simplesmente Lygia configurando, enfim, um imersivo tributo capaz sempre de suscitar reflexões seminais e questionadoras com olhar polêmico armado na contemporaneidade:

Há muito a obra de arte para mim é cada vez menos importante e o recriar-se através dela é que é o essencial”...

 

                                            Wagner Correa de Araújo


Lygia está em cartaz no Teatro Poeira/ Botafogo, terças e quartas, às 20h; até 24 de abril.

O QUE NOS MANTÉM VIVOS? : UM TRIBUTO SOB MOLDES BRECHTIANOS À ICÔNICA TRAJETÓRIA DE RENATO BORGHI

 


O Que Nos Mantém Vivos? Élcio Nogueira Seixas/Renato Borghi-Dramaturgia.Rogério Tarifa/Direção. Março/2024. Fotos/Priscila Prade.

A primeira versão da peça, por Renato Borghi e Esther Goés, então titulada de O Que Mantém um Homem Vivo?, aconteceu em 1972/73, ainda no apogeu do obscurantismo militar/ditatorial. Depois vieram mais duas outras com parcerias diferenciais, em 1982, no compasso da redemocratização, e em 2019, sendo esta através do Teatro Promíscuo, extensiva à formatação da que chegamos agora. 

Muito apropriada, pós pesadelo bolsonarista, como O Que Nos Mantém Vivos?, ainda a partir de trechos antológicos de Bertold Brecht apresentados em dois atos, divididos por subtítulos sob signos precisos que marcaram as absuridades de um quadriênio politico à beira dos riscos do retrocesso cultural, das conquistas comportamentais e da iminência do abismo antidemocrático.

Fazendo um justo e necessário tributo à emblemática trajetória de Renato Borghi em suas quase sete décadas, a partir da era inicial no Teatro Oficina, ao mesmo tempo que registra a passagem dos seus 87 anos como um dos mais significativos e atuantes nomes do universo teatral brasileiro.


O Que Nos Mantém Vivos? Elcio Nogueira Seixas/Renato Borghi-Dramaturgia. Rogério Tarifa/Direção.Março/2024. Fotos/Priscila Prade. 

No apuro concepcional de Elcio Nogueira Seixas, em conluio estético-dramatúrgico com Renato Borghi, sob a direção de Rogério Tarifa, na continuação do que a proposta da peça representa como um recado politico/teatral no entorno de tres momentos cruciais da história política do país. 

Dos anos opressivos trazidos pelo movimento de 64 ao resgate das liberdades democráticas  no despontar dos anos 80, direcionando-se à reflexiva e necessária postura sobre a desconstrução social e política promovida pelos ainda recentes equívocos da última governança.

A primeira parte - Deus Acima de Todos - com a cena “Pequeno Monge” de Galileu Galilei e de citações fragmentárias de “Santa Joana dos Matadouros”, duas obras brechtianas que abordam da prevalência do fanatismo religioso em detrimento de uma revolução social a favor das classes menos favorecidas e dos que lutam arduamente pela sobrevivência cotidiana.

Onde sob um dimensionamento cênico musical e circense, em tríplice ideário (por Luiz André Cherubini, Andreas Guimarães e do próprio Tarifa) é mostrado um picadeiro ocupado por uma carroça e uma trupe mambembe de músicos e atores. Que cantam e dançam guiados por imersiva gestualidade (Marilda Alface) conectando danças características brasileiras ao butô.

Direcionados por uma trilha musical (William Guedes e Jonathan Silva), com recriação de canções, ora inéditas ora da obra de Brecht, que remetem, simultaneamente ao teatro popular e ao burlesco circense, com subliminares traços de uma performance operística.

Sem deixar de lembrar dos figurinos (Juliana Bertolini), ora sóbrios ora mais aquarelados, e de artesanais bonecos suspensos que dão um retoque de lúdica fantasia ao espaço cênico circular. Tudo sugerindo um interativo encontro plateia/arena, atores/espectadores, em ambientação mágica ampliada por  bonitos efeitos luminares (Marisa Bentivegna).

Sendo perceptível um maior e mais incisivo apelo poético e emotivo no Prólogo e no Ato Primeiro que na segunda parte – Pátria Amada – transmutando com assumida ironia crítica a identificação do personagem brecthiano Arturo Ui com o convívio de grotescos tipos e caracteres de nossas últimas e mais que desprezíveis vivências políticas.

Havendo obrigatoriamente que destacar um elenco convicto e afinado, integrado pela energizada atuação dos atores Elcio Nogueira Seixas e Cristiano Meirelles, ao lado da luminosa performance de Debora Duboc com espontânea e irrepreensível força na conjugação de suas nuances vocais e de seu expressionismo gestual. Além da dignidade memorialista/confessional e a potencialidade carismática nas intervenções de Renato Borghi com seu sempre bravo e  icônico presencial.

Tudo enfim concorrendo para que a densidade dramatúrgica de O Que Nos Mantém Vivos?, no seu assertivo dimensionamento cênico/épico tenha muito a dizer a cada um de nós, sintonizado com a problemática da contemporaneidade e com o descortino dos caminhos da atual criação dramatúrgica...


                                         Wagner Corrêa de Araújo



O Que Nos Mantém Vivos?, está em cartaz no Espaço Sergio Porto/Humaitá, de sexta a sábado, às 19hs; domingo, às 18hs. Até 17 de março.

A FALECIDA : QUANDO O BURLESCO E O TRÁGICO RODRIGUEANOS SE CONECTAM EM ENVOLVENTE CONCEPÇÃO CÊNICA

A Falecida, de Nélson Rodrigues. Sergio Módena/Direção Concepcional. Fevereiro/2024. Fotos/Victor Hugo Cecatto.


Desde sua criação dramatúrgica, com estreia polêmica no Theatro Municipal pelos idos de 1953, A Falecida, de Nélson Rodrigues tem inspirado marcantes versões, entre estas a de Gabriel Vilela, em 1994, atravessando fronteiras e surpreendendo de vez o público vienense. 

Enquanto o emblemático filme de Leon Hirzsman, protagonizado por Fernanda Montenegro na estreia fílmica da atriz em 1965, acabou se tornando um clássico do Cinema Novo Brasileiro, com um sucesso absoluto de público sob repercussão crítica de alcance internacional.

A narrativa no entorno de “uma provável Bovary suburbana”, segundo palavras conceituais de Sábato Magaldi, caracteriza bem esta Zulmira, personagem patética do subúrbio carioca que só vê saída para suas frustrações cotidianas  através de seu obsessivo caminhar para a morte, à causa de uma tuberculose terminal.

Vendo como forma de compensação da sua vida vazia, ao lado da medíocre ambiência de uma baixa classe média ampliada no monótono convivio marital com Tuninho, torcedor fanático de futebol e que só pensa nas próximas vitórias vascaínas.  Crendo ela em poder vencer apenas pelo sonho ilusório de ter um enterro de luxo, capaz de provocar a inveja em sua vizinha e prima Glorinha, motivo maior de seus desafetos segundo previsão de uma cartomante.


A Falecida/Nélson Rodrigues. Sergio Módena/Diretor.Com Camila Morgado e Thelmo Fernandes. Fevereiro/2024. Fotos/Vicor Hugo Cecatto.


A Falecida reaparece em cena por intermédio de uma diferencial concepção cênica/diretorial de Sergio Módena que depois do sucesso inicial na paulicéa chega, agora, ao Rio. Reunindo um elenco de craques, do trio protagonista  encabeçado pela maestria interpretativa de Camila Morgado (Zulmira) em coesiva atuação junto a Thelmo Fernandes (Tuninho), além do brilho de Stella Freitas, dividindo-se como a cartomante Crisálida e a mãe de Zulmira.

Ao lado de uma trupe afinada de coadjuvantes, com um destaque mais que especial para Gustavo Webner no papel do agente funerário, malandro e sedutor,  ressaltando típicos e perspicazes caracteres suburbanos, continuados pelo  bicheiro e dono de uma frota de ônibus Pimentel (Alcemar Vieira) que leva à surpresa do epílogo, na revelação do intrigante segredo condutor da trama.

Em montagem dimensionada com rubricas antirrealistas, por indicação textual do próprio dramaturgo Nelson Rodrigues, a direção de Sérgio Módena imprime à  performance tonalidades gestuais expressionistas. A começar do prólogo tendo ao fundo a simbologia funesta de uma representação cenográfica (André Cortez) da cavidade de um túmulo cemiterial ladeado por azulejos.

Entre os efeitos ora sombrios ora luminares (Renato Machado), o acompanhamento de acordes sinfônico/corais de um tema sacro, com inserções profanas, induz à audição simultânea na trajetória narrativa, dos recortes de canções imortalizadas por Dalva de Oliveira.

Na funcionalidade da trilha idealizada por Marcelo H. e dos figurinos (Marcelo Olinto) com certa sugestão de época, alternados pela entrada ritualística de personagens mascarados que tanto podem remeter a espectros da morte como a personagens do carnaval carioca.

Classificada originalmente como uma tragédia carioca, A Falecida poderia também ser uma espécie de comédia de costumes ou até de farsa trágica. Mas, antes de tudo, a sua volta à cena no entremeio dos dissabores políticos que estamos vivendo nos últimos tempos é mais do que oportuna. Não só por seu recado de alerta ecoando até hoje, sete décadas após ter causado um escândalo na época em que veio à luz.

E na realidade contemporânea de um país fanatizado cada vez mais por extremismos religiosos, falsos moralismos, hipocrisia política e retrocessos comportamentais, seu retorno aos palcos estabelece, além de seu qualitativo ideário estético/teatral, a identificação de um conservadorismo radical que, infelizmente, ainda  teima em resistir...


                                         Wagner Corrêa de Araújo


A Falecida está em cartaz no Teatro Copacabana Palace, de quinta a sábado, às 21hs; domingo, às 20h, até 07 de abril.

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