LYGIA : REINVENÇÃO DO PAPEL DO ARTISTA EM SENSORIAL DIMENSIONAMENTO CÊNICO



Lygia. Dramaturgia/Direção Concepcional/Maria Clara Mattos/Bel Kutner. Com Carolyna Aguiar. Março/1924. Fotos/Leekyung Kim.

 

Coube à artista mineira Lygia Clark impulsionar verdadeira revolução estética no conceitual de uma obra inicializada no ofício escultural quando a partir dos anos 60, na continuação investigativa de permanente processo transformador, fez da desmistificação um signo absoluto de sua própria trajetória no universo da criação plástica.   

Longe da pura contemplação do belo mas em proposta na qual  se classifica como “não artista tornando prevalente o relacionamento sensorial entre a obra, o espectador e ela própria, numa inclusão de práticas terapêuticas voltadas para decifração dos enigmas de seu eu, direcionados à compreensão do outro e aos mistérios do mundo.

E é no entorno desta instigante argumentação que a dramaturgia de Maria Clara Mattos promove uma completa e luminosa parceria especular de experimento cênico/plástico com a diretora Bel Kutner. E que encontra seu eco na visceral performance de Carolyna Aguiar, fazendo da originalidade do monólogo Lygia uma diferencial surpresa da temporada teatral.


Lygia. Dramaturgia/Direção Concepcional/Maria Clara Mattos/Bel Kutner. Com Carolyna Aguiar. Março/2024. Fotos/Leekyung Kim.


Ainda que, desde 2019, já tenha passado por outras apresentações em espaços cariocas mais alternativos, a começar na Região Portuária, seguida por indicação de melhor dramaturgia no Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) pós temporada na Paulicéia, em 2022, e, agora, de volta ao cartaz num mais tradicional espaço/palco do Rio.

Em postulação híbrida o espetáculo usa o espaço cênico (num ideário do Studio Mameluca) sugestionando simultaneamente uma galeria de arte, povoada por elementos plásticos/terapêuticos tridimensionais manipuláveis (conchas, pedras, sacos plásticos, luvas, tesouras, barbantes), além dos celebrados Bichos, como referenciais de suas criações para possibilitar, assim, a interatividade corpo a corpo com os espectadores.

Um verdadeiro exercício pedagógico e teatral propulsor de espontâneo incentivo ao compartilhamento de atitudes criadoras que envolvem a personagem titular com a plateia, sob expansivos efeitos luminares (Samuel Betts) que acentuam ainda a identificação indumentária (Andrea Marques) bastante aproximativa da atriz com a artista e a personagem.

Criando um espetáculo/performance onde Carolyna Aguiar é a própria Lygia Clark rediviva sob perceptível psicofisicalidade e verdade interior irradiada em cada gesto. Transmutando-se em dois tempos confessionais paralelos, no entremeio da explanação das suas teorias estéticas seguidas pelo jogo teatral/plástico vivo com intuitos artísticos/curativos a ser compartilhado com cada um dos presentes.

Em potencializado experimento teatral Lygia, resultante de um irrestrito acerto no encontro vigoroso de tres destacados nomes femininos do universo cênico brasileiro (Maria Clara Mattos, Bel Kutner e Carolyna Aguiar), sob a inventiva abordagem memorialista, dramatúrgica, plástica e terapêutica, desta emblemática personalidade da arte brasileira.

Lygia Clark ou simplesmente Lygia configurando, enfim, um imersivo tributo capaz sempre de suscitar reflexões seminais e questionadoras com olhar polêmico armado na contemporaneidade:

Há muito a obra de arte para mim é cada vez menos importante e o recriar-se através dela é que é o essencial”...

 

                                            Wagner Correa de Araújo


Lygia está em cartaz no Teatro Poeira/ Botafogo, terças e quartas, às 20h; até 24 de abril.

O QUE NOS MANTÉM VIVOS? : UM TRIBUTO SOB MOLDES BRECHTIANOS À ICÔNICA TRAJETÓRIA DE RENATO BORGHI

 


O Que Nos Mantém Vivos? Élcio Nogueira Seixas/Renato Borghi-Dramaturgia.Rogério Tarifa/Direção. Março/2024. Fotos/Priscila Prade.

A primeira versão da peça, por Renato Borghi e Esther Goés, então titulada de O Que Mantém um Homem Vivo?, aconteceu em 1972/73, ainda no apogeu do obscurantismo militar/ditatorial. Depois vieram mais duas outras com parcerias diferenciais, em 1982, no compasso da redemocratização, e em 2019, sendo esta através do Teatro Promíscuo, extensiva à formatação da que chegamos agora. 

Muito apropriada, pós pesadelo bolsonarista, como O Que Nos Mantém Vivos?, ainda a partir de trechos antológicos de Bertold Brecht apresentados em dois atos, divididos por subtítulos sob signos precisos que marcaram as absuridades de um quadriênio politico à beira dos riscos do retrocesso cultural, das conquistas comportamentais e da iminência do abismo antidemocrático.

Fazendo um justo e necessário tributo à emblemática trajetória de Renato Borghi em suas quase sete décadas, a partir da era inicial no Teatro Oficina, ao mesmo tempo que registra a passagem dos seus 87 anos como um dos mais significativos e atuantes nomes do universo teatral brasileiro.


O Que Nos Mantém Vivos? Elcio Nogueira Seixas/Renato Borghi-Dramaturgia. Rogério Tarifa/Direção.Março/2024. Fotos/Priscila Prade. 

No apuro concepcional de Elcio Nogueira Seixas, em conluio estético-dramatúrgico com Renato Borghi, sob a direção de Rogério Tarifa, na continuação do que a proposta da peça representa como um recado politico/teatral no entorno de tres momentos cruciais da história política do país. 

Dos anos opressivos trazidos pelo movimento de 64 ao resgate das liberdades democráticas  no despontar dos anos 80, direcionando-se à reflexiva e necessária postura sobre a desconstrução social e política promovida pelos ainda recentes equívocos da última governança.

A primeira parte - Deus Acima de Todos - com a cena “Pequeno Monge” de Galileu Galilei e de citações fragmentárias de “Santa Joana dos Matadouros”, duas obras brechtianas que abordam da prevalência do fanatismo religioso em detrimento de uma revolução social a favor das classes menos favorecidas e dos que lutam arduamente pela sobrevivência cotidiana.

Onde sob um dimensionamento cênico musical e circense, em tríplice ideário (por Luiz André Cherubini, Andreas Guimarães e do próprio Tarifa) é mostrado um picadeiro ocupado por uma carroça e uma trupe mambembe de músicos e atores. Que cantam e dançam guiados por imersiva gestualidade (Marilda Alface) conectando danças características brasileiras ao butô.

Direcionados por uma trilha musical (William Guedes e Jonathan Silva), com recriação de canções, ora inéditas ora da obra de Brecht, que remetem, simultaneamente ao teatro popular e ao burlesco circense, com subliminares traços de uma performance operística.

Sem deixar de lembrar dos figurinos (Juliana Bertolini), ora sóbrios ora mais aquarelados, e de artesanais bonecos suspensos que dão um retoque de lúdica fantasia ao espaço cênico circular. Tudo sugerindo um interativo encontro plateia/arena, atores/espectadores, em ambientação mágica ampliada por  bonitos efeitos luminares (Marisa Bentivegna).

Sendo perceptível um maior e mais incisivo apelo poético e emotivo no Prólogo e no Ato Primeiro que na segunda parte – Pátria Amada – transmutando com assumida ironia crítica a identificação do personagem brecthiano Arturo Ui com o convívio de grotescos tipos e caracteres de nossas últimas e mais que desprezíveis vivências políticas.

Havendo obrigatoriamente que destacar um elenco convicto e afinado, integrado pela energizada atuação dos atores Elcio Nogueira Seixas e Cristiano Meirelles, ao lado da luminosa performance de Debora Duboc com espontânea e irrepreensível força na conjugação de suas nuances vocais e de seu expressionismo gestual. Além da dignidade memorialista/confessional e a potencialidade carismática nas intervenções de Renato Borghi com seu sempre bravo e  icônico presencial.

Tudo enfim concorrendo para que a densidade dramatúrgica de O Que Nos Mantém Vivos?, no seu assertivo dimensionamento cênico/épico tenha muito a dizer a cada um de nós, sintonizado com a problemática da contemporaneidade e com o descortino dos caminhos da atual criação dramatúrgica...


                                         Wagner Corrêa de Araújo



O Que Nos Mantém Vivos?, está em cartaz no Espaço Sergio Porto/Humaitá, de sexta a sábado, às 19hs; domingo, às 18hs. Até 17 de março.

A FALECIDA : QUANDO O BURLESCO E O TRÁGICO RODRIGUEANOS SE CONECTAM EM ENVOLVENTE CONCEPÇÃO CÊNICA

A Falecida, de Nélson Rodrigues. Sergio Módena/Direção Concepcional. Fevereiro/2024. Fotos/Victor Hugo Cecatto.


Desde sua criação dramatúrgica, com estreia polêmica no Theatro Municipal pelos idos de 1953, A Falecida, de Nélson Rodrigues tem inspirado marcantes versões, entre estas a de Gabriel Vilela, em 1994, atravessando fronteiras e surpreendendo de vez o público vienense. 

Enquanto o emblemático filme de Leon Hirzsman, protagonizado por Fernanda Montenegro na estreia fílmica da atriz em 1965, acabou se tornando um clássico do Cinema Novo Brasileiro, com um sucesso absoluto de público sob repercussão crítica de alcance internacional.

A narrativa no entorno de “uma provável Bovary suburbana”, segundo palavras conceituais de Sábato Magaldi, caracteriza bem esta Zulmira, personagem patética do subúrbio carioca que só vê saída para suas frustrações cotidianas  através de seu obsessivo caminhar para a morte, à causa de uma tuberculose terminal.

Vendo como forma de compensação da sua vida vazia, ao lado da medíocre ambiência de uma baixa classe média ampliada no monótono convivio marital com Tuninho, torcedor fanático de futebol e que só pensa nas próximas vitórias vascaínas.  Crendo ela em poder vencer apenas pelo sonho ilusório de ter um enterro de luxo, capaz de provocar a inveja em sua vizinha e prima Glorinha, motivo maior de seus desafetos segundo previsão de uma cartomante.


A Falecida/Nélson Rodrigues. Sergio Módena/Diretor.Com Camila Morgado e Thelmo Fernandes. Fevereiro/2024. Fotos/Vicor Hugo Cecatto.


A Falecida reaparece em cena por intermédio de uma diferencial concepção cênica/diretorial de Sergio Módena que depois do sucesso inicial na paulicéa chega, agora, ao Rio. Reunindo um elenco de craques, do trio protagonista  encabeçado pela maestria interpretativa de Camila Morgado (Zulmira) em coesiva atuação junto a Thelmo Fernandes (Tuninho), além do brilho de Stella Freitas, dividindo-se como a cartomante Crisálida e a mãe de Zulmira.

Ao lado de uma trupe afinada de coadjuvantes, com um destaque mais que especial para Gustavo Webner no papel do agente funerário, malandro e sedutor,  ressaltando típicos e perspicazes caracteres suburbanos, continuados pelo  bicheiro e dono de uma frota de ônibus Pimentel (Alcemar Vieira) que leva à surpresa do epílogo, na revelação do intrigante segredo condutor da trama.

Em montagem dimensionada com rubricas antirrealistas, por indicação textual do próprio dramaturgo Nelson Rodrigues, a direção de Sérgio Módena imprime à  performance tonalidades gestuais expressionistas. A começar do prólogo tendo ao fundo a simbologia funesta de uma representação cenográfica (André Cortez) da cavidade de um túmulo cemiterial ladeado por azulejos.

Entre os efeitos ora sombrios ora luminares (Renato Machado), o acompanhamento de acordes sinfônico/corais de um tema sacro, com inserções profanas, induz à audição simultânea na trajetória narrativa, dos recortes de canções imortalizadas por Dalva de Oliveira.

Na funcionalidade da trilha idealizada por Marcelo H. e dos figurinos (Marcelo Olinto) com certa sugestão de época, alternados pela entrada ritualística de personagens mascarados que tanto podem remeter a espectros da morte como a personagens do carnaval carioca.

Classificada originalmente como uma tragédia carioca, A Falecida poderia também ser uma espécie de comédia de costumes ou até de farsa trágica. Mas, antes de tudo, a sua volta à cena no entremeio dos dissabores políticos que estamos vivendo nos últimos tempos é mais do que oportuna. Não só por seu recado de alerta ecoando até hoje, sete décadas após ter causado um escândalo na época em que veio à luz.

E na realidade contemporânea de um país fanatizado cada vez mais por extremismos religiosos, falsos moralismos, hipocrisia política e retrocessos comportamentais, seu retorno aos palcos estabelece, além de seu qualitativo ideário estético/teatral, a identificação de um conservadorismo radical que, infelizmente, ainda  teima em resistir...


                                         Wagner Corrêa de Araújo


A Falecida está em cartaz no Teatro Copacabana Palace, de quinta a sábado, às 21hs; domingo, às 20h, até 07 de abril.

A MENINA ESCORRENDO DOS OLHOS DA MÃE : UMA SENSORIAL TEXTUALIDADE DRAMATÚRGICA NO ENTORNO DE VERDADES SECRETAS


 Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe. Daniela Pereira de Carvalho/Dramaturgia. Leonardo Netto/Direção. Com Guida Vianna e Silvia Buarque. Fevereiro/2024. Fotos Nil Canindé.


A partir de uma poética e simbiótica titulação – A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe - Daniela Pereira de Carvalho surpreende, outra vez,  por intermédio de uma precisa e oportuna incursão dramatúrgica. Que chega sob a direção concepcional de outro craque do teatro carioca – Leonardo Netto – e com a potencialidade performática de duas exponenciais atrizes – Guida Vianna e Sílvia Buarque de Holanda.

Agora, pela exposição do arraigado preconceito de um núcleo familiar desafiado pela resistência no desvendar verdades secretas que, se reveladas e questionadas sem amarras, seriam capazes de provocar um cataclisma no relacionamento afetivo geracional, entre uma mãe, uma filha e uma neta.

Por aí já começa a se impor a fluência de um diferencial enredo onde três personagens são interpretadas, alternativamente, entre as duas atrizes na dialetação de um processo emocional que as coloca, frente a frente, em tempos distintos no compasso do tríplice momento de um conturbado histórico familiar.

Em simbólica ambientação cenográfica (Ronald Teixeira) onde a plasticidade exercida por folhas secas espalhadas pelo espaço dimensionado no formato arena, encimado por molduras de portas e janelas de tonalidades ancestrais, sugestiona a passagem do tempo. Ampliando-se no coloquialismo atemporal do figurino (em dúplice criação por Ronald Teixeira) e nos sempre expressivos efeitos luminares de Paulo Cesar Medeiros.


A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe. Daniela Pereira de Carvalho/Dramaturgia. Leonardo Netto/Direção. Com Guida Vianna e Silvia Buarque. Fevereiro/2024. Fotos Nil Canindé.

Na abordagem ficcional da vida de duas mulheres desdobrada na simultaneidade e na inversão dos papéis femininos, a começar do confronto de cobrança trinta anos depois por Elisa (Guida Vianna), uma mãe marcada pela idade septuagenária, com a filha Antônia (Silvia Buarque) já cinquentona  e na  condição de uma lésbica que nunca foi aceita no convívio domiciliar, tanto por sua genitora como pelo pai machista.

Seguindo-se uma transmutação personalista fazendo a velha mãe (Guida Vianna) se tornar a filha impugnada por sua opção sexual, agora no reencontro dela com a descendente sanguínea Helena (Silvia Buarque), fruto de uma gravidez indesejada e entregue à adoção pela preconceituosa Elisa.

Tanto Guida Vianna quanto Silvia Buarque de Holanda destacando-se na coesão do apelo confessional e no perceptível alcance de cada uma delas nas representações de um tríduo de mulheres em idades e épocas variadas. Com Guida Vianna na absoluta maturidade de um irrepreensível presencial cênico, ao lado de Silvia Buarque num rompante grau de espontânea luminosidade.

Numa trama mirabolante, sob um subliminar sotaque melodramático, mas nunca se deixando impregnar por um sentimentalismo barato e de superficialidade novelesca, graças à habilidade autoral presente nas escrituras dramatúrgicas de Daniela Pereira de Carvalho.

E na maestria e na autoridade cênica demonstrada aqui na exploração de temas tão necessários como a disfunção familiar, indo dos embates machistas à afirmação feminista, paralela ao ato de  denunciar qualquer  postura retrógada e  avessa à condição LGBT.

Extensiva ao brilhante trato direcional imprimido por Leonardo Netto aos conflitos e à polemização das trajetórias pela livre identificação sexual, entre o passado e o presente com o olhar armado no futuro, na esperança de que dias melhores virão. Sabendo, antes de tudo, se sintonizar na contemporaneidade e na conexão com o melhor do teatro atual.


                                            Wagner Corrêa de Araújo


A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quinta a domingo, às 19h. Até 31 de março.



LADY TEMPESTADE : QUESTIONADORAS DIALETAÇÕES DRAMATÚRGICAS PARA OBSCUROS TEMPOS POLÍTICOS


87
Lady Tempestade. Silvia Gomez/Dramaturgia. Yara de Novaes/Direção. Com Andrea Beltrão. Janeiro/2024. Fotos/Nana Moraes/Felipe Ovelha.

Um tributo cênico aos perseguidos, aos desaparecidos ou aos mortos sem sepultura num compasso sartreano, sob uma das mais tormentosas eras da história política brasileira. Como uma lembrança reflexiva à resistência entre o ontem e o hoje, no entorno da passagem dos sessenta anos de um infame período de turbação da liberdade e dos direitos humanos.

Este poderia ser, em síntese, o emblemático sentido do espetáculo Lady Tempestade, concebido na conexão de significativas vozes femininas do universo teatral brasileiro, numa  tríplice integralidade visceral, indo da textualidade dramatúrgica de Sílvia Gomez à atuação performática de Andrea Beltrão, com direção concepcional de Yara de Novaes.

Num ideário luminoso unindo ficcionalização cênica e verismo documentário, a partir dos escritos confessionais de uma memorável advogada pernambucana (Mércia Albuquerque - 1934/2003). Mulher que empenhou toda sua trajetória existencial e jurídica como uma combativa defensora dos perseguidos pela ditadura de 1964, logo após testemunhar a degradante condução pelas ruas de Recife do ensanguentado militante Gregório Bezerra.  

Ainda que esta também sofresse com as mesmas penas da repressão militar que acabariam levando-a a ser presa, tal qual como uma terrorista por doze vezes, em processo identitário ao das vítimas que defendia. Corpo, sangue e alma, numa absoluta entrega ao idealismo de uma missão pelo resgate humanitário de vidas, sem quaisquer intuitos de compensação financeira.

Lady Tempestade. Silvia Gomez/Dramaturgia. Yara de Novaes/Direção. Com Andrea Beltrão. Janeiro/ 2024. Fotos Nana Moraes/Felipe Ovelha.

Tudo sendo dimensionado esteticamente na eficácia de uma narrativa dramática/documental (Sílvia Gomez) e no pulso de um comando cênico (Yara de Novaes) instaurando o conluio de um texto manifesto formatado em solilóquio.  Onde Andrea Beltrão ora é uma personagem feminina apenas leitora solidária dos diários de Mércia Albuquerque, ora é transmutada pela palavra teatral por intermédio de traumáticos relatos memorialistas.

Transmitindo em convicta passionalidade interpretativa os árduos caminhos de luta em prol dos prisioneiros ou dos desaparecidos, ouvindo inclusive os apelos de seus familiares, em época da imposição militar da obrigatoriedade do silêncio ou do calar-se definitivamente, sob ameaças de atrocidades fatalistas. 

No despojamento de um figurino cotidiano (Marie Salles) e de uma minimalista caixa cênica (Dina Salem Levy) preenchida apenas por um sofá, um microfone de pedestal e uma mesa de manipulação da trilha sonora criada por Chico BF, filho da atriz. Este, ali, com um referencial metafórico das mães aflitas sobre o destino desconhecido de seus descendentes perdidos nos subterrâneos da opressão.

Convergindo entre luzes sombreadas (Sarah Salgado e Ricardo Vivian) para a plasticidade de um azul de profundidades marítimas, como se ocultasse ali os corpos dos exterminados e a decifração das causas de tantas mortes insepultas, ampliando-se a patética dor da representação nos acordes sinfônicos, melancolizados mas libertários, da 9ª de Beethoven.

Num incisivo recado sinalizado na atemporalidade da advertência pelo que aconteceu no passado, com um olhar armado no futuro diante do desafio de que tudo poderia acontecer de novo, exemplificado no referencial da tentativa recente do iminente risco de um golpe que repetiria a sexagenária saga de desmandos ditatoriais.

Ecoando, sempre, desde a auto definição que leva ao título da peça (“minha mãe é bonança, eu não, sou tempestade”) em andamento reiterativo de um leitmotiv verbal, no questionamento de um mistério estigmatizado através da instigante frase :

"Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”...


                                               Wagner Corrêa de Araújo

   

Lady Tempestade está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 04 de fevereiro.

18º PRÊMIO APTR - OS INDICADOS 2023

A Aforista. Marcos Damaceno./Direção Concepcional. Sete indicações. Foto/Renato Mangolin.


 18º PRÊMIO  APTR - 2023 - OS INDICADOS

 

AUTOR

 

Maurício Arruda de Mendonça (Brás Cubas)

Gustavo Gasparani (Julius Caesar - Vidas Paralelas)

Marcos Damaceno (A Aforista)

Vinícius Calderoni (Museu Nacional)

Rafael Souza Ribeiro (Cerca Viva)

 

DIREÇÃO

 

Paulo de Moraes (Brás Cubas)

Marcos Damaceno (A Aforista)

Ana Teixeira e Stephane Brodt (Furacão)

Gustavo Gasparani (Julius Caesar - Vidas paralelas)

Denise Stutz e Duda Rios (Azira' I)

 

CENOGRAFIA

 

Natália Lana (Como Posso Não Ser Montgomery Clift?)

Ana Teixeira e Stephane Brodt (Furacão)

Carla Berri e Paulo de Moraes (Brás Cubas)

Nello Marrese (Kafka e a Boneca Viajante)

Fábio Ferreira (Restos na Escuridão - Engenharia reversa)

 

FIGURINO

 

João Pimenta (Kafka  e a Boneca Viajante )

Lucas Marcier (Restos na Escuridão)

Karen Brusttolin (A Aforista)

Danny Vidal e Ney Madeira (Beetlejuice)

Wanderley Gomes (Admirável Sertão de Zé Ramalho)

 

ILUMINAÇÃO

 

Vilmar Olos (Como Posso Não Ser Montgomery Clift)

Beto Bruel (A Aforista)

Renato Machado (Furacão)

Ana Luzia de Simoni (Azira'I)

Elisa Tandeta (Diário de um Louco)

 

ATOR EM PAPEL PROTAGONISTA

 

Eduardo Sterblicht ( Beetlejuice)

Milhen Cortaz (Diário de Um Louco)

Gustavo Gasparani (Como Posso  Não Ser Montgomery Clift)

Gustavo Damasceno (Uma Outra Revolução dos Bichos)

Clayton Nascimento (Macacos)

 

ATRIZ EM PAPEL PROTAGONISTA

 

Rosana Stavis (A Aforista)

Sirlea Aleixo (Furacão)

Carolina Virgüez (Restos na Escuridão)

Ana Beatriz Nogueira (Sra. Klein)

Alessandra Maestrini (Kafka e a Boneca Viajante))

 

ATOR EM PAPEL COADJUVANTE

 

Xando Graça (Gente de Bem)

André Dias (Kafka e a Boneca Viajante)

Felipe Frazão (Museu Nacional)

Isio Guelman (Julius Caesar- Vidas Paralelas)

Tiago Herz (Admirável Sertão de Zé Ramalho)

 

ATRIZ EM PAPEL COADJUVANTE

 

Tati Aleixo (Furacão)

Beth Goulart (Cerimônia do Adeus)

Karen Coelho (O Menino é o Pai do Homem)

Carol Garcia (Kafka e a Boneca Viajante)

Verônica Bonfim (Na Palma da Mão)

 

MÚSICA


Gilson Fukushima (A Aforista)

Stephane Brodt (Furacão)

Beto Lemos e Alfredo del-Penho (Museu Nacional)

Chico César (Viva o Povo Brasileiro)

Elton Towersey (Se Essa Lua Fosse Minha)

 

DIREÇÃO DE MOVIMENTO

 

Suely Guerra e Roberta Serrano (Beettlejuice)

Paulo Mantuano (Restos na Escuridão)

Paula Águas e Toni Rodrigues (A Hora do Boi)

Marcia Rubin (Kafka e a Boneca Viajante)

Renato Vieira (Noel - Coisa Nossa)

 

ESPETÁCULO

 

Brás Cubas

A Aforista

Furacão

Azira'I

Restos na Escuridão

 

JOVEM TALENTO

 

Elenco e equipe criativa de "Se Essa Lua Fosse Minha"

Zahy'I (Azira)

Mattilla (Los Hermanos)

Lorena Lima (Brás Cubas)

Danilo Maia (Latitude dos Cavalos)

 

A Comissão Julgadora que escolheu os indicados do  Prêmio APTR 2023 foi composta por Beatriz Radunsky, Carmen Luz, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Tania Brandão e Wagner Corrêa.  As peças com maior número de indicações foram  A Aforista, de Marcos Damaceno, Brás Cubas, de Paulo de Moraes e Kafka e a Boneca Viajante, de João Fonseca.

Brás Cubas. Armazém Cia de Teatro/Paulo de Moraes. Cinco indicações. Foto/Mauro Kury.

A INQUILINA : TRANSGRESSIVA E AMOROSA TRANSMUTAÇÃO COMPORTAMENTAL ENTRE DUAS MULHERES


A Inquilina. Jeen Silverman/Dramaturgia Fernando Philbert/Direção. Janeiro/2024. Fotos/Erik Almeida/Pino Gomes.



Jeen Silverman vem se destacando na última geração norte americana de dramaturgos e escritores que escrevem para os palcos e para a televisão. E é uma de suas recentes criações - A Inquilina (The Roommate) que chega agora aos palcos brasileiros em mais uma das acuradas traduções de Diego Teza.

A partir de um ideário comum das atrizes Luisa Thiré e Carolyna Aguiar não só na similaridade aproximativa da idade delas com a das duas personagens da peça, conectado ao significativo simbólico da meia idade para todas as mulheres, como uma ressignificação do próprio ato de viver a partir desta fase etária.

Apoiado por mais uma das personalistas concepções direcionais de Fernando Philbert que vem se destacando, com perceptível habitualidade, por suas singulares incursões cênicas em significativas criações da dramaturgia contemporânea.

Desta vez contando, além de uma convicta dupla de atrizes, com o conluio de uma equipe tecno artística de primeiro time, integralizada no absoluto acerto cenográfico de Beli Araújo e no requinte de sempre dos figurinos de Karen Bustolin acentuando, aqui,  as radicais mutações psicofísicas na personagem de Sharon (Luísa Thiré).



A Inquilina, de Jeen Silverman. Com Luiza Thiré e Carolyna Aguiar. Janeiro/2024. Fotos/Erik Almeida/Pino Gomes.

Extensivo ao energizado sotaque imprimido pelas escolhas musicais de Rodrigo Penna que potencializam a corporeidade gestual cotidiana das duas atrizes através da envolvente direção de movimento (Toni Rodrigues) nas passagens dance music, sob as diferenciais tonalidades do design de luz (Vilmar Olos).

Tudo se iniciando com a chegada da nova locatária de Sharon (Luiza Thiré), para preencher o vazio e a solidão de seu tedioso cotidiano na província, interrompido pelas raras chamadas  telefônicas do distanciado filho designer. Ou pelos repetitivos encontros das amigas em um clube de leitura.

A inquilina Robyn (Carolyna Aguiar), vinda diretamente do Bronx nova-iorquino, supreeendendo pelo despojamento de seus looks assumidamente joviais, contrastando com a sobriedade "careta" da indumentária doméstica da hospedeira Sharon (Luiza Thiré), embora ambas portem faixas etárias de mulheres cinquentonas.

E é com natural impulsividade que Robyn se declara identitariamente como uma rigorosa vegana, gay assumida e fumante inveterada, incluídos aí seus tragos maconhais. Toques comportamentais que ela vai contrapondo às perceptíveis marcas de timidez e conservadorismo de Sharon.  

Onde já começa a se estabelecer o dimensionamento de uma completa química entre as duas atrizes capaz, assim,  de  contagiar o público com um riso fácil ao ver a progressiva e quase burlesca adesão de Sharon às pulsões e posturas  avançadas de Robyn.

Mas quando esta transmutação súbita de interativa ousadia entre as duas vai ultrapassando os limites, Sharon já não se reconhece mais no seu antigo papel de ter sido até ali apenas uma mãe divorciada e melancólica dona de casa, contando apenas com as ocasionais chamadas do filho ausente ou a troca de conversas com as comparsas de leituras literárias.

Da aparente ingenuidade na reconquista da sensual alegria de viver sem padrões limítrofes no além da juventude perdida, ao ápice de uma transformação ancorada à beira dos ásperos riscos de incentivo às atitudes subliminarmente condenáveis, desde os golpes financeiros ao roubo, como partes do dia-a-dia existencial, prevalece a maestria de uma luminosa lição performática destas duas atrizes.

Com o direcionamento ao risível irônico se metamorfoseando em investigativo processo psicológico de mergulho em duas mentes opostas e que, sequencialmente, vão se amoldando uma a outra pelo domínio avassalador exercido reciprocamente entre elas, A Inquilina acaba se sustentando esteticamente como uma comédia dramática entremeada por sutis traços de humor negro.

Longe de quaisquer rótulos acomodativos  sem deixar de expor, lado a lado, da corajosa redescoberta das razões do viver refletindo especularmente sobre as nossas próprias identidades, ao desafio de novas trajetórias existenciais apresentadas, mesmo diante do perigo de sermos derrotados por isto ou por aqueles aos quais nos prendemos sem conseguir escapar...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo



A Inquilina está em cartaz no CCBB/Teatro II, de quinta a sábado, às 19hs; domingo, às 18h.  Até 04 de fevereiro.

VAN GOGH ENTRE CORVOS : CRIATIVIDADE DELIRANTE EM REESTREIA NECESSÁRIA


Van Gogh Entre Corvos. Ary Coslov/Marcelo Aquino/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção. Janeiro/2024. Fotos/Guga Melgar.


“Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno”.

De Antonin Artaud a Vincent Van Gogh, entre os expelidos do mundo, a inspiração para uma das mais simbológicas reestreias teatrais da temporada – “Van Gogh Entre Corvos", com dramaturgia conjunta de Marcelo  Aquino / Ary Coslov, retomando sob novos dimensionamentos a montagem original de 2016.

Recluso em manicômios, quase uma trajetória existencial inteira, este escritor, poeta, ator e dramaturgo  francês notabilizou-se, nesta condição ímpar, por sua notável passagem pela criação artístico/literária  francesa da primeira metade do século XX.

Sua metafórica denominação do “Teatro da Crueldade” não remetia diretamente à violentação corporal mas a um impulso de delirante criatividade – “Uso a palavra crueldade no sentido gnóstico de trabalho e vida que devora as trevas”.

E, assim, partindo do eco contemporâneo do ensaio, de 1947, O Suicidado da Sociedade, transcendendo os limites palco/plateia, a convicta entrega performática do ator protagonista Marcelo Aquino, com exponencial direção teatral (Ary Coslov) e de movimento (Ana Vitória), concretiza uma singular criação teatral.


Van Gogh Entre Corvos. Ary Coslov/Marcelo Aquino/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção. Janeiro/2024. Fotos/Guga Melgar.


Aqui, vozes, gestos e atos estabelecem um visceral discurso ideológico contra as falácias psiquiátricas, as convenções sociais, o moralismo religioso, a impossibilidade de amar. Contra tudo e contra todos, pela liberdade da condição humana.

Numa minimalista concepção cenográfica e figurinos cotidianos, que Ary Coslov acumula ao seu comando mor, é alcançada a pureza e a magia poética da representação, mesmo na sua assumida dissecação cruel das vísceras, do sangue e da alma.

Onde o clima de fantasia sob ultra sensitivo suporte musical (pelo bom gosto da seleção de Ary Coslov) é, ainda, alcançado  pelo ambiental desenho das luzes (Aurélio de Simoni) e pela retomada da ideia original da mostra Artaud/Van Gogh - Le Suicidé de La Société, Musée D’Orsay (2014), na animação visual do quadro Campo de Trigo Com Corvos.

O incisivo e emotivo gestual (Ana Vitória), na sua investigativa exploração da fisicalidade, encontra  um simbológico referencial no próprio Artaud – “Deixem que dance enfim a anatomia humana”.

A adição de textos literários de autores e épocas diversas, citações imagéticas, em fotos e vídeos, culmina no espanto e no doloroso questionamento do texto final. Catártico ao arrastar a uma imediata empatia coletiva.

E capaz de dar absoluta autoridade carismática à performance de Marcelo Aquino, numa mistura incendiária - personagem>espectador>Artaud - cada um representando a sua vida, em enigmático e provocante  elo :

“Vocês são eu e eu não sou vocês”...

 

                                         Wagner Corrêa de Araújo

 

Van Gogh Entre Corvos está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, às terças e quartas, às 20hs, até o dia 26 de março. 

RETROSPECTIVA TEATRAL 2023 : SURPRESAS CÊNICAS EM ANO DE MAIOR LUMINOSIDADE NOS PALCOS

Julius Caesar -Vidas Paralelas. Gustavao Gasparani/Direção Concepcional. Janeiro/2023. Foto/Nil Caniné/Batman Zavarese.

 

Aos poucos o teatro vai retomando sua energia  depois de um interregno de crise pandêmica e de um quadriênio de políticas culturais equivocadas. Mesmo que ainda não tenha alcançado seu ponto ideal e ainda falte o incentivo financeiro necessário a maiores investidas, 2023 trouxe algumas grandes revelações.

O teatro, de sotaque subliminar mais clássico, destacando-se com a primorosa direção concepcional, dos palcos paulistas aos cariocas, imprimida por Sérgio Módena para a Longa Jornada Noite Adentro, densa trajetória psicodramática sob as nuances de um realismo poético, intermediando sangue e alma, no clima memorialista de Eugene O’Neill. Perceptível também em outra das incursões brechtianas (A Exceção e a Regra) de Luiz Fernando Lobo no Armazém da Utopia, por um teatro engajado que possibilita o lúdico direcionado à reflexão política, com um vigoroso avanço cênico.

Ou ainda no transcendente conceitual com um recorte estético contemporâneo que Gustavo Gasparani deu à sua meta releitura que conecta Shakespeare e Plutarco em Julius Caesar – Vidas Paralelas, num instigante mergulho no processo investigativo da criação teatral, pela Cia. dos Atores. Por falar em Gasparani este soube, pleno de paixão e convicta entrega, revelar sua contundência atoral fruto de quatro décadas, em Como Posso Não Ser Montgomery Clift, do dramaturgo contemporâneo espanhol Alberto Lopez, com artesanal direção de Fernando Philbert.

De Curitiba veio uma carismática Rosana Stavis em formato monologal na exponencial montagem de A Aforista, de Marcos Damaceno com livre inspiração num ideário ficcional de Thomas Bernhard. E de BH, uma empática imersão numa proposta diferencial traz de volta o Grupo Galpão no Cabaré Coragem, enquanto é de lá também a original releitura de Vestido de Noiva, dimensionada, aqui, como um quase exclusivo teatro coreográfico do Grupo Oficcina Multimédia (Ione de Medeiros).


A Aforista. De Marcos Damaceno, a partir de Thomas Bernhard. Com Rosana Stavis. Fevereiro/2023. Foto/Renato Mangolin.

No entremeio da prevalência de representações solo, tornando-se obrigatória a contundente afirmação da negritude, levada às culminâncias  na proposta cênica/autoral do paulista Clayton Nascimento em Macacos. Como as transmutações do comportamental dramatúrgico inserido no bravo empoderamento do feminino, por intermédio das atrizes Cris Mayrink (O Som e a Fúria em Lady Macbeth) e Rose Abdallah (Só Vendo Como Dói Ser Mulher do Tolstói).

Sem deixar de ressaltar também o desafio das causas raciais identitárias por uma impactante atriz negra (Sirlea Aleixo) em Furacão, outra das icônicas criações do Amok Teatro, de Ana Teixeira/Stephane Brodt, dando um sério recado sobre o ódio propugnado pelo racismo junto aos riscos da terminalidade ambiental.

Estendendo-se este posicionar-se na integralização de um retrato sem retoques do legado conceitual para um Cânone Gay, na simbologia de tons épicos assumida pela representação paulista de A Herança, de Matthew Lopez, por Zé Henrique de Paula. Com grande elenco e em dois segmentos, para falar de um passado devastador e de um horizonte ainda pleno de hostilidade e preconceito.

No universo dos musicais a la Broadway, o mais jovem idealizador do gênero Gustavo Barchilon, navegando da aventura caricatural do Bob Esponja, em compasso fantasioso capaz de envolver crianças e adultos, ao revival inventivo de Funny Girl numa energizada projeção de contemporaneidade. Ao lado de outras esmeradas incursões da dupla Moeller/Botelho (Mamma Mia e Jovem Frankenstein) ou de Tadeu Aguiar (Beetlejuice o Musical).

Mas não podemos deixar de mencionar entre as variadas experimentações de um teatro musical inspirado na brasilidade, criações com a especial singularidade camerística de Noel Rosa: Coisa Nossa, sob uma lírica textualidade dramatúrgica de Geraldinho Carneiro com acertada direção concepcional de Cacá Mourthé. Ou, em similar linhagem cênica/musical, a despretensiosa jovialidade do musical paulista Se Esta Lua Fosse Minha, de Vitor Rocha, capaz de tocar, com sua emotiva ingenuidade poética, quaisquer idades ou o mais indiferente e acomodado espectador.

O mesmo acontecendo com a sensorial releitura dramatúrgica/musical que Rafael Primot fez para os encontros imaginários entre Kafka e a Boneca Viajante, transcendidos em  expressiva carga estética pelo empenho direcional de João Fonseca. Ainda na transposição livro/palco, aqui sustentada por uma escritura psicanalítica, a peça Sra. Klein fazendo uma abissal imersão nos espaços siderais da mente, no conluio do apurado comando de Victor Garcia Peralta a uma sublimada atuação titular de Beatriz Nogueira.

E é com lastro literário que vamos encerrando esta breve retrospectiva teatral em peças baseadas na obra de alguns escritores referenciais. A começar do belo conceitual de construção dramatúrgica por Daniela Pereira de Carvalho, valendo-se de passagens sertanistas de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa, para A Hora do Boi, protagonizada por Vandré Silveira.

Extensiva à sua sólida parceria concepcional com Bruce Gomlevsky, nas expressivas adaptações dramatúrgicas do livro de George Orwell, agora em formato solista titulado como Outra Revolução dos Bichos, entre a encenação realista e o onirismo, interpretada com raro brilho, por Gustavo Damasceno.

Voltando à relação teatro e literatura, tornando-se absolutamente obrigatório para quem não viu ou quer rever o Brás Cubas, destaque absoluto do ano teatral tendo como ponto de partida um dos personagens mais polêmicos de Machado de Assis. Onde Paulo de Moraes e a Armazém Cia de Teatro, com sua potencial gramática cênica e pulsante inventário dramático sintoniza, com emblemática maestria, seu enigmático tempo ancestral, aos questionamentos do mundo de hoje e nos mistérios da interioridade de cada um de nós...


                                       Wagner Corrêa de Araújo



Brás Cubas. Armazém Cia de Teatro/Paulo de Moraes. Setembro/2023. Foto/Mauro Kury.

Recente

LYGIA : REINVENÇÃO DO PAPEL DO ARTISTA EM SENSORIAL DIMENSIONAMENTO CÊNICO

Lygia. Dramaturgia/Direção Concepcional/Maria Clara Mattos/Bel Kutner. Com Carolyna Aguiar. Março/1924. Fotos/Leekyung Kim.   Coube à artist...