FAUSTO : INVESTIMENTO ESTÉTICO PELA REDENÇÃO DA ÓPERA EM PALCO BRASILEIRO

FOTOS / ANA CLARA MIRANDA

O emblemático  questionamento metafísico da condição humana sob o apelo da magia, entre a espiritualidade e os prazeres, a partir da Trágica História do Doctor Faustus, peça de 1604 do poeta e dramaturgo elizabetano Christopher Marlowe, com base numa lenda germânica, serviu de mote inspirador para clássicas incursões de outras linguagens artísticas.

Com similar titulação de Fausto no poema dramático de F. W. Goethe, 1829, e sua transposição na ópera lírica de Charles Gounod, de 1859, e no filme expressionista de F.Murnau, 1929, além do épico ficcional de Thomas Mann, 1947, nominado Doktor Faustus, com um referencial temático tributário.

Foi, finalmente, a  ópera Fausto que celebrizou o nome de Charles Gounod na ambiência da então ascendente  grande ópera lírica francesa, com êxito que só se repetiu, na mesma dimensão composicional/operística, em sua obra seguinte Romeu e Julieta.

Tendo, inclusive, alcançado os principais teatros do gênero, da Europa a Nova York, onde praticamente impulsionou historicamente, em 1883, a trajetória inicial da Metropolitan Opera House, sendo um dos recordes de montagens naquele palco até sua  transmutação no Lincoln Center.

Com seu substrato narrativo em torno do pecado e da salvação, entre o céu e o inferno, através de um pacto que seu personagem titular, num contexto de (anti) herói  faz com Mefistófeles para voltar à juventude e alcançar o amor de Marguerite. Num libreto onde há o contraponto exemplar entre o virtuosismo  vocal e o embate da pureza espiritual diante da tentação corporal.

Ausente do repertório do Municipal carioca há meio século, Fausto retorna como um arrojado folego para tempos de permanente enfrentamento da crise em seus corpos artísticos oficiais. Em bela produção original do Festival de Ópera de Manaus, edição de 2018, sob direção concepcional de André Heller-Lopes.

Onde há que se destacar o apuro plástico de sua paisagem cenográfica (Renato Theobaldo e Beto Rolnik) a partir de estruturas móveis com referencial estético de vitralismo e arquitetura gótica. Completando-se na discricionária elegância indumentária (Sofia de Nunzio) e sempre ressaltada nos efeitos luminares (Gonzalo Cordova) ambientalistas sob tonalidades, ora  sépias, ora aquareladas.

Mesmo com a segurança da conduta de um experimentado maestro no gênero, Ira Levin, a OSTM vez por outra não alcança o resultado desejado para uma partitura sem grandes ousadias mas de sutil tapeçaria lírica francesa. Consequência perceptível das instabilidades e no desafio pela completa reconstituição de seus diversos naipes sem o necessário aporte financeiro. Problemática também de um Corpo Coral sem perspectivas de renovação em seus quadros.

A cena de balé Noite de Walpurgis, sem maiores avanços gestuais/coreográficos de Luiz Bongiovanni, soube como bem aproveitar as potencialidades neoclássicas do Corpo de Baile (também sujeitando-se a um de seus mais delicados momentos), com uma original utilização de moldura especular sob significante lastro do esteticismo oscarwildeano na incessante busca da juventude perdida.

Uma integralizada performance do elenco protagonista demonstrou dignidade presencial e convincente apuro vocal, ao lado de um consistente coro e bom staff coadjuvante, com um mais que especial destaque no personagem Valentin, da desenvoltura no porte físico à intensidade da tessitura baritonal de Homero Velho em Avant de Quitter Ces Lieux.

Da requintada flexibilidade como baixo barítono (Sérenade) e na exposição do carácter de malignidade (Le veau d'or) de Homero Pérez-Miranda como Mefistófeles à aveludada qualidade tonal (Salut!demeure chaste et pure) e à transparência representativa de um mais musical que dramatúrgico Fausto pelo tenor Atalla Ayan. Extensiva às gradações de potencial fraseado expressivo na coloratura vocal (Ária das Jóias) e na irradiante personificação da inocência e da culpa (Il etait un Roi de Thulé) nesta Marguerite da soprano Gabriella Pace.

Uma artesanal tarimba e convicta autoridade de regisseur, por Andre Heller-Lopes, fizeram deste Fausto um produto bem acabado como espetáculo operístico/teatral. Sintonizado em sólido investimento estético, sob o sustentáculo de uma funcional gramática cênica, para possibilitar a redenção da ópera no crítico contexto vivenciado pela criação cultural brasileira.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


FAUSTO, ópera de Gounod, está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, de 14 a 28 de julho, em horários diversos e na alternância de dois elencos. 180 minutos, com dois intervalos

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