O PRINCÍPIO DE ARQUIMEDES: A TORTURA DA SUSPEITA


FOTOS/AGUINALDO FLOR/FERNANDO CUNHA JR.

O imaginário em torno da dúvida pode levar à suspeição, neste  jogo de aparências entre o que se diz a partir do que se viu e ouviu, estabelecendo-se um insano duelo entre a verdade e a mentira, a indecisão e o esclarecimento. Capaz de abalar a fé mais sólida  e levar ao chão qualquer princípio de esperança.

É, exatamente, sobre o veloz poder circulatório da desconfiança direcionando-se para a calúnia de que trata a trama O Princípio de Arquimedes, do conceituado dramaturgo de origem catalã Josep Maria Miró. E que chega agora aos nossos palcos com a Lunática Companhia de Teatro, sob artesanal direção de Daniel Dias da Silva.

Que, por sua vez, possibilita um discurso cênico, sob o ângulo da contemporaneidade, da manifestação do preconceito ou do "politicamente correto" levado aos extremos.  Além da maledicência verbal, inclusive na avassaladora pulsão das  mídias virtuais , ao disseminar uma denúncia como favorecimento  do bem comum.

Com seu referencial dramatúrgico em duas clássicas incursões do teatro e do cinema norte-americano, a partir de peças originais de Lillian Hellman (The Children’s Hour, 1930) e John Patrick Shanley ( Doubt, 2004), onde o conceitual básico é o dúplice confronto entre a homofobia e a pedofilia.

Numa escola de natação, a partir de um comentário postado no facebook sobre um possível flagrante de assédio sexual a um menino, via um beijo dado por seu instrutor Rubens (Cirillo Luna), estabelece-se um “estado de suspeita”. Sequencialmente, provocando  a revolta de David - o  pai (Sávio Moll), a desconfiança de Heitor - o outro professor( Gustavo Wabner), e o ressentimento de Ana - a diretora(Helena Varvacki) do estabelecimento.

Questionado, o suspeito justifica-se como prática de inocente ato de carinho e de estímulo diante da intimidação pueril da criança no obrigar-se “didático” ao mergulho na piscina.Mesmo diante de um lastro de potencial contundência como a presença de uma sunga infantil em seu armário.

E nesta controversa dialética, entre  pai,  diretora e professores/parceiros, quem é conduzido à cumplicidade, num ato do pensar reflexivo, optando pela culpa ou na certeza, entre o não acreditar ou condenar , é um impactado espectador.

Este é o grande lance de empatia –palco/plateia – que o comando diretorial (Daniel Dias da Silva) conduz com maestria, sintonizando enérgica fisicalidade (Sueli Guerra) e pura emoção, em avanços dramáticos de incisiva ambiguidade.

Onde a própria arquitetura cenográfica (Cláudio Bittencourt), na  inversão da mobilidade ambiental de painéis, amplifica a oposição psicológica dos argumentos, sob luzes(Wallace Furtado/Vilmar Olos) vazadas, com visível opacidade, sobre recatada indumentária(Victor Guedes).  

Em que o elenco, na sua convicta entrega à representação de um conflito de vontades, torna perceptível a coerção dos mecanismos sociais pela irrestrita defesa do establishment, do conservadorismo comportamental aos dogmatismos  político/morais.

Ora pela episódica mas detonadora intervenção paterna por Sávio Moll, ora na inconstância  pela tomada de partido na personificação de Gustavo Wabner. 

Ou no insistente apelo de  inocência e na  recusa de assumir a vulnerabilidade da culpa, em consistente exploração do papel por Cirillo Luna. 

E no doloroso personagem de Helena Varvacki, entre a angústia  de compactuar ou não com a tortura da suspeita, numa das mais cativantes performances da temporada.

                                                  Wagner Corrêa de Araújo


O PRINCÍPIO DE ARQUIMEDES está em cartaz, no Sesc/Tijuca, de sexta a domingo, às 19h. 80 minutos. Até 1º de outubro.

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