QUERIDO BRAHMS : KREISLERIANA FANTASIA DE AMOR


Eis aqui de novo um daqueles que aparece como se mandado diretamente por Deus”- palavras do diário de Clara Schumann na promissora chegada de Johannes Brahms, em Dusseldorf. Naqueles atormentados anos em que um colapso mental levara Robert Schumann a se atirar de uma ponte no Reno , numa trajetória trágica que apenas começara.

Grávida do sétimo filho, já há algum tempo Clara tinha deixado de ser a mais famosa musicista feminina (pianista e compositora) da Europa para cuidar dos filhos, da vida doméstica e da carreira do próprio marido. Este , agora, mais dependente dela, nos seus constantes delírios e obstinações insanas.

Também Schumann registra em seu diário – “Visita de Brahms, um gênio” e diz entusiasmado a Clara – “”Agora você vai ouvir música como jamais ouviu”.

E em dias de alegria em meio às crises mentais, uma nova energia une aqueles três músicos, falando de música apenas música. Um envolvimento emocional capaz até mesmo de levar ao idealístico sonho da retomada dos concertos públicos de Clara, sob a estimulante admiração de Brahms.

Inspirada nesta lírica sonata de amor, a peça “Querido Brahms”, escrita por José Eduardo Vendramini, tem no seguro comando de Tadeu Aguiar o alcance da medida certa, ao superar certa linearidade do enredo dramatúrgico com uma sensível e intimista performance do elenco.

Nele fica bem enunciada a exposição expressiva da dedicação de Clara (Carolina Kasting) e o angustiado gestual nervoso de Schumann (Werner Schünemann). E uma mais recatada interpretação da leal postura de Brahms ( Olavo Cavalheiro)é compensada na poética vocalização de um " lied" de Schumann.

Os elegantes figurinos (Ney Madeira/Dani Vidal) e a cenografia (J. C. Serroni) revelam uma nuance dos melodramas cinematográficos anos 40/50( incluída a versão da mesma história por Clarence Brown (1947,“Song of Love”). Acentuada, ainda, com a harmoniosa trilha sonora (Miguel Briamonte) sob “leitmotifs” de Clara/Schumann/Brahms.

Neste clima de romantizada confluência de espíritos artísticos, estabelece-se um triangulo de amizade e uma paixão que vai se estender muito além do fim de Schumann, num asilo para loucos .

Quando Clara, finalmente, ao lado de um não mais velado amor de Brahms (“não posso mais existir sem você”), reconhece que “toda felicidade desaparece com aquela morte. Mas uma vida nova começa para mim”.

                                                WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO


MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ: À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS



Para o sociólogo Max Weber, “burocracia e burocratização são processos inexoráveis ou seja inevitáveis e crescentes, presentes em qualquer tipo de organização, seja pública ou privada”. Ainda que a rigidez administrativa e o exagero de regulamentos tornem-se , na maioria das vezes, inadequados e quase ilegítimos na sua opressividade.

Palavras que podem ser um referencial para a conceituação e apreensão do surpreendente fluxo progressivo que esta forma de dominação social legitimada exerce no desenvolvimento da trama dramatúrgica de “Mantenha Fora do Alcance do Bebê”.

O texto, o segundo de um promissor talento da nova geração de autores do teatro brasileiro, faz de Silvia Gomez uma expoente das vertentes do surrealismo e da absurdidade.

Quando ,através de uma proposta temática, aparentemente ingênua, contida na singularidade da própria expressão popular que titula a peça, mostra uma mulher (Débora Falabella) diante de uma assistente social (Anapaula Csernik) postulando um bebê.Nada poderia ser mais cotidianamente trivial.

O que não se espera jamais é como o mero preenchimento de um questionário, para atender aos requisitos técnicos /administrativos de uma instituição assistencial, será capaz de provocar um estado de pânico total, nos planos físico e psicológico.

Numa situação insustentável de pressionamento da própria liberdade de escolha da entrevistada, escondida na mediocridade postural de uma inquisidora “burocrata”, a legalidade do procedimento conduz a uma caótica exposição de corações e mentes desequilibrados, entre a humanização e a animalização.

Neste ultimo aspecto, com a estranha, mas significante presença , de um funcionário literalmente travestido de lobo (Diego Darc).E que acaba levando à convocação emergencial de Rubens (Jorge Emil),marido da proponente à adoção filial, e único personagem nominalizado na narrativa cênica.

Completando-se, assim, a enérgica sintonização de performances, na ignara mordacidade moral de Anapaula Csernik, na superlativa imprevisibilidade comportamental de Débora Falabella, na instabilidade emocional de Jorge Emil e na irônica reticência de Diego Dac. Com adequados figurinos(Rosangela Ribeiro) , ambiental iluminação(Aline Santini) e precisas interferências sonoras(L.P.Daniel).

Nesta delirante arquitetura cênica habilmente conduzida por Eric Lenate , dublê de cenógrafo( numa contrastante estética "clean") , há uma exponencial exploração da verbalização insana e de uma delinquente corporificação à beira de um atentado terrorista.

Transmutando esta sombria atmosfera a la Thomas Hobbes de homens que são lobos dos homens, a possibilidade da saída pela filosofia hippie de Hair ( I Got Life) no coreográfico e libertário epílogo:

Eu tenho vida, mãe/ Eu tenho risos, irmã/ Eu tenho liberdade , irmão/Eu tenho bons momentos, cara/ (...) Eu tenho vida/Vida/VIDA!!!”

                                                     WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO


2500 POR HORA : ESSENCIAL TEATRO DE BOLSO


FOTOS / GUGA MELGAR

Teatro de bolso, teatro mínimo, teatro didático, teatro pobre, teatro de câmara, teatro dentro do teatro?

Um pouco de cada uma destas alternativas, de simbologia minimalista ou de significado singular, poderia ser aplicado à original proposta de “2500 Por Hora”,criação dos franceses Jacques Livichine e Hervée de Lafond.

Com um mínimo de recursos técnicos e cênicos, cinco atores e dois músicos, 60 minutos ultrapassados assumidamente em mais meia hora, com a oportuna inclusão da dramaturgia brasileira, acontece uma maratona milenar de história teatral conduzida, com especial habilidade criativa, por Moacir Chaves.

Sem uma rígida ordem cronológica, o imaginário e o realista, a verdade e a metamorfose,o histrionismo e o drama, desfilam em passagens , personagens e conceitos de Pirandello, Tchekhov, Molière,Feydeau, Eurípides, Shakespeare,Artaud, Brecht, Goethe, Beckett , Martins Pena e Nélson Rodrigues.


Uma cenografia (Sérgio Marimba) simplificada de moduláveis de ferro e madeira, com adequados figurinos (Inês Salgado) e precisas incidências musicais ao vivo (Tomás Brandão/Mendes) sob recatada iluminação (Aurélio de Simoni), sugestiona, na instantaneidade das cenas, um dinamismo referencial de tomadas cinematográficas.

Além, é claro, de um visível e coeso desempenho do elenco (Cláudio Gabriel, Henrique Juliano, Joelson Medeiros, Júlia Marini e Mônica Biel) sustentando o equilíbrio diante da diversidade de gêneros dramatúrgicos, tipos e situações performáticas.

Mesmo que incorra em pequenas quebras do ritmo, normais pela fragmentação do texto, as interferências intermediárias dos atores, com uma nuance humorística interativa, ajuda na contextualização das informações historiográficas.

O caráter lúdico da peça , no enfoque das especificidades da prática teatral através dos tempos, conduz, ainda, a plateia a um impulso reflexivo sobre a importância desta arte mágica.

Capaz ,enfim, com seu aspecto mimético e ritualístico, de questionar não só o status social e político como os conflitos mais íntimos da condição humana.

                                               WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO




KILLER JOE: CENA TRASH

FOTOS / HUDSON MOTTA

O dramaturgo americano Tracy Letts é o autor tanto do texto teatral Killer Joe, como do roteiro do filme homônimo que, aqui, foi exibido sob o título de Matador de Aluguel(2013). Ele já tinha colaborado anteriormente com o cineasta William Friedkin (Os Possuídos) , nesta linha nitidamente próxima à estética trash de filmes B.

Assustado por uma dívida com traficantes o " pitbull " Chris Smith (Gabriel Pinheiro) encomenda a um matador de aluguel Joe Cooper (Carcarah) a morte de sua própria mãe, a quem ele acusa de ter subtraído sua carga de cocaína.

De olho, é claro, num seguro de 50 mil dólares, que ele pretende dividir com o pai Ansel (Fernão Lacerda) e com a madrasta Sharla(Aline Abovsky). Mas é surpreendido com a garantia sexual exigida - sua irmã Dottie (Ana Hartmann), de erótica ingenuidade .

Numa trama de permanente tensão, pontuada de brutalidade, paranoia e sordidez, seus personagens, habitantes de um universo de perversão moral e caos social, desconhecem qualquer principio de honradez e respeito humano.

Seu convívio cotidiano é um frio atentado à liberdade, onde a vontade egoísta de cada um está acima de qualquer resquício de afetividade, na contínua insensibilidade de crimes que geram crimes.

Dominadores e dominados, humilhados e ofendidos, são todos retratados , pela incisiva direção de Mario Bortolotto num clima, sem limites , de rara presença nos nossos palcos, na sua extrema bizarrice ,ultraje e brutalidade.

A performance não disfarça uma gestualidade agressiva e despudorada, na exposição do difícil suporte presencial dos atores que, pela exigência física cotidiana, vai muito além da singular e passageira cena fílmica.

Este elenco coeso que chega a chocar a plateia pela veracidade com que assume uma nuance de humor negro, com um referencial de caricato sadismo e bestialidade, tem nos figurinos (Letícia Madeira) uma perfeita caracterização de personalidades desavergonhadas.

Completada pela extremada ambientação de misantropia e decadência tanto na arquitetura cenográfica hiper-realista (Mariko /Seiji Ogana), como na trilha incidental, efeitos especiais e lutas marciais, numa especial conjuntura criativa sob o comando de Bortolotto.

Enfim, embora nos conduzindo através de sua ácida estética de violência pela violência ao árido medo do próprio medo latente no convívio da nossa contemporaneidade, “Killer Joe” já é, sem dúvida, uma das maiores surpresas da temporada.

                                                  WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO


PULSÕES: CALEIDOSCÓPICA CENA DE AFETO E DESAMOR




No pensamento freudiano, o impulso energético interno que direciona o comportamento do individuo, está dividido entre “ Eros, a pulsão para a vida , e Tanatos, a pulsão para a morte”. Num contínuo fluxo de "atração e repulsa da matéria, delimitado entre o anímico e o físico".

Mas foi se aproximando do reflexivo conceito de Nise da Silveira, de que a loucura é ligada ao desamor, que Dib Carneiro Neto escreveu o inspirado texto dramatúrgico “Pulsões”.

Em incisiva mimetização do impulso amoroso na fronteira da alienação, num mix de linguagens artísticas ( teatro/dança/música), uma bailarina( Fernanda de Freitas) e um maestro (Cadu Fávero) protagonizam uma poética teatralização. De afeição e rejeição, passado e futuro, vida e morte, com o superlativo comando de Kika Freire.

A narrativa fragmentária é estabelecida num jogo onírico de lembranças e delírios, confissão e culpa, na metafórica cena sem espaço e tempo. Que, em meio a conflitos e tormentos, exprime o descompromisso prazeroso da verdade, exclusivo dos loucos.

Numa arquitetura cenográfica (Teca Fichinski) entre esculturas, mandalas e móbiles, com singular esteticismo esotérico, a recatada luz entre sombras (Fran Barros). Ao lado da envolvente trilha sonora ao vivo (Marco França), com esmerada interpretação de João Bittencourt (piano) e Maria Clara Valle (violoncelo).

Enquanto os dois atores, em dinâmica sintonia expressiva, alternam uma solitária contemplação e sofrida gestualização. Contrapondo palavras, acordes musicais e frases coreográficas, de surpreendente escritura cênica.

Imersos neste labiríntico universo de culpas interiores, atores e público descobrem, enfim, sua catarse no ato positivo do enfrentamento comum das temidas “Pulsões, somáticas e psíquicas, da condição humana.

                                                WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO

BEIJA-ME COMO NOS LIVROS : METAFÓRICA LIÇÃO DE AMOR


Fantasia e paixão, desejo e posse, vida e morte atravessam as trajetórias de dois casais, amantes ou namorados, num tempo e num espaço de varias épocas. Com esta proposta, no espetáculo Beija-me Como Nos Livros, a cia. Os Dezequilibrados completa sua trilogia sobre o amor.

A verdade suicida é a resposta encontrada por três casais célebres na literatura e na música : Tristão e Isolda; Romeu e Julieta; Werther/Carlota . De outro lado, na vertente do mito erótico, o sedutor Don Juan realiza suas aventuras dissolutas com damas e criadas.

Todos estes embates galantes e lendários, de paixão e morte, nascidos de narrativas celtas (Tristão e Isolda), da mente teatral shakespeariana (Romeu e Julieta), dos delírios românticos de Goethe (Werther) ou da pena satírica de Tirso de Molina (Don Juan),são completados por passagens na contemporaneidade.

Trilhando todos um caminho de criatividade dúplice entre a literatura e a ópera: Mozart, Wagner, Massenet, Gounod, com incursões no mundo da dança ( Prokofief). O que possibilitou amplos horizontes à direção e à dramaturgia de Ivan Sugahara.

Esteticamente enriquecida com os elementos cenográficos (André Sanches) sugestionando imageticamente livros, paralela à visível beleza dos figurinos num mix de estilos, acentuado por precisa iluminação (Bruno Perlatto).

Embora a fluidez do espetáculo seja, em parte, obscurecida pela insistência numa linguagem fonética inventada, há uma extraordinária compensação na performance dramatúrgica de um elenco afinadíssimo (Ângela Câmara, Cláudia Mele, José Karini e Júlio Adrião).

Onde a movimentação gestual (Duda Maia) imprime um dinâmico virtuosismo de referencial coreográfico, no incrível equilíbrio entre a alternância cronológica passado/presente dos personagens em cena.

E é este acerto da pontuação espaço/tempo de corpos em "moto perpetuo" que, na ausência de um texto compreensivelmente audível, expõe o drama interior de seres envoltos numa torrente de paixões, sujeita a aflições, sofrimentos e morte.

Numa revelação emotiva de uma quase conversa silenciosa entre amantes ,impulsionada pela ação do gesto e pela expressividade facial, expositiva dos tormentos, santos ou demoníacos, dos relacionamentos afetivo/sensuais.

Capaz, ainda, de ser dimensionada e reflexionada, além da transitoriedade metafórica dos beijos livrescos , na sábia lição filosófica do bardo inglês:

“O amor é tão fugaz como o som, tão passageiro como a sombra, tão curto como o sonho, tão rápido como o relâmpago em noite escura”.

                                           WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO


UMA REVISTA DE ANO - POLÍTICAMENTE INCORRETOS



Gênero teatral de origem francesa, a revista chegou ao Brasil em 1859 mas só se consolidou com a dupla Arthur Azevedo /Moreira Sampaio, entre os últimos anos do império e  da Primeira República.

Caindo logo no gosto popular, através de quadros cômicos/musicais,  fazendo uma retomada satírica dos acontecimentos político/comportamentais do ano anterior.

Situada entre a comédia e o teatro musical, com um olhar irônico, entre a malícia e a ingenuidade, com o passar do tempo, foi se transformando numa  apoteótica  revista, mix  brasileiro dos ingredientes do musical americano e dos sucessos carnavalescos.

O texto original de Ana Velloso -“Uma Revista de Ano – PoliticaMente Incorretos”, sob o comando cênico de Sérgio Módena, usa os elementos básicos da tendência na enfatização dos fatos e personagens que marcaram 2014.

Mas, ao mesmo tempo, adiciona novos elementos como o clima humorístico televisivo e uma certa  ambiência de stand up comedy na proposta sequencial narrativa.

Este aspecto privilegia o caráter episódico e singularizado dos quadros e, de certa maneira, disfarça propositalmente, com o sotaque de obra em construção, uma visível precariedade de recursos na ambientação cênica e figurinos (Antônio Medeiros/Tatiana Rodrigues), com uma, felizmente,  recatada iluminação (Tiago/Fernanda Mantovani).

Carência resgatada imediatamente,  a plateia, pela diversão e absorvida pelo riso que esconde a lágrima, no enfoque  satírico de problemas sócio/político/ econômicos que afetam a cada um de nós, neste flagrante e escandaloso  desmonte de um país.

A derrota da Copa no país do futebol, o questionamento das eleições presidenciais, o desfalque fraudulento da Petrobrás, o desabar do império empresarial  de Eike Batista, a risível hipocrisia do ortodoxo moralismo  religioso diante da postura gay, e por aí vai.

A direção concentra seu esforço criativo num elenco de inequívoca atuação musical e de equilibrada performance textual  (Ana Velloso, Cristiana Pompeo, Cristiano Gualda,  Édio Nunes, Hugo Kerth). Além de Wladimir Pinheiro, dublê de diretor musical, imprimindo excepcional dinamismo ao score sonoro.

A montagem, com seu inteligente retrato deformativo da realidade brasileira, promove, enfim,  uma reflexiva postura através do riso usado como a mais útil e acessível forma de crítica.

                                WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO

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