COMPAÑIA ANTONIO GADES - FUENTEOVEJUNA : REFINADO TEATRO COREOGRÁFICO

FOTOS/ JAVIER  DEL REAL

Partindo um ideário estético que une o século de ouro da cultura espanhola, através da obra dramatúrgica de Lope de Vega e do referencial cênico à pintura de Velázquez, às tradições populares do Cante Jondo e da dança Flamenca num contexto de teatro coreografico, Fuenteovejuna foi o derradeiro legado artístico de Antonio Gades à sua Compañia.

Sem deixar de mencionar  o forte substrato político / filosófico do relato de uma sublevação, no século XV, de aldeões andaluzes contra os desmandos de um comendador que acaba sendo assassinado pela fúria campônia.

O que os isenta da condenação jurídica sob a justificação de um “ato de solidariedade dos perdedores; solidariedade com poder”, nas palavras do próprio Gades, ecoando seu engajamento de juventude nas lutas pela República Espanhola e na sua permanente postura de antifranquista.

Original de 1994, Fuenteovejuna, se tornou assim uma das criações mais emblemáticas da Compañia Antonio Gades. Tanto por seu conteúdo libertário quanto por sua refinada concepção coreográfica.

Presencial nas nuances barroquistas, prevalentes da paisagem cenográfica à indumentária (em dúplice ofício de Pedro Moreno), como também na luz entre sombras (Dominique You), num referencial às pinturas de Diego Velázquez.

Reunindo em cena, além do elenco de dezoito bailarinos,  uma trupe musical, integrada por quatro cantores e dois guitarristas. Dividindo as sonoridades ao vivo com um antológico score gravado, indo de acordes russos de Mussorgsky a recortes composicionais (sinfônicos/vocais) do aragonês Antón Garcia Abril.

Nos papéis protagonistas, a cobiçada Laurencia (Silvia Vidal), ao lado de seu noivo Frondoso (Alejandro Molina), nos embates entre a paixão deste e o assédio violento do Comendador (Miguel Angel Rojas).

Em alterativos solos, duos e trios, ora mais romantizados da heroína feminina, ora mais vigorosos do seu partner amoroso, ora assumidamente teatralizados na representação da fúria do tirano.

Completando estes contrapontos entre tensão e lirismo, afinadas formações grupais no papel coletivo dos aldeões exibem danças populares, entre um sutil sotaque clássico em coreografias estilizadas ou em energizadas danças espanholas de base folclórica.

Onde o estilo flamenco nunca cai no mero exibicionismo técnico dos tablados e tabernas, mas a partir do repique do sapateado vai progredindo, em crescendo de circularidade emotiva, das pernas para o tronco, dos braços e mãos para as mascarações faciais.

Na expressiva gramática cênica que conecta inventiva fisicalidade a uma dramatização com dimensionamento psicológico dos personagens, deslocando a ausência da palavra para a força interior irradiada em cada gesto, numa carismática performance de teatro coreográfico.

                                            Wagner Corrêa de Araújo



A COMPAÑIA ANTONIO GADES, com FUENTEOVEJUNA e CARMEN, está em turnê nacional, iniciada no Theatro Municipal/RJ, de 29 a 31 de março. Prosseguindo em São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte. Até o dia 13 de abril.

BALLET DA CIDADE DE NITERÓI – MODO SLEEP : PARA REIMAGINAR UM CLÁSSICO


FOTOS/LEO ZULLU

Releituras de clássicos da dança, com o olhar armado numa frente vanguardista de reinvenção, se tornaram lugares comuns e marca estética de alguns criadores da dança contemporânea.

Entre estes, o inglês Matthew Bourne que fez de suas versões do tríduo coreográfico -composicional de Tchaikovsky – Quebra Nozes, Lago dos Cisnes e Bela Adormecida – concepções pra lá de ousadas, ora celebradas pela crítica mais antenada no novo, ora repudiadas pelo público menos aberto a quaisquer desconstruções no establishment artístico.

Afinal, ele subverte de maneira radical os enredos, recria personagens e desconstrói o contexto temático dos contos infantis inspiradores destas obras. Indo longe numa reescrita imaginária, em narrativas que chegam, inclusive, a insinuar climas de sexualidade, perversão e luxúria.

Agora, o Ballet da Cidade de Niterói, na representação da coreografia Modo Sleep, versão livre para o conto original de Perrault, tem um ponto de contato com a proposta gótica de Matthew Bourne para a sua Bela Adormecida, de 2011.

Desta vez, por um ascensional nome da mais recente geração coreográfica brasileira, o paulista Alex Soares, que vem focando seu oficio criador na linha da vídeo-dança, ampliando seu universo cênico no cruzamento das linguagens plástico-cinéticas, sem deixar de lado o insert da escritura dramatúrgica.

Mas, aqui, com diferenciado avanço na sua desconexão do substrato narrativo e da literalidade de um relato de fantasia, fazendo prevalecer o dimensionamento psicológico. Traduzido em energizada fisicalidade e no élan sensorial de cada gesto apreendido no entremeio das tessituras video-projecionais.

A ideia de incluir no repertório da Companhia de Ballet de Niterói mais um trabalho de Alex Soares, sob o formato de um espetáculo autoral integralizando dança, teatro e cinema, foi do diretor da Cia. - Fran Mello.  O que, de certa maneira, num contexto não exclusivo de virtuosismo coreográfico, evita o risco da exposição de 24 bailarinos de um elenco de variadas gerações em performances mais exigentes.

Com montagens abertas à representação tanto de intérpretes em forma total, como à possibilidade de enquadrar outros integrantes em papéis mais miméticos e teatrais. Um problema que hoje vem engessando as companhias oficiais sujeitas ao rigorismo antiartístico das mesmas regras de ascensão funcional do serviço público.

Em paisagem cênica abstrata (Natalia Lana), sustentada nos efeitos luminares/ambientais (Paulo Cesar Medeiros), na envolvência interativa palco/plateia de espectros e fog invasivo. Sob sonoridades que mixam acordes e leitmotiv, originais da partitura de Tchaikovsky, com sonoridades eletro acústicas, de lavra do próprio Alex Soares.

Onde os figurinos atemporais, de Su Tonani, mixam elementos contemporâneos a caracterizações tradicionais de personagens fabulares do original literário-coreográfico, embora sujeitando-se a um certo desequilíbrio no confronto de estilos indumentários.

E numa assumida mascaração dos bailarinos, lembrando a Cinderella da Maguy Marin para o Ballet de Lyon em 1989, mas aqui  não identificando-se como bonecos da infância, ao aproximar-se de um senso de visagismo inquisitorial, como possíveis “máscaras capuzes” de abafamento de nossas identidades.

Sugestionando, enfim, o adormecimento das pulsões e desejos, em Modo Sleep, enquanto é aguardada a hora mágica de um “beijo” que os despertará. Em necessária lição de resistência para tempos de acirramento do preconceito contra a liberdade de abrir os olhos às nossas próprias verdades.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


BALLET DA CIDADE DE NITERÓI - MODO SLEEP está em cartaz no Sesc/Copacabana ( Mezanino), de quinta a domingo, às 20h. 70 minutos. Até 31 de março.

CIRQUE DU SOLEIL – OVO : REINVENTANDO A VIDA DOS INSETOS


Pela primeira vez, em seus 35 anos (1984), a cia canadense Cirque du Soleil apostou numa produção, numa concepção e numa direção exclusivamente  feminina   e num título em português literal – Ovo - para uma performance-espetáculo.

Unindo num mesmo ideário estético a sua Diretora de Criação Teatral – Chantal Tremblay – e a diretora/ coreógrafa Deborah Colker, em abordagem temática, inusitada e original, do universo secreto dos insetos.

Recorrendo tanto aos mecanismos de criação artística circense, marca registrada deste celebrado grupo de atletas/artistas, acrobatas, malabaristas, trapezistas, palhaços e músicos, como às vertentes estéticas de dança contemporânea que notabilizaram a coreógrafa brasileira.

Num espetáculo em que os elementos tecno-cênicos  (Gringo Cardia) se constituem em completo encantamento para os olhos ao reproduzirem, em projeções cibernéticas, as trilhas e os esconderijos secretos dos insetos no verde tropical das florestas e nas grotas e grutas, entre pedras e formações minerais.

Contando também com o detalhismo preciosista do desenho de luz (Éric Champoux)  e com os singulares e aquarelados figurinos (Liz Vandal) para caracterização dos diferenciais e pequeninos seres animalizados, de ocultos recantos da natureza. 

Joaninhas, borboletas, libélulas, formigas, besouros, aranhas e grilos personificados numa trupe mentora de fisicalidades arriscadas entre vôos acrobáticos e malabarismos à beira de quedas, mas também capazes de se destacarem coreograficamente sob sonoridades tipicamente brasileiras.


Na autenticidade de sambas, frevos, maracatus, xaxados e até forrós com sotaque funkeado, em energizado score sonoro nativista de Berna Ceppas, capaz ainda de recortes new age como no inspirado pas-de-deux aéreo de borboletas em clima amoroso.

Ou nas divertidas acrobacias de formigas com kiwis e no militar alinhamento de besouros com couraças, na mobilidade de uma aranha contorcionista ou no processo de metamorfose física de uma libélula entre Nós alados, em claro referencial a um dos espetáculos coreográficos da Colker.

Mas então, aí, não há como fugir da constatação de que o Ovo cênico que os insetos carregam, em breves entradas e saídas, soa no sense para uma trama sem um substrato narrativo claro. E diante de uma prevalente proposta cênica de exibicionismo físico destes profissionais em acrobacia e atletismo circenses.

Havendo ainda longas e reiterativas cenas de palhaçaria incapazes de fazer rir ao se tornarem meramente gestuais e sem uma mais explicitada clareza na dialetação verbal com o universo sobre humano dos outros personagens.

Incidências que diminuem o impacto e a interatividade da representação. Estendendo-se ao imaginário do público, ao colocar sua emoção em processo de pausa, não só através da superficialidade no desenho dos personagens mas, principalmente, na contextualização temática.

O que, mesmo assim, entre estes perceptíveis senões,  não desmerece  o espetáculo, em sua integralidade, como surpresa e invenção no cruzamento de linguagens do circo, da dança e do teatro.

E que na envolvência da cena da escalada mural (em outra lembrança do inventário coreográfico de Deborah Colker) tem bravo alcance tanto no vigoroso acerto dos movimentos como na habilidade carismática de seus intérpretes tornando-se, sobremaneira, uma experiência estética compensadora.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


CIRQUE DU SOLEIL – OVO está em cartaz na Arena Jeunesse, Barra da Tijuca, terça e quarta às 21h; quinta, sexta e sábado, às 17 e as 21h; domingo, às 14, 16 e 20h. 150 minutos. Até 31 de março.

UM DIA NA BROADWAY : UM MUSICAL TRIBUTO COM ESTÉTICA DE VIDEO CLIPPING


FOTOS/HENRIQUE FALCI

Uma psicodélica viagem com o uso e abuso dos últimos recursos tecno-visuais-sonoros faz de Um Dia na Broadway um cyber musical, a partir de antológicas passagens de alguns dos clássicos do gênero.

Este é, em linhas gerais, o substrato estético de uma concepção de teatro musical que reúne mais de trinta profissionais, entre cantores, bailarinos, atores e grupo orquestral, sob a direção geral e produção do ítalo/ brasileiro Billy Bond.

Um velho conhecido dos palcos de especificidade cênico/musical desde sua opção, há três décadas, fixando-se em São Paulo, onde foi responsável/produtor por momentos marcantes como a primeira versão de Rent, seguindo-se, entre outros em seu ofício, O Beijo da Mulher Aranha e Os Miseráveis.

Tendo se dedicado, em anos mais recentes, às criações desta lavra para o teatro infanto-juvenil como O Mágico de Oz, em cartaz simultâneo, no Rio, com o presente musical. Este, perceptivamente, por seu direcionamento dramatúrgico não ficando, assim, tão distante do agrado das crianças e de seu núcleo familiar.

Em seu enredo despretensioso e, até mesmo, carregado de previsibilidade com sua nuance turística, sobre uma família de brasileiros de primeira viagem, em processo de deslumbre com os tradicionais passeios a pontos focais da metrópole nova-iorquina.

Desencontrando-se, num embarque de metrô na Grand Central Station, os pais (protagonizados por Alvinho de Padua e Titzi Oliveira) dos filhos (Bia Jordão e Henry Gaspar). Para acabar este pesadelo em feliz comemoração na Times Square, num dos 43 teatros que integram o Circuito Broadway.

Induzidos por obra e graça de George Michael Cohan, na convicta performance/tributo de Marcio Yacoff a um emblemático entertainer, mentor e produtor da era de ouro do musical americano.

Enquanto esta trajetória de busca numa grande cidade transcorre em progressão dramatúrgica, carregada de clichês e de um humor raso, é na sequencialidade da seleção de instantes icônicos da fórmula Broadway que o espetáculo se sustenta.

Tendo grande alcance nos efeitos de um cenário virtual (Marcelo Larrea), à base de imagens 4K em palco giratório, com referenciais de suspensão aérea em dois planos, tudo sob um potencializado design luminar (Paul Stewart).

Onde a indumentária (Feliciano San Roman), acrescida dos adereços e do visagismo (Paula Caterini), tem variantes de maior plasticidade ou de mais débil resultado, de acordo com o musical enfocado. Extensivo ao aporte coreográfico (Italo Rodrigues) este, infelizmente, menos equilibrado em sua unicidade interpretativa-gestual.

Em que a parte musical (Bond e Villa) revela maior empenho nos arranjos para oito instrumentistas, teclado e conjunto coral, soando intencionalmente quase como um score sinfônico/operístico.

E com menor destaque no apuro da tessitura e do alcance das vozes solistas, embora em alterativos momentos destaque-se, entre outras canções,  ora o naipe feminino em Cats (Memories), ora o masculino em Les Misérables (One Day More).

De um lado, pelo caráter retrospectivo/memorialístico do repertório musical (Grease, Priscilla, Evita, Mamma Mia, Chicago, Les Misérables, West Side Story, Jesus Christ Superstar, Cats e Mary Poppins), de interesse para os aficionados do gênero no Brasil e talvez, extensivamente, aos habitués da meca nova-iorquina.

Mas por outro, sendo mais que oportuna para os neófitos do teatro musical esta experiência do inicializar-se, em imersiva celebração, mesmo sem contar com quaisquer culminâncias perfeccionistas, em um dia e uma noite na Broadway...

                                              Wagner Corrêa de Araújo


Um Dia na Broadway está em cartaz no Teatro Bradesco/Village Mall/Barra, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h. 120 minutos. Até 26 de maio.

COMO SE UM TREM PASSASSE: SOB ESPONTÂNEA E FUNCIONAL SIMPLICIDADE


FOTOS/ PATRICK GOMEZ

Mais um nome significativo da nova dramaturgia argentina, dividindo-se entre a criação cinematográfica e no engajamento com as causas feministas, especificamente ligadas à afirmação da diversidade sexual e ao movimento LGBT.

Estamos nos referindo a Lorena Romanin que, além de reconhecida trajetória cinematográfica com participação em festivais internacionais, é autora de um dos recentes fenômenos populares e críticos dos palcos porteños com a peça Como Se Passasse um Trem.

E que, agora, chega à cena carioca, replicando a direção autoral de Buenos Aires e reunindo um elenco carioca integrado por Dida Camero, Manu Hashimoto e Caio Scot. Este último, ao lado do produtor Junio Duarte, como idealizadores da versão brasileira, sob comando diretor/concepcional de Lorena Romanin.

Em trama assumidamente despretensiosa ao se inserir num contexto de tipicidade cotidiana para enfocar uma temática de crise familiar e conflito geracional, pais e filhos adolescentes, em ambiência de classe media interiorana.

Onde uma super madre (Dida Camero) mantem um filho especial Juan (Caio Scot) sob permanente defesa e superproteção, nas barras da saia. Alheado ao mundo exterior e que, no não existir celular, tevê a cabo e internet, preenche seus dias com um trenzinho de corda. 

Submisso e submerso ali, mas de extremada afabilidade,  sempre indagando pelo pai ausente com quem é impedido de falar, por magoada reação de uma mulher separada.

Até a chegada da prima Valéria (Manu Hashimoto), adolescente acostumada às viciosas benesses da metrópole/capital, tendo como justificativa inibir seus anseios libertários (incluído o uso da maconha) numa simples casa da província, sob o olhar vigilante da tia dominadora.

Mas que, nas ausências da dona da casa, acaba é incitando o primo a satisfazer desejos embarcando, em delirante viagem, num trem de verdade. No entremeio de insinuações sobre sexualidade e de excitante disco music partilhada com entusiasmo por Juan Ignacio, em energizada coreografia (Deisi Margarida) a dois.

Maior previsibilidade não poderia haver, no simplismo emotivo da abordagem de conflitos adolescentes com suas conclusivas e já tão esperadas atitudes comportamentais.  Neste lugar comum do confronto de idades, ecoando no modo de pensar e de  agir e no que há de resultar tanto para um lado quanto do outro.

Mas apesar da pressuposição deste situar-se à superfície, de um status quo próprio a qualquer família e a qualquer classe social, o que cativa nesta montagem é a química imprimida pelo convicto direcionamento de Lorena Romanin. Ciente de como melhor revelar, surpreender e conectar estes personagens na cotidianidade, em segura e fluida sintonia psicofísica.

Ampliada pelo substrato realista de concisa arquitetura cenográfica (Dina Salem Levy), de funcionalidade interativa e intimista nas pequenas dimensões de um espaço aproximativo plateia/público. Sob um desenho de luzes vazadas (Renato Machado) e figurinos (Julia Marques) para caracterização temporal dos personagens.

Na sensorial e absoluta entrega de um personagem frágil e sensível como o de Caio Scot sabendo explorar o diferencial mental/físico de menino num corpo adulto, sem se deixar levar pela falsa e fácil afetação do estereótipo. Com menor favorecimento, em passagens e culminâncias, para o papel de Valéria (Manu Hashimoto) como em sua representação.

Enquanto Dida Camero constrói sua performance tomada de paixão sabendo como equilibrar exagerada tensão e risível irritabilidade, em instintivo dramatismo que une os dois personagens – mãe  e filho – e atrai a cumplicidade do público. Dando, enfim, vontade de embarcar naquele ou em qualquer trem para o que der e vier...

                                         Wagner Corrêa de Araújo


COMO SE UM TREM PASSASSE está em cartaz no Teatro Poeirinha, Botafogo, quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 28 de abril.

O SOM E A SÍLABA: COMÉDIA MUSICAL COM SUBSTRATO OPERÍSTICO

FOTOS/JULIA LANARE

“A mente pesa tanto quanto Deus./Se a pesagem é feita com instrumento bom,/A diferença, se houver,/É da sílaba para o som”.

A partir destes versos de Emily Dickinson e da ideia de dar vazão à potencializada base lírica na voz da atriz/cantora Alessandra Maestrini, desenvolveu-se a dramaturgia e a direção de Miguel Falabella para sua recente incursão na comédia musical titulada O Som e a Sílaba.

Que também recorre a uma fórmula de moldes hollywoodianos, de largo uso no musical cinematográfico dos anos 40 e 50, onde protagonistas/cantores mostravam as diversas possibilidades de alcance de seus repertórios, entre o canto lírico e o canto popular.

Aqui, através da narrativa de uma cantora Sarah Leighton (Alessandra Maestrini)  com a síndrome de Asperger e que, desde a infância, encontra nos discos das grandes sopranos, de Tebaldi e Callas a Sutherland, um apanágio para as limitações emotivas e sociais causadas pelo autismo. Ainda que este, no caso, seja atenuado por seu lado funcional, na classificação clínica de Savant.

E que, descobrindo uma saída pela memória, tanto nas habilidades vocais como na prática dos cálculos numéricos, decide procurar a professora de canto e antiga estrela dos palcos operísticos, Leonor Delise (Mirna Rubim) e que também passa pelo enfrentamento de uma crise existencial.

Não só para aprimorar-se na interpretação das árias que memorizou por insistente audição discográfica mas, especialmente, para compartilhar tanto um caminho artístico como vencer as carências afetivas, além de buscar uma chance de inclusão social. Com argumentação de que “Gente como eu precisa de duas coisas na vida : de um trabalho e de alguém que lhe estenda a mão”.

O comando concepcional/diretor de Miguel Falabella surpreende desde o inicio do espetáculo, num crescendo revelador não só de substancialidade dramatúrgica, mas domínio artesanal na manipulação tanto dos recursos cênicos como na exploração da empatia e da força performática das duas atrizes.

O que é favorecido ainda pelo impacto visual de uma cenografia (Zezinho e Turibio Santos) de realismo preciosista e de elegante indumentária (Ligia Rocha e Marco Pacheco), ressaltadas nas marcações ambientais luminares (Wagner Freire).

Onde há um destaque sensorial estético no score musical com prevalência de árias italianas e francesas,  de óperas de Gounod (Romeu e Julieta), Puccini (Tosca, La Bohème, Gianni Schicchi, La Rondine) e Delibes (Lakmé). Com acompanhamento solista ao piano (Mirna Rubim) ou por registro orquestral, com design de som por Mario Jorge Andrade.

Esta antológica seleção operística tem, às vezes, valioso referencial temático na narrativa dramática, em momentos exponenciais de Mirna Rubim como o bravíssimo alcance das culminâncias do bel canto no angustiado lamento de vida e arte ( Vissi D’Arte/ Tosca) e a perceptivel extensão da tessitura de soprano em Alessandra Maestrini, nos anseios apaixonados de Julieta  (Je Veux Vivre/ Roméo et Juliette).

Numa trama simples e quase reiterativa, mas que flui com espontânea naturalidade, tanto nas passagens confessionais de maior dramatismo, como nas suas exigências cômico/histriônicas.

Sem deixar-se cair no caricatural/grotesco, no caso do papel diferencial da aluna Sarah, na constância de uma soberba performance da Maestrini. Como na convicta personificação de Leonor, repercutindo, em cena, o real ofício musical de uma celebrada professora, cantora e atriz - Mirna Rubim. 

Em proposta musical de gramática cenica capaz de agradar tanto a iniciantes como aos iniciados no universo da ópera, num exercicio e num jogo teatral vivo com poder de envolver do melômano afficionado rigoroso do bel canto ao espectador não absorvido pelas instâncias do virtuosismo operístico.

Cada um destes publicos certamente não ficará imune após o sedutor epílogo, com o dueto das flores de Lakmé (Viens , Mallika, Les Lianes en Fleurs), no encontro de uma carismática dupla de  atrizes /sopranos.  Tomadas da paixão, enquanto artistas e personagens, de representar este energizado diálogo entre a comedia musical e a ópera.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


O SOM E A SÍLABA está em cartaz no Teatro XP/Investimentos/ Gávea, de quinta a sabado, às 21h; domingo, às 20h. 90 minutos. Até 21 de abril.

ANTES QUE A DEFINITIVA NOITE SE ESPALHE EM LATINO AMERICA : ALEGÓRICA REAÇÃO À DISTOPIA


FOTOS/ FLÁVIA CANAVARRO E MAURÍCIO FIDALGO

“Tudo que tem um tempo de esplendor tem também um período de decadência mas, ao mesmo tempo, tudo o que tem um tempo de decadência tem um tempo de esplendor”.

Emblemáticas palavras, do escritor argentino Pablo Katchadjian, capazes de decifrar ou responder à desalentadora pulsão que desarma o olhar poético e conduz o pensar filosófico / ideológico a um tempo de distopias na América Latina.

Acentuado pela desilusão e pelo descrédito no projeto esquerdista que foi tornando mais prevalente a perpetuação do poder político que a, até então potencializada, progressividade social. Dando no que  se deu do outro lado e vem se espalhando linha abaixo do equador.

Numa retomada obscurantista do preconceito e da resistência feroz a qualquer pensar diferencial, com maior alcance e sensitividade, além da crise econômica que trava os financiamentos, no perigoso desprezo aos mentores da liberdade de criação artística.

E foi no encontro dialetal de duas pirâmides  cênicas que o coletivo Ultralíricos, sob o artesanal comando do dramaturgo e diretor Felipe Hirsch, idealizou uma proposta dramatúrgica para estabelecer incisivas pontes palco/plateia, ator/espectador, sujeito/objeto, do verismo ao alegórico, entre o subvertimento  da ordem natural das coisas e o impulso lúdico/orgíaco.

Transmutando, com denúncia e delírio em compasso ritualístico/teatral, o grito de protesto por uma contemporaneidade em estado de pânico. E, com esta  bandeira, convocando à inédita escrita dramatúrgica alguns significativos representantes da intelectualidade latino americana.

Para se expressarem, do farsesco à irônica risibilidade, com armado espírito crítico capaz de ser absorvido reflexivamente pelo público destinatário, mesmo que subliminarmente lograsse funcionar apenas como um recado de advertência.

O que, num espetáculo de longa duração, funciona mais a contento na primeira parte, com seu direcionamento de uma abordagem mais inclusiva das ambiências e das decorrências do exercitar-se no ofício artístico. Desde a cena inicial (a partir do sugestão textual por André Dahmer) exibindo o patético legado de artistas esquecidos por sua obra mas lembrados por seus dentes cariados.

Ou de uma quase marchand (Debora Bloch) na sensação de inutilidade de seus tantos quadros, enquanto é ridicularizada por um deles (na voz e na fisicalidade em suspensão da atriz Renata Gaspar). Incluindo-se, ainda, o esquete (de Pablo Katchadjian) do poeta e seus perseguidores homicidas e o chamado para que a plateia ocupe o palco, em circuito de oralidade ancestral numa teatralidade de fabulação.

Em paisagem cênica recoberta por colchões solares, frontais e laterais (na dúplice concepção cenográfica de Daniela Thomas e Felipe Tassara), com proposital e referencial (pela própria tematização) instabilidade postural para o elenco. Com figurinos (Marina Franco) em tons ocres/negros, sob as variações luminares de Beto Bruel e trilha incidental de composição coletiva.

Perceptível, aqui, um primeiro ato que dá maiores chances para interatividade e torna mais espontânea e energizada a representação dos atores, em especial do trio Debora Bloch, Guilherme Weber e Renata Gaspar. Tendo ainda, no elenco, Jefferson Schroeder e, em episódica atuação, Nely Coelho e Blackyia. Diante de uma segunda parte de menor concisão, perdendo o ritmo por uma loquacidade discursiva, de substrato  quase grandiloquente, nas passagens autorais de Guillermo Calderon e Manuela Infante.

Apesar deste conflito de conectividade e uma reiterativa quebra do avanço dramático entre os dois momentos, com iminentes riscos de desvio da atenção focal, não deixando invalidar, como um todo, esta proposicão dramatúrgica.  Capaz, sobretudo, de fazer do palco um irradiador de visceral experimentalismo e de contestadora estética em torno de um convicto ideário.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


Antes que a Definitiva Noite se Espalhe em Latinoamerica está em cartaz no Teatro Oi Futuro/Flamengo, de quinta a domingo, às 20h. 150 minutos. Até 24 de março.

PARA NÃO MORRER: TELÚRICA REPRESENTAÇÃO DO PODER FEMININO


FOTOS/RAQUEL RIZZO

Em Mulheres, obra de 1997, o uruguaio Eduardo Galeano inventaria, em releitura de verve poética e substrato filosófico/conceitual, o papel assumido pelo poder feminino na construção ideológico/política do continente latino americano.

Em relatos direcionados àquelas feministas notabilizadas nas artes e nas letras, mas sem deixar de referenciar também as que, anonimamente, foram fundamentais aos embates de emancipação, resistência e afirmação da causa feminina.

Assim, em sua progressão narrativa, num mesmo ringue de enfrentamento e combates, são citadas mulheres caracterizadas pela prevalência de sua origem nativista, entre outras Frida Kahlo, Evita, Alfonsina Storni, Sor Ines de La Cruz, Violeta Parra.

Ou, ainda, as de raízes indígenas ou africanas, de libertárias índias e escravas a  feiticeiras e mães de santo. E até de guerrilheiras que, empenhadas pela libertação revolucionária, desafiaram sua própria personalidade sem medo de se fragilizarem pela condição feminina.

E em nuance identitária de luta, no além fronteiras, a recorrência mítica a militantes como Joana D’Arc, Camille Claudel, Josephine Baker, Rosa de Luxemburgo, Olga Benário. Completando, enfim, um painel de desconstrução do ancestral estigma de um segundo sexo sem história, destinado exclusivamente às funções biológicas e do lar.

E é a partir desta textualidade literária que foi arquitetado o roteiro dramatúrgico de Francisco Mallmann no monólogo Para Não Morrer, assumido pelo comando diretorial, concepcional e interpretativo da atriz Nena Inoue. Contando com a valorosa colaboração artística de Babaya Moraes.

Em paisagem cênica (Ruy Almeida) construída a partir do presencial individualizado da atriz-personagem em impactante visualização estética, no entremeio de sombreamentos luminares (Beto Bruel), ressaltando incomodas e nervosas, mas simbólicas, distorções musculares / gestuais de lábios, pés e mãos.

Onde os figurinos, adereços e visagismo (Carmen Jorge) provocam uma espectral sugestão de uma mulher sacralizada num contexto terra/natureza, com seu grito ativista ecoando como se fora um emblemático tronco calcinado a la Krajcberg.

Com postura hierática, privilegiando a voz, ora em murmúrios quase inaudíveis ora em potencializados apelos, em incitação à escuta de uma denúncia secular e de um discurso fissurado pela inércia e pela acomodação ao preconceito contra o papel feminino.

Que, por não poder mais continuar sendo abafado pela violência, precisa ser vivenciado da oralidade para uma energizada reação, em contraponto ao reiterativo patriarcalismo e aos abusos  machistas.

E que, em privilegiada proposta cênica, a atriz/diretora Nena Inue assume, em convicto encorajamento dramático, entre o delírio e o verismo, entre a poesia e o pânico, na personificação necessária deste nunca se resignar à opressão e à submissão do feminino.

Mas sim, antes de tudo, sabendo bem como acreditar, sempre determinada em sua enfática pulsão teatral com nuance reflexiva, que afinal o ser mulher tem o mesmo protagonismo do ser homem  no palco da vida.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


PARA NÃO MORRER volta ao cartaz, em curta e imperdível temporada, no Teatro Sesc Ginástico, Centro/RJ, de quinta a domingo, às 19 h. 60 minutos. Até 10 de março.

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