SEXO NEUTRO : IDENTIDADES MARGINALIZADAS



O século XVIII foi considerado pelos iluministas o apogeu do hedonismo filosófico. Comparado ao éden bíblico pelo ingênuo sentido de liberdade dos prazeres, fez a literatura e as gravuras  se inspirarem nas identidades eróticas masculinas e femininas ,na mesma proporção que nos desejos safitas ou nas práticas sodomitas.

No teatro e na ópera, as mulheres assumiam os personagens masculinos como na protagonização do Orfeu de Gluck ou do Xerxes, de Haendel. Ao mesmo tempo que, prisioneiras do cotidiano doméstico, elas encontravam no travestismo militar, especialmente nas guerras, a sonhada fuga de um mundo opressor.

Já na contemporaneidade, a troca de papéis sexuais assume um significado de exposição externa de um desejo intimista de ser o que deveria ser. Ou, indo mais longe, pela transexualidade, de ter o que queria ter. E nesta perspectiva e neste questionamento é construído o roteiro dramatúrgico de “Sexo Neutro”, escrito e dirigido por João Cícero.

Num original formato de monólogo em dueto, a representação feminina de Márcia( Cristina Flores) é , simultaneamente, a representação masculina de Cléber(Marcelo Olinto). Ela é a mulher que foi, em diálogo com o homem que se tornou, via procedimento clínico.

Em bem construída performance ,próxima a um proposital realismo documental, revela a ambiguidade latente dos transexualizados, entre a irreverência e a rebeldia solitária do espírito humano que sente, desde a infância, estar habitando um corpo errado.

A proposta cênica minimalista (João Cícero), num palco vazado com dois microfones e uma nuance ambientalista insinuada pelos tons claro / escuro das luzes (Tomás Ribas) e pela precisa incidentalidade dos acordes sonoros (Dimitri BR /Alexandre Hofty), acentua o sotaque confessional de monólogo a duas vozes.

A crua exposição do texto, ao transitar por códigos comportamentais não ortodoxos, consegue driblar , com sutil ironia, o politicamente correto ao avançar no significado de uma cópula sexual com instrumental orgânico de artificial similaridade. Ainda que, às vezes, ocorram perdas da dinâmica do fio conceitual narrativo, especialmente na proximidade do epílogo.

Aqui, a emotiva entrega física e psicológica dos atores alcança o equilíbrio diante de uma realidade de exigente mimetismo estético. Onde prevalece a identidade sexual periférica, com figurinos (João Dalla Rosa) uniformizados em tons pastéis e dorsos nus.


Enfim, a mais eficaz contribuição da peça certamente será o despertar do anestesiante preconceito de ver o “sexo neutro” como um imoral simulacro. Encarando-o ,isto sim, como resultado do livre pensar de cada um , na opcional escolha do horizonte singular de suas trajetórias existenciais.

                                               WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO


SEXO NEUTRO está em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, de quarta a domingo, 19h30m.

BEIJE MINHA LÁPIDE



Nos idos dos anos 70, no alvorecer dos vinte anos , iniciei minha primeira aventura parisiense, com uma visita inusitada para uma viagem inaugural. Hospedado na rua em que fica o cemitério Père Lachaise adentrei , na chegada, por seus portões, num quase final de tarde sombria de inverno, percorri suas aleias de celebridades mortas e me detive no emblemático túmulo de Oscar Wilde .

Extasiado com a singular escultura do anglo/americano Jacob Epstein –um anjo nu inspirado na arte assíria, esquecido do tempo de fechamento do célebre cemitério, quando percebi estava só , sendo salvo de uma possível reclusão noturna, por um providencial jardineiro.

Durante quase um século , visitantes fanatizados com esta simbologia do túmulo, beijavam a lápide deixando marcas de batom vermelho, deteriorando assim o monumento célebre.

E nem uma multa de 9 mil euros foi capaz de deter a extrema manifestação a um ídolo literário, levando ao cerco do mausoléu por uma parede de vidro.

Inspirado neste fato , o dramaturgo Jô Bilac escreveu Beije Minha Lápide, dando eco inclusive a uma metafórica frase de Oscar Wilde:Um beijo pode arruinar uma vida humana”.


O personagem Bala (Marco Nanini), em total identificação com o universo do escritor irlandês, não só como libertário criador, anti-convencional, homossexual assumido, enfim além dos limites do politicamente aceitável, rompe o muro de vidro .

Condenado , estabelece contato com o carcereiro/dublê de escritor Tommy(Paulo Verlings), com insinuações lítero/homoeróticas que incidem também sobre Ingrid (Júlia Marini), filha do prisioneiro, em sua indecisa paixão pela advogada do pai - Roberta (Carolina Pismel).

Com inventiva concepção cenográfica de Daniela Thomas, na transposição do túmulo envidraçado em prisão, enriquecida por projeções holográficas , tem um dinâmico comando mor de Bel Garcia.

Que acentua a marcante presença cênica do protagonista, tentando não desqualificar o elenco coadjuvante, de menor predominância no enredo dramatúrgico mas com exemplar atuação.

O texto , com seu tom de comédia dramática, tem seus melhores momentos nos monólogos do protagonista, inspirados no universo ficcional de Wilde, envolvendo magicamente o público, no efusivo sotaque interpretativo do grande ator, de humor irônico , revolta e protesto ,na arrebatada idealização de um desejo reprimido.

Especialmente emocional quando remete ,ainda , à lembrança da trágica trajetória existencial de um escritor e dramaturgo, ostensivamente celebrado em sua época. Mas cruelmente aviltado ,após a denúncia de seu impulsivo relacionamento amoroso com o jovem Alfred Douglas, definido por ele, Oscar Wilde , em lírico desabafo poético:

“Sua alma magra e culpada caminha entre a paixão e a poesia . Sei que Jacinto, a quem Apolo amou tão loucamente, era você na Grécia Antiga".


                                              WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO


BEIJE MINHA LÁPIDE está em cartaz no Teatro Oi Casa Grande, Leblon, sexta e sábado, 21h30m; domingo,19hs.

TRIBOS: A ESCUTA SILENCIOSA

FOTOS/JOÃO CALDAS

Depois de “Rabbit”, numa versão paulista de Eric Lanate, é a vez de “Tribos”, a mais polêmica e representada peça da dramaturga inglesa Nina Raine.

Na primeira , a disfuncionalidade familiar era vista através da indiferença da filha numa festa techno diante do pai agonizando num hospital. Enquanto em “Tribos” os laços de sangue só valem mesmo para personalizar uma clã caotizada , na incomunicabilidade conflituante de seus integrantes.

Christopher, um pai dono da verdade em seu academicismo opressor (Antônio Fagundes). Beth, uma mãe ausente (Eliete Cigaarini) e Daniel, o filho neurotizado(Guilherme Magon), ambos frustrados na pretensão literária. E , ainda, a filha Ruth(Maíra Dvorek), cantora lírica de palcos alternativos.

Completando o desajustado naipe, o filho surdo Billy( Bruno Fagundes) ,confinado à linguagem labial, e a namorada dele Sylvia( Arieta Corrêa) que beirando a surdez, o conduz à prática da linguagem de sinais. E, ao mesmo tempo, faz romper o silêncio de uma mente solitária.

A construção cênica hiper-realista(Lu Bueno), em constantes encontros à mesa das ceias, contradiz o tom quase abstrato de discussões inconsequentes, aumentando o clima familiar claustrofóbico.
Com figurinos corretos ( Alexandre Hercovitch) e luzes vazadas com restritivas gradações (Domingos Quintiliano), desfocadas nos efeitos videográficos com frases definidoras de módulos. Quase dispensáveis no processo sequencial narrativo, com seu obscuro didatismo.

O empenho da direção de Ulisses Cruz pela coesão do elenco , não consegue desviar o olhar armado da plateia no filho surdo(Bruno Fagundes), sem dúvida a melhor performance pela própria complexidade e caráter emotivo do personagem .

No seu humor ácido, a presente trama dramatúrgica abre um olhar além do núcleo doméstico ,sobre todas as formas de rejeição e marginalidade no isolacionismo tribal de raças, credos políticos, preferências sexuais, em sua total exclusão de como ,idealmente poderia atuar a fraternidade social .

E , nas suas aliterações filosóficas em torno de um universo do silencio vocal e da transmutação conceitual da palavra pelo olhar, somos ironicamente levados, com Bergson, a estabelecer pontes com a tragicomédia do riso surdo que habita cada gesto humano.

                                                  WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO



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