MARROM : TRIBUTO A ALCIONE EM MUSICAL AFIRMATIVO DA RESISTÊNCIA NEGRA


Marrom, o Musical. Texto e Direção/Miguel Falabella. Janeiro/2023. Fotos/Caio Gallucci.




Completando um refinado tríptico musical dedicado a celebrar consagrados representantes do legado do samba na cultura popular brasileira, o produtor Jô Santana prossegue, desta vez com Alcione, o seu tributo iniciado por Cartola e Dona Ivone Lara. 

Em proposta que traz, implicitamente, um significado emblemático de resistência, através de  nomes exponenciais da criação musical ligada à preservação e à afirmação da força da negritude. Em país com parcela significativa de população da raça mas, infelizmente, ainda dominado pelo preconceito no entorno da cor da pele.

Neste último espetáculo – titulado Marrom, O Musical - sob convicta concepção cênico/direcional, incluído o ideário autoral da peça, por Miguel Falabella. Sabendo como bem priorizar um elenco de atrizes/cantoras todas negras onde se destacam, entre outras novas revelações, nomes fundamentais do gênero em nossos palcos, como os de Letícia Soares ou Lilian Valeska.

Numa trajetória musical/dramatúrgica que conecta dados biográficos da cantora maranhense a momentos antológicos da canção de pulso romântico sequenciados àqueles ligados às raízes do afro-jazz-samba. Transmutando-se ora na expressão da sonoridade rítmica dos terreiros ao samba, ora no registro das tradições nordestinas tais como o Bumba-Meu-Boi, além de um evocativo referencial técnico à tessitura grave de vozes magnas do jazz americano, passando por Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald.

Tendo Alcione se tornado neste aspecto, além de cantora, uma exímia intérprete ao trompete, na predominância  de energizados acordes com um dúplice substrato que a faz transitar de reflexos instrumentais do universo jazzístico ao seu peculiar apuro vocal no repertório do samba. Em diferenciais modulações no uso de seus recursos de voz próxima de contralto, que ela imprime aos lamentosos ou ritmados cânticos, de substrato afirmativo da ancestralidade negra com o olhar armado na contemporaneidade.


Marrom, o Musical. Texto e Direção/Miguel Falabella. Janeiro/2023. Fotos/Caio Gallucci.

Numa arquitetura cenográfica em que o palco é giratório lembrando, com rara sutileza, os grandes musicais do passado tanto na  Broadway como nas revistas brasileiras de Carlos Machado, sem as plumas naturalmente, segundo uma dúplice realização de Zezinho e Turibio Santos. E sustentada com maestria pelo score musical comandado por Guilherme Terra.

Também na convergência de um  trio de figurinistas (Ligia Rocha, Jemima Tuany e Marco Pacheco) para vestir em cores aquareladas os 23 integrantes do elenco, incluídos aí músicos e bailarinos, todos em trajes paramentados pelos detalhes de artesanais bordados, ressaltados pelas luzes festivas de Walmyr Ferreira. Sem deixar de falar na gestualidade coreográfica (Bárbara Guerra e Rafael Machado) marcada por traços folclóricos ou por passos do mais autêntico sotaque sambístico.

A trama dramatúrgica assumindo, desde o seu prólogo, um tom fabulário ao misturar recortes da vida artístico/existencial de Alcione com os mistérios da lendária e melancólica história do boi maranhense, sempre conduzida por personagem, pleno de um toque de magia, o Cazumbá (via Lucas Wickhaus).

Alterativa entre cenas familiares onde aparecem os pais da cantora, de seus primeiros arroubos  instrumentais aos anos como cantora da noite em shows e boites, com um repertório mais de teor romântico. Até seu tempo além fronteiras, ao lado de seu empresário/marido italiano, para explodir, enfim, nas glórias de sambista ícone da Mangueira.

Perdendo a peça um pouco o viço dramatúrgico a partir do segundo ato, onde o espetáculo vai, aos poucos, se transmutando mais num show musical com desfile sucessivo de sucessos da carreira de Alcione, especialmente as canções de apelo mais romantizado.

Mesmo assim, capaz de alcançar a plasticidade carismática de uma passagem característica em que as intérpretes femininas titulares aparecem identificadas todas por um similar vestido amarelo, imagem que há de ficar certamente marcada na memória visual e afetiva de cada espectador.


                                           Wagner Corrêa de Araújo


Marrom, O Musical está em cartaz na Cidade das Artes/Barra, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 18h, até o dia 05 de fevereiro.

O MÉTODO GRÖNHOLM : UM BURLESCO E SARCÁSTICO PROCESSO DE SELEÇÃO AO MUNDO CORPORATIVO


O Método Grönholm. De Jordi Galcerán Ferrer. Direção/Lázaro Ramos. Janeiro/2023. Fotos/João Caldas.


O catalão Jordi Galcerán Ferrer, em sua peça titulada O Método Grönholm, com ferino espírito crítico aborda dramaturgicamente, no entremeio de mordaz humor  e  burlesco enfoque,  a cruel competitividade que sustenta o recrutamento de candidatos ao status corporativo de uma empresa multinacional.

Desde sua estréia, em 2003, tornando-se um êxito mundial, com inúmeras versões para o palco, inspirando séries televisivas, além do premiado filme hispânico El Metodo, de Marcelo Piñeyro (já exibido no Brasil, em 2005, com a nominação de O que Você Faria?).

Tendo já chegado aos nossos teatros, com direção de Luiz Antonio Pilar, em 2007, num elenco integrado por Angelo Paes Leme, Edmilson Barros, Taís Araujo mais Lázaro Ramos que, agora, troca seu papel de ator com o de diretor na segunda montagem da peça de Jordi Galcerán.

Desta vez, após uma estreia carioca interrompida pela eclosão do surto pandêmico em março de 2020, e logo após sua retomada paulista dois anos depois, chegando ao Rio como um dos espetáculos de abertura da múltipla Temporada Teatral 2023.

Onde Lázaro Ramos, contando com o suporte valioso da co-direção de Tatiana Tibúrcio, reune um potencial e afinado quarteto de atores,  a saber - Anna Sophia Folch, George Sauma, Luís Lobianco e Raphael Logam. Todos eles, como personagens, se encontrando para o enfrentamento de um teste interesseiro e de desrespeito quase sub humano, sem a presença física de qualquer interlocutor.


O Método Grönholm. Com Anna Sophia Folch, Luís Lobianco, Raphael Logam, George Sauma. Janeiro/2023.Fotos/João Caldas.
 

Enquanto a ambiência cenográfica (Mauro Vicente Ferreira) na sala de uma empresa é centralizada por uma mesa, um pequeno armário lateral e o sugestionamento de janelas mostrando outros escritórios de uma área urbana comercial. Caracterizados os atores com uma indumentária cotidiana (Teresa Nabuco) mais formalista e própria de executivos, sob luzes vazadas (Ana Luiza Molinari de Simoni) sem maiores direcionamentos focais.

Em que a sonoridade é preenchida apenas pelas interferências vocais dos atores, com ocasionais ruídos luminosos de frios alertas instrucionais, via envelopes destinados aos concorrentes. Numa sequencialidade alterativa de confrontos e afirmações personalistas de cada um deles, em crescente e nervosa pulsão psicofísica.

Que vai configurando os diferenciais perfis psicológicos, ora de extremado cinismo ora de provocantes e risíveis gestos comportamentais, ao falarem sobre particularidades do dia-a-dia. Como se quisessem auto enfatizar a prevalência egocêntrica de suas qualidades sobre as dos outros, convictos de sua escolha pessoal para a única vaga disponível.

Num clima permanente de intrigas e de acusações recíprocas, ao lado de inusitadas revelações de fatos intimistas da vida privada dos concorrentes, estabelece-se um elo de envolvência lúdica com a plateia, sob energizada e bem humorada performance atoral.

Na sempre segura direção concepcional de Lázaro Ramos, em clima cênico de uma comédia quase thriller, que conecta suspense à expectativa do curioso entorno do que vai se dar ou até onde tudo isto pode chegar.

O que remete, como proposta de uma narrativa cênica, ao termo inglês Whodunit, no seu simbólico uso para tramas novelescas e policiais, em transcendente processo metafórico sob compasso do desafio de um enigma a ser decifrado, com inimaginável surpresa do final.

Se, aqui, no ficcional Método Grönholm, o suspense é capaz de alimentar a comédia, também deve fazer refletir sobre o pesadelo da carência ética, quando a competitividade humana despreza tudo e todos para armar sua sórdida disputa por um lugar ao sol...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo



O Método Grönholm está em cartaz no Teatro Copacabana Palace, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até 5 de fevereiro.

O SOM E A FÚRIA DE LADY MACBETH : UMA REESTRÉIA AUTORAL E NECESSÁRIA, A SER CONFERIDA

O Som e a Fúria de Lady Macbeth. De Cristina Mayrink. Janeiro/2023. Fotos/Nando Machado.


Uma das mais emblemáticas personagens femininas da saga shakespeariana é Lady Macbeth. Que a partir de uma livre releitura de seu contexto original vem inspirando algumas versões autorais com o olhar da tradição armado na modernidade. Entre algumas destas marcantes revisitações estão a Lady Macbeth de Yara de Novaes e a de Marcia Zanelatto em sua Peça Escocesa.

Lady Macbeth se tornou um personagem protótipo da maldade, da ambição desmedida, da ânsia pelo poder, da prevalência egotista, ignorando qualquer resquício de consideração ou de afetividade pelo seu semelhante, ao planejar e participar de um ciclo sequencial e parental de assassinatos.

E, na voz e na vez de Cristina Mayrink, ao enveredar por sua primeira criação dramatúrgica (textualidade primorosa no uso aliterativo dos significados verbais) de própria lavra, a que ela titula como O Som e a Fúria de Lady Macbeth, numa energizada performance solo protagonizada pela atriz, com acurada direção concepcional de Diogo Camargos.


O Som e a Fúria de Lady Macbeth. Com Cris Mayrink. Direção/Diogo Camargos. Janeiro/2023.Fotos/Nando Machado.


E que se estende, ainda, ao desenho de uma luz entre sombras e de trilha sonora incidental (em dúplice ideário de Diogo Camargos) preenchendo o vazio da caixa cênica com alguns raros e ocasionais objetos, simbólicos à trama, manipulados pela intérprete. Sob uma indumentária (Letícia Birolli) de traços mais sóbrios, ora com um sutil referencial de trajes monárquicos, ora sugestionando uma metaforização atemporal de sotaque mais cotidiano.

Onde Cristina Mayrink imprime seu amadurecido legado inventivo de uma atriz formada no entremeio de anos de convívio, aprendizado e prática dos ensinamentos visionários de Antonio Abujamra, como uma das integrantes de seu grupo Fodidos Privilegiados. Transmutando-se, aqui e agora, nesta sua bela inicialização na escritura cênica após algumas incursões na literatura.

Sua Lady Macbeth é vista através de um sarcástico e risível comportamental feminino, fazendo de seus atos alucinados um retrato dúbio de uma personagem artaudiana sob o domínio do mal e burlescamente impressionada por seus delírios, querendo devorar o mundo mas sendo deglutida pela insanidade ingênua ou absurda de seus atos.

Na visceralidade performática do apelo psicofísico de Cristina Mayrink, numa das surpresas de uma cena  carioca finalmente em fase agitada, ela parte de William Shakespeare mas prioriza seu enfoque, sob a extrema sandice moral de uma personagem, dramática e hilária ao mesmo tempo.

Uma Lady Macbeth sitiada, entre o som e a fúria, tal como um terrível personagem à frente de nossos destinos, na insensatez de um Brasil contemporâneo. País assustado ainda com seus fantasmas mas, em tempo de esperança e de acerto de contas pós eleitoral, tentando a duras penas, acordar de um pesadelo e emergir, enfim, de um abissal (e por que não shakespeariano?) mergulho nas trevas...


                                             Wagner Corrêa de Araújo


O Som e a Fúria de Lady Macbeth está em cartaz no Teatro Gláucio Gil, nas quartas-feiras, às 20hs, até 15 de fevereiro.

COMO POSSO NÃO SER MONTGOMERY CLIFT? : UMA TRAJETÓRIA ESTELAR À BEIRA DO PENHASCO


Como Posso Não Ser Montgomery Clift? Direção/Fernando Philbert. Com Gustavo Gasparani. Janeiro/2023. Fotos/Nil Caniné.


Em seu clássico relato analítico sobre o star system Edgar Morin define o que se esconde atrás do sucesso mítico no cinema :“O herói perdido, atormentado, problemático...O mal está dentro dele, na contradição vivida, na impotência, na busca errante”...

E nada mais apropriado para caracterizar a conturbada trajetória artística - existencial de Montgomery Clift. De um lado a ascendente carreira como um ídolo das telas, numa pulsão instantânea desde seu primeiro filme, em 1948, no entremeio do sonho frustrado por nunca passar das indicações ao Oscar. Agravado por um acidente que tumultua sua vida e precipita, na dependência do álcool e das drogas, a sua terminalidade.

Do outro, o pesadelo das inquietações psicofísicas para disfarçar sua condição de homossexual em tempos de extremado conservadorismo e de rejeição à livre identidade sexual, que o perturba desde o convívio doméstico com uma mãe preconceituosa, numa família burguesa tradicionalista .

E que vai aparecer também no set de filmagens de seu primeiro filme Rio Vermelho, dirigido por Howard Hawks, na ironização machista promovida, por exemplo, por John Wayne ao contracenar com ele. E que só seria desmentida nas cenas ardentes com Elizabeth Taylor, no seu êxito absoluto como galã hétero em Um Lugar ao Sol, 1951, de George Stevens.

Como Posso Não Ser Montgomery Clift?, de Alberto Conejero Lopez, reconhecido nome da nova dramaturgia espanhola, é uma peça já lançada em livro no Brasil mas inédita nos nossos palcos. Chegando agora à cena carioca, sob irradiante concepção cênico-direcional de Fernando Philbert, com luminoso suporte performático de Gustavo Gasparani para comemorar seus 40 anos de carreira.


Como Posso Não Ser Montgomery Clift? De Alberto Conejero Lopez. Janeiro/2023. Fotos/ Nil Caniné. 

Onde o roteiro dramático se desenvolve a partir dos anos de dúvida e incerteza, quanto ao futuro pessoal e artístico de Montgomery Clift, diante do desafio pela retomada física e artística pós acidente automobilístico que desfigura sua face. Levando-o à dependência alcoólica e apressando sua morte, no midiático e mais longo suicídio do espetáculo cinematográfico, segundo comentários de seus contemporâneos.

Em que a ambiência cenográfica, outro destes absolutos acertos de plasticidade visual da lavra criativa de Natalia Lana, sugestiona uma banheira em mármore rodeada nas laterais do palco/arena por spots de um set de gravação. E os figurinos  de Marieta Spada, ora mostram trajes cotidianos, ora uma indumentária formalista numa espécie de insinuação, subliminar, das noites de gala como a solenidade do Oscar.

Capaz, ainda, de extrapolar o intimismo solitário de um espaço de banho, por intermédio de efeitos luminares (Vilmar Olos), num clima metafórico referencial da gloriosa era do cinema americano anos 50/60. Incluída uma incidentalidade alterativa na conexão de antológicos acordes musicais, fragmentos sonoros/cinéticos e depoimentos, com a habitual envolvência das trilhas de Marcelo Alonso Neves.

Tendo um Gustavo Gasparani monologal potencializando seus especiais recursos performáticos, fruto da plena maturidade de suas quatro décadas de incursões pelo universo cênico, na busca investigativa da representação de toda e qualquer diversidade de gêneros. Sabendo imprimir, pleno de paixão e convicta entrega, a contundência atoral necessária, sem quaisquer subterfúgios melodramáticos, a um amagurado personagem.

O dimensionamento psicológico em permanente estado de risco à beira de um precipício que remete à aliteração vocabular de Clift para Cliff (precipício) aparecendo, assim, na denominação original da peça, tendo seu reflexo especular no revelador, arrojado e inventivo empenho diretorial de Fernando Philbert para configurar cenicamente o desalento do personagem titular.

E não por acaso, voltando a Edgar Morin em seu livro Les Stars (As Estrelas – Mito e Sedução no Cinema), eis aqui um retrato de conceitual ideário estético-filosófico para este Montgomery Clift teatralizado:Por trás da glória, a solidão.../A diversão tornada inimiga da felicidade/O vazio sob a intensidade/A infelicidade da existência maquiada/Sob o mais radiante sorriso: a morte”...


                                   Wagner Corrêa de Araújo

   

Como Posso Não Ser Montgomery Clift? Está em cartaz no Espaço Sérgio Porto/Botafogo, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até 12 de fevereiro.

A LISTA : CRÔNICA AFETIVA SOB UM REFERENCIAL DE TEMPOS PANDÊMICOS

A Lista. De Gustavo Pinheiro. Direção/Guilherme Piva. Janeiro/2023. Fotos/Bob Souza.


Reunir dois personagens cariocas solitários, típicos de uma dura realidade social de afastamento corporal e reclusão forçada pelo surto pandêmico mesmo que, num impulso subliminar de lugar comum, caracterizassem uma situação similar vivida àquele momento pela população em escala mundial, fez com que a peça A Lista se tornasse um verdadeiro fenômeno. Numa trajetória que vai das plataformas digitais, passa pelos palcos, devendo chegar em breve às telas e à sua publicação em livro (na coleção Dramaturgia da Editora Cobogó).

Desde sua estreia em formato reduzido, tornado padrão para o chamado teatro virtual, a partir do encontro cotidiano daquelas duas mulheres, representadas de um lado por uma velha senhora integrante dos grupos de risco, bastante temerosa de sair de casa, e de outro por uma vizinha mais jovem que se oferece, solidariamente, para efetuar as compras dela, segundo o enunciado  numa lista de supermercado.

Num dimensionamento de comédia dramática, criando um clima emotivo em que tanto a professora aposentada Laurita (Lilia Cabral) como a visitante da vizinhança - Amanda (Giulia Bertolli), marcada pelo sonho e frustração como cantora lírica, vão inicialmente se defrontando, no entremeio de reclamações sob alguns possíveis desacertos na encomenda, num desabafo dialetal de conflitos, expositivo da situação social e do difícil suporte da condição humana para cada uma delas.

Onde foi provocada uma onda mágica, desde o acerto na escolha das duas luminosas atrizes de gerações diferentes, ampliado de modo tocante na conexão familiar existente entre elas. Com forte apelo no carismático sincronismo entre as duas intérpretes, na vida real mãe e filha, tornando maior a empatia palco/plateia que se estabelece desde a primeira parte do espetáculo.

A Lista, de Gustavo Pinheiro. Com Lilia Cabral e Giulia Bertolli. Janeiro/ 2023. Fotos/Priscilla Prade.

E que na atual versão presencial se estende por mais dois momentos, perfazendo uma meia hora além da originária apresentação cinético - digital. Do clima insólito à causa da Covid-19 transcendendo, numa projeção espacial e temporal, da pós pandemia a um futuro imaginário. Sempre sob funcional sequencialidade narrativa, através de um convicto e seguro sustento direcional (Guilherme Piva).

Privilegiando marcas cênicas e indumentárias simbólicas (em dupla concepção de J. C. Serroni), como a plasticidade do uso de um assoalho domiciliar reproduzindo o design do calçadão de Copacabana, mais efusivo na parte paisagística tendo, ao fundo, motes referenciais, como o mar, as montanhas, o Pão de Açúcar, além do banco com a estátua de Drummond.

Através de efeitos luminares (Wagner Antônio) que variam entre tonalidades mais discricionárias a uma expansiva claridade solar e lunar nas cenas externas. Entremeadas com sutis ruídos marítimos, mais perceptíveis na sugestão paisagística da orla de Copacabana, além das inserções sonoras de temas musicais nostálgicos ao lado de clássicos acordes bossanovistas.

Com destaque na substancial qualidade de um texto dramatúrgico (Gustavo Pinheiro) capaz, antes de tudo, de ter crescente alcance sensorial por intermédio de linguagem exemplarmente cotidiana. Sabendo, ao mesmo tempo, como driblar as obviedades de um drama afetivo comum às duas e ao dia-a-dia de muitas outras mulheres, dentro de um contextual identidário extensivo a cada espectador.

Provando, mais uma vez, o quanto se tornou singular e reveladora a escrita de Gustavo Pinheiro, um dos autores de notória representatividade nos novos caminhos e da última geração dramatúrgica carioca e brasileira. Coincidentemente, A Lista divide o mesmo palco do Teatro dos Quatro, com mais uma temporada de A Tropa, outro de seus expressivos sucessos de público e de crítica.

Embora não se configure como uma estreia absoluta, não deixa de ser emblemático o fato de que A Lista, abordando um dos pânicos de uma terminal (des)governança, esteja abrindo, agora, com raro brilho, a Temporada Teatral 2023 dos palcos cariocas. Em ano ainda de grande esperança por novas perspectivas culturais e advindo logo após um pesadelo obscurantista que parecia nunca ter fim...


                                          Wagner Corrêa de Araújo


A Lista está em cartaz no Teatro dos Quatro/Shopping da Gávea, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 26 de março.

RETROSPECTIVA TEATRAL 2022 : SOB REFLEXOS ESPECULARES DE UMA VERDADE CÊNICA ENTRE A POESIA E O PÂNICO

Uma Revolução dos Bichos. Bruce Gomlevsky, direção. Outubro/2022. Foto/Dalton Valério. 

 

Se a Temporada Teatral 2022 já apresentou novos ares no processo de recuperação, em final de biênio pandêmico com o sequencial retorno aos palcos presenciais, ainda assim enfrentou tempos difíceis diante de uma crescente crise econômica, paralela ao descaso governamental às políticas de incentivo cultural.

Em São Paulo foi mais imediata a retomada mas nos palcos cariocas o desafio foi maior, ampliado pelo fechamento ou pela lenta volta de vários espaços teatrais. Onde a primeira realização mais ousada, dentro de um contexto de volta aos espetáculos de maior custo, foi Barnum-O Rei do Show. Iniciativa corajosa do produtor/diretor Gustavo Barchilon para tornar mais luminosa a retomada em palcos brasileiros do grande musical a la West End londrino com um sotaque do Cirque du Soleil, sob um primado subliminar de versátil inventividade cênica.

Nesta reconquista do aplauso público, não se pode deixar de destacar o afirmativo êxito de Intimidade Indecente, de Leilah Assumpção. Numa artesanal gramática cênica conduzida com perceptível empenho por Guilherme Leme Garcia, em energizada sintonia com a força carismática de dois atores (Marcos Caruso e Eliane Giardini).


A Última Ata. Victor Garcia Peralta/Direção. Novembro/2022. Foto/Cristina Granato.

Enquanto esta peça originou-se de uma montagem em Portugal, Tudo (do argentino Rafael Spregelburd) vinha de pré apresentações isoladas ou em festivais. Numa escritura em que a palavra cênica é contextualizada através de uma metafórica visualidade gestual, mas sem nunca perder a prevalência visceral de seus provocativos signos verbais, na potencializada versão de Guilherme Weber para um afinado elenco.

Três Mulheres Altas, sob convicta direção concepcional de Fernando Philbert,  alcançou um brilho particularizado na temporada por sua conotação de reconhecido teatro  de repertório, marcado por uma dialetação pirandelliana entre o autor (E. Albee), os personagens e os atores (no tríplice alcance de uma superativa performance feminina), em fabulário despudorado e ferino sobre a decrepitude de uma mulher nonagenária (na estelar personificação de Suely Franco) .

Duas peças se identificaram na sua proposta de denúncia das mazelas do universo político, através de seus signos mais burlescos como o descompromisso cívico parasita. Caso de A Última Ata, de Tracy Letts, sucesso recente da Broadway a uma transposição especular para a nossa realidade, em incisivo comando direcional de Victor Garcia Peralta para um elenco de craques.

E, também, Dignidade, do catalão Ignasi Vidal, uma necessária incursão dramatúrgica para definir a habitualidade corrupta de nossos candidatos eletivos, ao colocar em questão o desafio entre a escolha da postura ética e a prevalência viciosa da vantagem pessoal. Na maestria de uma direção (Daniel Dias da Silva) de envolvência crítica e reflexiva e de uma irrepreensível dupla atoral (Cláudio Gabriel e Thelmo Fernandes).

Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes. Cia Dos a Deux. Setembro/2022. Foto/Renato Mangolin.

Comemorando os 35 anos da Armazém Companhia de Teatro, uma das mais resistentes e importantes do País, sob o sólido comando de Paulo de Moraes, Neva, de Guillermo Calderón, uma mais que oportuna peça chilena. Polemizando por intermédio de uma postura de metateatro, além de qualquer conexão de tempo e espaço, a partir do compasso tchekhoviano russo de 1905, para explicar emblematicamente os absurdos políticos da história ditatorial chilena.

Mais uma montagem referencial, desta vez da lavra de Bruce Gomlevsky, em afiada releitura dramatúrgica, titulada, aqui e agora, como Uma Revolução dos Bichos,  sustentando-se no dimensionamento literário inicial de Orwell, com um olhar ancorado na contemporaneidade. Num surpreendente trabalho coletivo performático e de plasticidade cênica-gestual, a partir da engajada versão textual de Daniela Pereira de Carvalho.

André Curti e Artur Luanda Ribeiro acionaram sua pulsão inventiva, situados na confluência de linguagens artísticas do teatro à dança, para retomar o imaginário onírico que vem marcando suas criações, ao longo dos últimos anos, através da Cia. Dos a Deux. Sob introspectivos gritos de silêncio expressos por visceral abordagem gestualista, em sua mais recente realização cênica, simbolicamente denominada Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes.

Entre outras provocadoras propostas monologais (como o transcendente olhar contemporâneo anti historicista  do Pedro I por João Campany e a corporeidade verbal desmistificadora, na saga euclidiana de A Luta, segundo a representação de Amaury Lorenzo), Ficções se estabelece numa contundente dialetação dramatúrgica na sua livre e personalizada releitura do livro inspirador. Transmutando-se, sem dúvida alguma, em 2022, no perceptível campeão dos palcos, do  público e da crítica.  

Onde o escritor/historiador (Yuval Harari), o dramaturgo/diretor (Rodrigo Portela) e a atriz (Vera Holtz) se confundem todos como personagens portadoras de polêmica mensagem, sob um sotaque pirandelliano. Sintonizados, sempre com uma sólida funcionalidade das atitudes criadoras, em abissal mergulho numa atemporalidade surrealista de delírio e verdade cênica.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


Ficções. Rodrigo Portella, dramaturgia/direção. Vera Holtz e Federico Puppi. Novembro/2022. Foto/Ale Katan.

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