TRÊS MULHERES ALTAS : HUMOR SOMBRIO NO COMPASSO DE UMA RECONCILIAÇÃO TERMINAL

Três Mulheres Altas. De E. Albee. Direção /Fernando Philbert. Setembro/2022. Fotos/Pino Gomes.


Quando ela se aproximou dos noventa anos, começou a falhar rapidamente tanto física quanto mentalmente; fui então tocado pela sobrevivente, a figura agarrada aos destroços, recusando-se a afundar”. (Edward Albee).

Nestas palavras, enunciadoras de uma controvertida relação familiar que o autor americano teve com sua mãe adotiva, está a chave conceitual  que abre as portas para o entendimento do misterioso entorno narrativo  de uma de suas últimas e mais emblemáticas obras dramatúrgicas – Três Mulheres Altas.

Inspirada nesta arredia figura materna que, em seu conservadorismo preconceituoso de uma classe americana endinheirada, desprezava aquele filho “comprado”, inclusive por sua condição de se revelar gay. O que o levou a se afastar desta convivência em longo exílio, interrompido apenas por uma visita sua, no instinto de piedade tal um filho pródigo, à beira de seu leito terminal.

E é no encontro destas “Três Mulheres Altas”, nominadas por Albee apenas pelas letras A, B e C, de acordo com suas faixas decrescentes de idade, aqui respectivamente interpretadas por Suely Franco, Deborah Evelyn e Nathalia Dill, que acontece esta acertada escolha para preencher o universo cênico da presente temporada carioca.

Ocorrendo este ajuste através de uma potencializada trama dramatúrgica, conduzida em clima de permanente maestria pela direção de Fernando Philbert, sob a acurada tradução de um contumaz decifrador dos segredos cênicos, o também autor teatral Gustavo Pinheiro.

Três Mulheres Altas. Com as atrizes Nathalia Dill, Suely Franco e Deborah Evelyn. 

Para obra de incisiva caracterização do mais simbólico representante americano do teatro do absurdo. Embora esta opção dramatúrgica seja, por Albee particularmente definida, através de um naturalismo cômico com lastro poético, sustentado em formas dramáticas que o aproximam daquela estética em dimensionamentos bastante diferenciais.

Indo de uma identificação maior com o humor de irônica mordacidade dos personagens de Ionesco do que apelando à absoluta desconstrução da realidade pelo ideário de Beckett. Temperada, ainda, com um sotaque de nostalgia e compaixão entre Tchekhov e O’Neill. E algumas vezes, como nesta peça, marcada por uma dialetação pirandelliana entre o autor, os personagens e os atores.

Em requintado retrato cênico de um clima domiciliar burguês, encimado por móveis de época e decorativas cortinas frontais, outra vez por obra e graça do habitual aporte inventivo de Natalia Lana e dos efeitos luminares ambientalistas de Vilmar Olos, sob discricionárias e instantâneas intervenções da trilha sonora (Maíra Freitas).

Completado na elegante tessitura, com prevalência detalhista no equilíbrio de tonalidades preto e branco, dos figurinos e do visagismo sóbrio de Tiago Ribeiro, sugestionando a reveladora identidade indumentária de três atrizes. Conectada à surpresa, na revirada no enredo da segunda parte, com a convergência metafórica do tríptico atoral transmutado em uma voz única.

No desenrolar desta fabulação despudorada, no seu enfoque ferino da decrepitude antecipadora da fase terminal da nonagenária senhora A, Suely Franco revela carismática maturidade no domínio de seu personagem. Dividido entre considerações, ora de indignados ora de patéticos desabafos diante de sua trajetória de vida.

Enquanto Deborah Evelyn, como B, a  acompanhante/enfermeira, dá uma sensorial lição performática, assumindo uma mulher de meia idade, compassiva mas ciente do futuro similar que, enfim, pode alcançá-la. Cabendo à terceira atriz, Nathalia Dill no papel de C, a responsável pelos assuntos jurídicos de A, com uma irreprimível jovialidade interpretativa, expressar suas expectativas geracionais no escape daquela situação de presencial pesadelo.

Onde a convicta concepção direcional (Fernando Philbert) estabelece um bravo e vigoroso inventário dramático, que se irradia na cumplicidade especular palco/plateia, sob a identificação existencialista com o que há de vir ou do que se esperava acontecer, no percurso da difícil sobrevivência solitária de cada um de nós...


                                        Wagner Corrêa de Araújo



Três Mulheres Altas está em cartaz no Teatro Copacabana Palace, de quinta a sábado, às 19h30m; domingo, às 18hs. Até 23 de outubro.

MACUNAÍMA/BALÉ DO TMRJ : RESGATANDO A IDENTIDADE MÍTICA DE UM HERÓI MODERNISTA

Macunaíma. Balé do TMRJ. Coreografia Carlos Laerte, coreografia. Ronaldo Miranda, música. Setembro/2022. Fotos/Conrado Krivochein.


Desde os anos 30, o Balé do TMRJ sempre privilegiou, ao lado do repertório clássico internacional, obras inspiradas em composições brasileiras (inicialmente, de Villa-Lobos e Mignone, a Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez) coreografadas inclusive por criadores do naipe de Serge Lifar e Léonid Massine.

Sendo  mais do que louvável a retomada deste ideário em compasso comemorativo nacionalista, tanto do Bicentenário da Independência como dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, através da primeira versão completa para o palco coreográfico de obra simbólica deste movimento – Macunaíma.

Na trilha de um clássico fenômeno de desconstrução investigativa dos paradigmas estilísticos e convencionalismos temáticos da arte e da literatura Macunaíma, 1928, criação mor de Mario de Andrade pós Semana de 22, alcança sua primeira reinterpretação sob o propósito de uma nova instauração coreográfica da identidade cultural brasileira, em torno deste “herói sem nenhum caráter”.

Depois das emblemáticas releituras para o cinema, com Joaquim Pedro de Andrade, 1969; para os palcos teatrais, por Antunes Filho,1978; na irreverente versão concepcional de Bia Lessa, 2019; e, agora, para o universo da dança contemporânea. Em idealização dúplice do coreógrafo Carlos Laerte a partir da composição inédita de Ronaldo Miranda, plena de brasilidade em seus calorosos acordes sinfônicos (aqui, conduzidos artesanalmente por Jésus Figueiredo à frente da OSTM).


Macunaíma. Balé do TMRJ. Coreografia Carlos Laerte, coreografia. Ronaldo Miranda, música. Setembro/2022. Fotos/Conrado Krivochein.

Enunciada (por intermédio do roteiro de André Cardoso) no fio condutor do original literário, embora sujeito a um olhar diferencial armado na contemporaneidade, mas sem a nuance mais transgressora de Bia Lessa ou o substrato mais assumidamente ingênuo e primitivista de Antunes Filho.

Num dimensionamento estético do encontro das linguagens do cinema e da dança através das inserções de imagens projecionais (Igor Corrêa), em proposta de interatividade pictórica, na fusão presencial dos bailarinos com as imagens cinéticas referenciais à floresta amazônica.

Sem deixar de lado uma citação fílmica, em tom de denúncia, sobre os absurdos de uma equivocada política de descaso ao meio ambiente, em flashes de incêndios, com a invasão exploratória das terras indígenas, sequenciada no polêmico  assassinato  recente de dois de seus grandes defensores (Bruno Araújo e Dom Phillips).

Em energizada performance coletiva de quase 50 bailarinos, entremeada por solos e duos (com destaques na atuação feminina de Márcia Jaqueline e das irmãs Claudia e Priscilla Mota), envolvendo o vigoroso protagonismo tríptico de Glayson Mendes, Rodolfo Saraiva e Edifranc Alves. Respectivamente representativo da trajetória em quatro momentos do personagem titular, de sua geração materna em ambiência indígena ao seu inusitado comportamental urbano e o seu libertário destino mítico como habitante do espaço sideral.

Numa progressão dramática em contextual cênico de rubricas soturnas, acentuadas por luzes entre sombras (Paulo Ornellas), num formalismo estetizante coesivo com os fotogramas em preto e branco mas indo além da tonalidade ideal. Ao escurecer o visceral paisagismo urbano muralista e a mais clara percepção do uso de traços aquareladas, no visagismo corporal e na indumentária (Wanderley Gomes), a partir do legado dos pintores modernistas de 22.

Onde a incisiva exploração gestual (Carlos Laerte) de corpos em conexão revela instintiva amarração rítmica de contrações musculares capazes de remeterem, simultaneamente, ao contraponto de um gestual indigenista à adequação da fisicalidade à herança afro-brasileira e aos movimentos da dança urbana.

Fazendo, enfim, desta proposta de buscas investigativas mais ousadas para o Balé do TM, um necessário e questionador instante cultural de um País em crise de identidade, ecoando nas palavras iconicamente visionárias de Mário de Andrade para contextualizar Macunaíma :“Eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo”...


                                        Wagner Corrêa de Araújo 


Macunaíma/Balé do TMRJ, está em cartaz no Teatro Municipal, de quarta a domingo, em horários diversos, até o dia 25 de setembro.

PEDRO I : SOB DIALÉTICA DRAMATURGIA, A TRANSGRESSORA RELEITURA DE UM PERFIL HISTÓRICO

Pedro I. Criação de Roberta Brissom, Daniel Herz e João Campany. Setembro/2022. Fotos/Patrick Gomes.

Para o pensador Walter Benjamin o retrato de um personagem detentor do poder transformador não pode se sustentar apenas na verdade histórica e documental, há que se consolidar também seu perfil, através do que ele chama de “rastros”, numa abertura a um novo e incisivo conceitual.

Onde, por intermédio da decifração de paralelos vestígios num quase compasso de descobertas arqueológicas, esta busca investigativa vá além do fato histórico/biográfico, direcionando-se a um imaginário coletivo provocador. Capaz, assim, de inspirar uma instigante e dialética tessitura dramatúrgica que, segundo a teoria brechtiana em consonância com Benjamin, esteja longe de qualquer “apagamento de rastros”.

E foi a partir de uma simbológica e contestadora conjuntura do que poderia ter sido ou acontecido, entre a historia oficial e o rastreamento da vida paralela, que se dimensionou a escritura cênica, performática e direcional da peça Pedro I, em idealização conjunta do ator João Campany e do diretor Daniel Herz, sob uma  textualidade teatral de Roberta Brisson.

Sem deixar de instaurar um sotaque dramatúrgico que conecta assumidamente seus criadores tanto a Brecht quanto a Pirandello. Não só através de um olhar armado na dialética brechtiana como na construção pirandelliana da estética especular de um personagem que dialoga com si mesmo, ora como um imperador do século XIX, ora como um ator contemporâneo.

Fugindo radicalmente do desgaste e do lugar comum de um espetáculo comemorativo de data cívica, no caso o bicentenário da Independência do Brasil. Embora cenicamente situado em espaço arquitetônico historicamente ligado a passagens da vida ancestral de seu personagem titular.

Pedro I. Direção de Daniel Herz. Com João Campany. Setembro/2022. Fotos/Patrick Gomes.

Mas polemizando este contextual com um retrato cáustico de um imperador post mortem como se este, no terceiro milênio, tivesse acabado de deixar seu refúgio tumular. Ressaltado pela degradação secular de sua indumentária monárquica, numa ambientação cênica preenchida por puídas peças de madeira, no entremeio de lastros de poeira e lama.

Em inventiva concepção cenográfica, direção de arte e criação do figurino por Ana Cecilia Cabral, sabendo como contrastar a beleza pictórica e  clean da conservação de um espaço histórico com os detritos próprios e os escombros de uma construção em desmonte. Destacado pelas luzes claras e vazadas de Aurélio Di Simoni, acompanhadas por sutis sonoridades percussivas, indo de acordes melódicos às instantâneas citações fragmentárias de cantos patrióticos, em climática trilha de Pedro Nêgo.

Fazendo desfilar, ora nas impressões verbais de Pedro I ora nas falas de seu alterego atoral,  os espectros familiares de D. Maria a Louca, D. João VI, Carlota Joaquina, Dona Leopoldina, sem esquecer das injunções passionais da Marquesa de Santos. Em performance transgressora e reveladora do instintivo  talento de um intérprete (João Campany) pleno de recursos dramáticos e histriônicos, do irreverente  gestual à expressão psicofísica das ambiguidades de um personagem real e  ficcional.

No traçado historicista do mandatário monárquico às suas ambições contemporâneas de retomada do poder, confrontando-se em suas asserções com o ator como personagem. Num crescendo dramático e num contraponto critico, de interação sensorial com a plateia, imprimido por uma sempre precisa e visionária gramática cênica  do diretor Daniel Herz.

Em resgate memorial que conduz da escravidão às mazelas da formação da Nação Brasileira, no sustento, ontem e hoje, das adversidades políticas de um País destinado a estar à beira do caos, do machismo e da misoginia ao preconceito racial, das diferenças sociais ao repúdio à livre identificação sexual.

Sintonizando-se, em transcendente metáfora dramatúrgica,  com o nosso tempo e com nossa atual realidade política, através da intencionalidade de um outro - novo e desmistificador - grito substitutivo de independência : “Liberdade ou Morte”...


                                                Wagner Corrêa de Araújo


Pedro I está em cartaz no Paço Imperial/Praça XV, quintas e sextas, às 17h30m; sábados e domingos, às 16h. Com entrada franca. Até 01 de outubro.

CIA DOS A DEUX : EM MAIS UM MERGULHO ABISSAL NO IMAGINÁRIO ONÍRICO

Enquanto Você Voava, Eu Criava Raizes. Cia Dos A Deux. Setembro/2022. Fotos/ Renato Mangolin.


A partir da solidão opressiva, mas ao mesmo tempo reflexiva, a que fomos submetidos, como se condenados fossemos a uma prisão domiciliar durante o tempo pandêmico, estabeleceu-se um interregno questionador em nossas vidas, sinalizado pelo estigma de que poderíamos ser ou não a próxima vítima fatal.

Que se refletiu especularmente em cada um de nós em dimensionamentos diferenciais, mas sempre carregados por uma dose de expectativa para entender, no entremeio de temores e sombras, o real sentido daquela instantânea situação em seu vislumbre do quão difícil é o suporte da condição humana com sua perspectiva de terminalidade.

Com esta passagem dramática em nossas trajetórias existenciais, os múltiplos artistas André Curti e Artur Luanda Ribeiro, mais uma vez acionaram sua pulsão inventiva, situados na confluência de linguagens artísticas do teatro à dança, para retomar o imaginário onírico que vem marcando suas criações, ao longo dos anos, através da Cia. Dos a Deux.

Agora, com a proposta de também mostrar sua concepção conceitual, sob introspectivos gritos de silencio expressos por visceral abordagem gestualista, em sua mais recente realização cênica, simbolicamente denominada Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes.

Em análise critica que postamos à época, sobre o último trabalho apresentado em palcos brasileiros – Irmãos de Sangue, fizemos questão de ressaltar a transmutação permanente de um principio freudiano nas criações da Cia. onde “o pensamento virtual se aproxima mais dos processos inconscientes que o pensamento verbal”.


Cia Dos a Deux/Enquanto Voce Voava, Eu Criava Raízes. Setembro 2022. Fotos/ Nana Moraes.

Na circularidade de um vocabulário  plástico/cinético capaz de remeter, ora a um formato de conotação ritualística e mais lúdico em sua estruturação caleidoscópica, propiciadora de uma sucessão psicodélica de imagens superpostas.

Ou com um referencial cenográfico ao icônico desenho o "Homem Vitruviano", de Leonardo da Vinci. Pela simétrica sugestão imagética de um corpo humano masculino desnudo, desdobrando seus braços e pernas num retrato plástico, situado entre um círculo e um quadrado, que é  a terra e também o céu.

Aqui, como se fora apenas uma a corporeidade dos dois atores/bailarinos (André Curti e Artur Luanda Ribeiro) simultaneamente, segundo a noção alquímica, no ideário do que está por cima é igual ao que está por  baixo, tocando-se nos pés e nas mãos, enquanto os braços alongados por suportes criam uma delirante visualidade, na sequencial sucessão gestual/coreográfica de um instante que conduz sensorialmente a outro.

Ressaltados por efeitos luminares (Artur Luanda Ribeiro) sob a prevalência de sombreamentos, entre tonalidades pictóricas metaforizadas, com pinceladas virtuais  por vezes abstratas ou com sotaque pontilhista, na cena de gotas de água preenchendo o espaço cênico.  

Sempre, em alucinantes inserções visuais, a partir do uso dos elementos materiais (por Diir) e videográficos (Laura Fragoso). Alternando-se um figurativismo indumentário (Ticiana Passos) com o desnudamento corporal dos performers. Havendo que se destacar a impactante e qualificativa originalidade da partitura sonora de tessitura erudita, pelo compositor e instrumentista Federico Puppi.

Capaz de proporcionar em suas ondas sonoras graves, entre acordes melancólicos, uma envolvência emotiva levada à sua culminância em apoteótico rufar percussivo. Este jovem compositor cada vez mais surpreende com suas buscas inventivas que o aproximam dos experimentos musicais, com um minimalismo libertador, do estoniano Arvo Pärt.

Provocadora e imersiva, da enérgica fisicalidade à introspectiva proposta, a escritura gestual de Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes, faz com que seus criadores – André Curti e Artur Luanda Ribeiro – a compartilhem com o espectador como uma obra reflexiva aberta à fruição intimista de cada um. E capaz, assim, de ecoar o emblemático mistério de Clarice Lispector – “Ouve-me, ouve o meu silencio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa”...

                                          Wagner Corrêa de Araújo

  

Enquanto Você Voava, Eu Criava Raizes/Cia Dos A Deux está em cartaz no Oi Futuro/Flamengo, de quinta a domingo, às 20h. Até 25 de setembro

MARILYN POR TRÁS DO ESPELHO : GLAMOUR E TRAGICIDADE EM DÚPLICE REFLEXO CÊNICO

Marilyn Por Trás do Espelho. Com Anna Sant'Anna. Setembro/2022. Fotos/Andrea Rocha.


Marilyn veio das décadas de 1940 e 1950. Foi a prova de que na psique americana sexualidade e seriedade não podiam coexistir, que eram até hostis, opostos ausentes”. (Arthur Miller).

Ao mesmo tempo em que reconhecia a pressão que abafava o sonho de Marilyn Monroe de não ser tratada apenas como um símbolo sexual, o dramaturgo Arthur Miller, usava-a quase como uma boneca sem cérebro e, já na condição de seu ex-marido, não quis comparecer ao seu funeral.

Enquanto o escritor Truman Capote no visionário temor, como amigo dedicado da atriz, de que ela morresse jovem, afirmara anos antes de seu trágico fim: “Espero e rezo para que ela pelo menos viva o suficiente para que esse este estranho talento, preso nela como um gênio numa garrafa, possa finalmente sair”.

Agora, na passagem exata dos sessenta anos de sua morte, os palcos cariocas fazem o seu tributo, antecipado em épocas recentes por outras montagens, sob a implícita vontade de desvendar o mistério no entorno de um mito. Celebrado na clareza do sucesso mas oculto, por detrás das sombras da solidão e da frustração pessoal, sem alcançar seu intimista ideário como atriz e como mulher.

Na concretização de um projeto coletivo - Marilyn Por Trás do Espelho - que uniu a envolvência da textualidade dramatúrgica de Daniel Dias da Silva à transmutação em espetáculo, pensado desde 2010, pelo mergulho documental da atriz Anna Sant’Anna na conflituada trajetória artística e existencial de Marilyn Monroe.


Marilyn Por Trás do Espelho. De Daniel Dias da Silva. Direção/Ana Isabel Augusto. Fotos/Andrea Rocha.

E que se torna um fator cênico através do empenho  por uma particularizada concepção da diretora portuguesa Ana Isabel Augusto, com supervisão de Roberto Bomtempo. Viabilizado para um espaço cênico minimalista, em mais um dos acertos de Natalia Lana, ocupado apenas por tapeçaria, uma pequena mesa lateral e centralizado por um sofá com um subliminar referencial de época e um sugestionamento clean.

Onde cortinas e um espelho propiciam saídas originais para a intensa troca de figurinos, além de uma sutil interatividade atriz/personagem/espectador, através de simultâneos reflexos especulares. Ampliados por uma ambiência de sensitivas tonalidades luminares (Renato Machado).

Com um propósito mais incisivo de sondar as duas faces da atriz diante de um espelho que mostrasse sem limites, ao mesmo tempo, o contraste entre as luzes do lado frontal e a escuridão traseira de uma vida marcada pelos contrastes da alegria e da desilusão, dos alcances instantâneos e das quedas abruptas.

Dimensionado por uma performance que une a caracterização da intérprete, através de um preciso visagismo (Camila e Fernanda Pio) sob o design de Carol Fanjur e de rica diversidade indumentária (Joana Seibel), capaz de remeter à lembrança do vasto legado iconográfico e cinético de Marilyn Monroe.

Extensivo às sensoriais incidências gestuais que a direção de movimento (Sueli Guerra), impulsionada pelos acordes incidentais da trilha de Tibor Fittel, imprime à psicofisicalidade,  na convicta entrega de Anna Sant’Anna à sua personificação titular em tempo de solilóquio.

Complementada pela surpresa da revelação no epílogo, em afirmativo tom confessional, da identificação que uniu visceralmente a atriz ao processo estético/conceitual de seu personagem. Encontrado e assumido desde seu lado sedutor e ingênuo mas, num mesmo compasso, conectado às instabilidades emocionais, da rejeição e da vulnerabilidade à insegurança.

À causa de um star system que só lhe dava um lugar ao sol por ela incitar, com seu sex appeal, as fantasias secretas de Hollywood. E que a representação, habilmente delineada na trama dramatúrgica de Daniel Dias da Silva, bem soube como transcender o mito num tocante e patético retrato da condição feminina.


                                             Wagner Corrêa de Araújo

                                       


Marilyn por Trás do Espelho está em cartaz no Teatro das Artes/Shopping da Gávea, sempre às quintas feiras, às  20h, até o dia 29 de setembro.

DUETOS : RISO E IRONIA EM QUATRO LÚDICOS ESQUETES SOBRE O AMOR

Duetos, de Peter Quilter. Com Patricia Travassos e Marcelo Faria. Agosto/2022. Fotos/André Wanderley.


Não indo muito longe, há de se lembrar que o celebrado dramaturgo inglês Peter Quilter já abrilhantou os nossos palcos, além de ter andado pelas telas brasileiras, com versões de duas de suas peças mais queridas pelo público e pela crítica.

Em 2019, com o grande campeão do Oscar – Judy (a partir do original End of the Rainbow (antecipado na releitura em musical de 2011, por Cláudio Botelho) e Florence Foster, o filme de 2016. Em outra bem sucedida adaptação do diretor carioca a partir de Glorious, desta vez em 2009, num dos maiores êxitos da trajetória de Marília Pera.

Mas Duetos, outro dos sucessos de Quilter, vem desde sua estreia há treze anos, alcançando a cena global e, agora, chega finalmente ao Brasil, sob a artesanal direção de Ernesto Piccolo na escolha de dois craques do teatro, da televisão e do cinema, Patrícia Travassos e Marcelo Faria.

Numa acurada produção para o gênero comédia romântica reunindo além destes cotados nomes, uma potencial equipe de criadores. Estamos falando é claro de gente como Claudio Tovar que enriquece a caixa cênica  (em originalíssima concepção de J. C. Serroni trazendo os camarins para o palco) com os fantasiosos recortes e delírios psicodélicos de seus figurinos.

Sem esquecer dos climáticos efeitos psicofísicos proporcionados pelas luzes de Aurélio de Simoni e pelas incidências musicais de Rodrigo Penna, em perfeita consonância com o gestualismo imprimido aos atores por Daniella Visco.


Duetos. Ernesto Piccolo, direção. Agosto/setembro 2022. Fotos de cena /Felipe Costa.

A peça, concebida pelo autor com uma certa liberalidade que ele próprio sugestiona na ambientação e nas referências locais de cada uma das estórias, extensiva à ideia destas serem apresentadas em similar formatação dúplice de dois mesmos interpretes ou por uma diversidade performática.

Onde cada uma destas vinhetas ou esquetes por seu dimensionamento conflituoso dos relacionamentos amorosos, afetivos e, sobretudo, humanos, pode ter um direcionamento variado, na entrega absoluta como é, aqui, assumida pelos atores Patrícia Travassos e Marcelo Faria em caracterizações de exemplar habilidade atoral, na sua envolvência do humor à teatralidade.

Pela aceitação transcendente de cada uma destas narrativas pelo espectador, mesmo que, subliminarmente, possa ele se sentir mais, ou talvez menos, tocado em sua identificação emotiva, seja pelo lado receptivo do feminino/masculino ou pelo referencial gay que ali também aparece.

Ainda que perpasse, na temporalidade instantânea de cada uma delas, um certo superficialismo na abordagem irreverente do comportamental cotidiano. Indo da busca ansiosa pelo preenchimento da solidão, na aventura dos encontros presenciais por aplicativos, ao desgaste da relação conjugal em clima de despedida numa viagem de férias.   

Complementada nos episódios sequenciais, com duas situações mais propositalmente inusitadas e quase em compasso de certa absurdidade teatral, quando uma secretária em anos de convivência profissional ao lado do seu patrão, assumidamente gay, insiste numa afetividade de conectiva corporeidade por ele.

Ou de uma noiva na terceira tentativa matrimonial, fazendo-se acompanhar, na cerimonia de núpcias, mais uma vez pelo irmão, no entremeio de supersticiosos medos e crenças. Atirando-se na imprevisibilidade espacial, sob a metaforização de um abusado vestido de noiva mais próximo do conceitual plástico de um paraquedas...

Onde há que se destacar o uso carismático dos ingredientes agridoces de uma comédia da vida privada que o comando diretorial de Ernesto Piccolo faz alcançar nestes Duetos. Privilegiando o riso sob o entorno da irracionalidade dos relacionamentos humanos sabendo dosar, com rompante simpatia cênica, os lugares comuns do amor...


                                        Wagner Corrêa de Araújo


Duetos está em cartaz no Teatro das Artes/Shopping da Gávea, sextas e sábados, às 21h, domingos às 20h. Até o dia 02 de outubro.

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