FOTOS/RENATO MANGOLIN |
Retoma-se aqui, pelo senso da utopia, a negação do Estoicismo, primitiva escola filosófica grega
que influenciaria, sobremaneira, as bases comportamentais e moralistas do Cristianismo
nascente, a partir do necessário primado do bem sobre todos os vícios e degradações humanas.
Já no prólogo do filme de Lars von Trier, de 2003, torna-se perceptível a solidária comiseração do
personagem Thomas, diante da pequena comunidade de Dogville, ao defender o abrigo ali de uma jovem sob perseguição de gângsteres. E que,
em troca de serviços domésticos às famílias locais, ficaria sob a proteção do
povoado.
Mas aquela gente simples, sem luxos e vaidades, aos poucos,
vai desvelando seus mais baixos instintos, sob as falsas aparências. Na exploração, sem eiras nem beiras, da
disponibilidade humilde com que a personagem Grace aceita suas funções servis
na ambiência familiar dos aldeões.
Onde a progressiva prevalência da agressividade e dos maus
tratos alcança a absurdidade, transmutando sua submissão em escravismo, nas raias da humilhação e no direcionamento à violência como objeto sexual.
Em estupros sequenciais, inclusive por Tom, o seu inicial guardião, deixando
cair a máscara comportamental do utopismo estoicista que ele apregoava como
pretenso mentor filósofo.
Na original versão fílmica era nítida a simbologia da
estética teatral, a começar pela fuga ao realismo cenográfico nas demarcações físicas
com traços solares de giz. Além da formatação, claramente dramatúrgica, dos
personagens em sua dialetação física com abstratas materializações espaciais.
Na presente transposição para o palco, sob a similar titularidade de
Dogville, em seguro comando
concepcional de Zé Henrique de Paula, sob viés do distanciamento brechtiano, há uma inversão no cruzamento das duas
linguagens artísticas, cujo conceitual estilo estaria na passagem de cinema
teatral para teatro cinematográfico.
Se o despojamento cenográfico (Bruno Anselmo) é aproximativo
do visto na tela, as projeções de dimensão quase cinemascope criam duas paisagens para o olhar do espectador, na
simultaneidade com que as cenas se defrontam no dúplice plano visual. Embora isto
torne mais frugal e menos incisivo o enfoque luminar (Fran Barros) diante de
uma expansiva claridade entre sombras da expansiva projeção frontal.
Enquanto a indumentária (João Pimenta) em tons ocres
contrasta com o aquarelado do figurino da protagonista feminina, a trilha
sonora ( Fernanda Maia) lembra a do filme no sincronismo de acordes clássico/eletrônicos.
Num elenco coeso de 16 atores, entre maiores ou menores chances para uma
diversidade de papéis, com representação personalista mais exponencial de Mel Lisboa
(Grace), sintonizando-se coletivamente com Eric Lenate, Fábio Assunção, Bianca
Byngton, Rodrigo Caetano, Selma Egrei, Marcelo Villas Boas, Anna Toledo. E, também, Blota Filho, Gustavo Trestini, Fernanda Thuran, Thalles Cabral, Chris Couto,
Dudu Ejchel, Munir Pedrosa, Fernanda Couto.
Em proposta diferencial por seu caráter investigativo, na
releitura do ideário original (que dividiu o público das salas de cinema por
seu teor provocativo e anti lúdico), sempre com o olhar armado neste seu novo
contexto estilístico para o palco.
Tornando-se, enfim, obrigatória pelo domínio na sua criação formal
de produto bem acabado e, mais ainda, por
seu substrato critico/ideológico como inventário dramático das indignidades da condição humana.
Wagner Corrêa de Araújo
DOGVILLE está em cartaz no Teatro Clara Nunes/Shopping da
Gavea/RJ, sexta e sábado, 21h; domingo, às 20h. 100 minutos. Até 16 de
dezembro.
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