RETROSPECTIVA TEATRAL 2023 : SURPRESAS CÊNICAS EM ANO DE MAIOR LUMINOSIDADE NOS PALCOS

Julius Caesar -Vidas Paralelas. Gustavao Gasparani/Direção Concepcional. Janeiro/2023. Foto/Nil Caniné/Batman Zavarese.

 

Aos poucos o teatro vai retomando sua energia  depois de um interregno de crise pandêmica e de um quadriênio de políticas culturais equivocadas. Mesmo que ainda não tenha alcançado seu ponto ideal e ainda falte o incentivo financeiro necessário a maiores investidas, 2023 trouxe algumas grandes revelações.

O teatro, de sotaque subliminar mais clássico, destacando-se com a primorosa direção concepcional, dos palcos paulistas aos cariocas, imprimida por Sérgio Módena para a Longa Jornada Noite Adentro, densa trajetória psicodramática sob as nuances de um realismo poético, intermediando sangue e alma, no clima memorialista de Eugene O’Neill. Perceptível também em outra das incursões brechtianas (A Exceção e a Regra) de Luiz Fernando Lobo no Armazém da Utopia, por um teatro engajado que possibilita o lúdico direcionado à reflexão política, com um vigoroso avanço cênico.

Ou ainda no transcendente conceitual com um recorte estético contemporâneo que Gustavo Gasparani deu à sua meta releitura que conecta Shakespeare e Plutarco em Julius Caesar – Vidas Paralelas, num instigante mergulho no processo investigativo da criação teatral, pela Cia. dos Atores. Por falar em Gasparani este soube, pleno de paixão e convicta entrega, revelar sua contundência atoral fruto de quatro décadas, em Como Posso Não Ser Montgomery Clift, do dramaturgo contemporâneo espanhol Alberto Lopez, com artesanal direção de Fernando Philbert.

De Curitiba veio uma carismática Rosana Stavis em formato monologal na exponencial montagem de A Aforista, de Marcos Damaceno com livre inspiração num ideário ficcional de Thomas Bernhard. E de BH, uma empática imersão numa proposta diferencial traz de volta o Grupo Galpão no Cabaré Coragem, enquanto é de lá também a original releitura de Vestido de Noiva, dimensionada, aqui, como um quase exclusivo teatro coreográfico do Grupo Oficcina Multimédia (Ione de Medeiros).


A Aforista. De Marcos Damaceno, a partir de Thomas Bernhard. Com Rosana Stavis. Fevereiro/2023. Foto/Renato Mangolin.

No entremeio da prevalência de representações solo, tornando-se obrigatória a contundente afirmação da negritude, levada às culminâncias  na proposta cênica/autoral do paulista Clayton Nascimento em Macacos. Como as transmutações do comportamental dramatúrgico inserido no bravo empoderamento do feminino, por intermédio das atrizes Cris Mayrink (O Som e a Fúria em Lady Macbeth) e Rose Abdallah (Só Vendo Como Dói Ser Mulher do Tolstói).

Sem deixar de ressaltar também o desafio das causas raciais identitárias por uma impactante atriz negra (Sirlea Aleixo) em Furacão, outra das icônicas criações do Amok Teatro, de Ana Teixeira/Stephane Brodt, dando um sério recado sobre o ódio propugnado pelo racismo junto aos riscos da terminalidade ambiental.

Estendendo-se este posicionar-se na integralização de um retrato sem retoques do legado conceitual para um Cânone Gay, na simbologia de tons épicos assumida pela representação paulista de A Herança, de Matthew Lopez, por Zé Henrique de Paula. Com grande elenco e em dois segmentos, para falar de um passado devastador e de um horizonte ainda pleno de hostilidade e preconceito.

No universo dos musicais a la Broadway, o mais jovem idealizador do gênero Gustavo Barchilon, navegando da aventura caricatural do Bob Esponja, em compasso fantasioso capaz de envolver crianças e adultos, ao revival inventivo de Funny Girl numa energizada projeção de contemporaneidade. Ao lado de outras esmeradas incursões da dupla Moeller/Botelho (Mamma Mia e Jovem Frankenstein) ou de Tadeu Aguiar (Beetlejuice o Musical).

Mas não podemos deixar de mencionar entre as variadas experimentações de um teatro musical inspirado na brasilidade, criações com a especial singularidade camerística de Noel Rosa: Coisa Nossa, sob uma lírica textualidade dramatúrgica de Geraldinho Carneiro com acertada direção concepcional de Cacá Mourthé. Ou, em similar linhagem cênica/musical, a despretensiosa jovialidade do musical paulista Se Esta Lua Fosse Minha, de Vitor Rocha, capaz de tocar, com sua emotiva ingenuidade poética, quaisquer idades ou o mais indiferente e acomodado espectador.

O mesmo acontecendo com a sensorial releitura dramatúrgica/musical que Rafael Primot fez para os encontros imaginários entre Kafka e a Boneca Viajante, transcendidos em  expressiva carga estética pelo empenho direcional de João Fonseca. Ainda na transposição livro/palco, aqui sustentada por uma escritura psicanalítica, a peça Sra. Klein fazendo uma abissal imersão nos espaços siderais da mente, no conluio do apurado comando de Victor Garcia Peralta a uma sublimada atuação titular de Beatriz Nogueira.

E é com lastro literário que vamos encerrando esta breve retrospectiva teatral em peças baseadas na obra de alguns escritores referenciais. A começar do belo conceitual de construção dramatúrgica por Daniela Pereira de Carvalho, valendo-se de passagens sertanistas de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa, para A Hora do Boi, protagonizada por Vandré Silveira.

Extensiva à sua sólida parceria concepcional com Bruce Gomlevsky, nas expressivas adaptações dramatúrgicas do livro de George Orwell, agora em formato solista titulado como Outra Revolução dos Bichos, entre a encenação realista e o onirismo, interpretada com raro brilho, por Gustavo Damasceno.

Voltando à relação teatro e literatura, tornando-se absolutamente obrigatório para quem não viu ou quer rever o Brás Cubas, destaque absoluto do ano teatral tendo como ponto de partida um dos personagens mais polêmicos de Machado de Assis. Onde Paulo de Moraes e a Armazém Cia de Teatro, com sua potencial gramática cênica e pulsante inventário dramático sintoniza, com emblemática maestria, seu enigmático tempo ancestral, aos questionamentos do mundo de hoje e nos mistérios da interioridade de cada um de nós...


                                       Wagner Corrêa de Araújo



Brás Cubas. Armazém Cia de Teatro/Paulo de Moraes. Setembro/2023. Foto/Mauro Kury.

DANÇA 2023 - RETROSPECTIVA : AINDA SOB RITMO LENTO, O DESAFIO DA RETOMADA COREOGRÁFICA


Focus Cia de Dança/Carlota. Alex Neoral/Coreografia. Maio/2023. Foto/Cristina Granato.



Ao contrário do espetáculo teatral, com um alcance  recuperativo  mais expressivo após o biênio pandêmico e diante de um ano mais promissor para o fato cultural sob o incentivo de uma mais séria governança, a retomada da criação coreográfica continua ainda assim limitada em seus avanços.

Com poucos espetáculos inéditos em temporadas reduzidas, paralelo à ausência nos palcos de algumas das cias. brasileiras mais  conhecidas do grande público, além do perceptível desaparecimento de uma qualitativa programação internacional.

E, no caso específico da cena carioca, com um índice comparativo bem menor em relação à paulicéia, não só quanto às raras cias estrangeiras, extensivo às escassas apresentações regulares de grupos locais.

Destacando-se, ali, a sempre admirável resistência cultural da SPCD – São Paulo Companhia de Dança, com sua temporada desdobrando-se em quatro períodos, entre criações inéditas e reestreias, sempre sob o seguro comando concepcional de Inês Bogéa.

E onde tivemos o privilégio de conferir obras inéditas com alto grau de inventividade como I’ve Changed My Mind, ousada exploração estética do vocabulário do movimento com a assinatura singular do coreógrafo israelense Shahar Binyamini ou do espanhol Goyo Montero e sua desafiante e inovadora releitura cênico/coreográfica de Petroushka com o olhar armado na contemporaneidade.


        São Paulo Cia de Dança/I've Changed My Mind. Shahar Binyamini/ Coreografia. Junho/2023. Foto/Charles Lima


Em outro dimensionamento estético, o Grupo Corpo voltando ao cartaz nas duas capitais, depois de um longo intervalo, e desta vez quebrando seu tradicional projeto cênico de um espetáculo novo, seguido ou antecipado por obra integrante de outro mais antigo, com uma revisita sem grande impacto, como aconteceu na segunda versão de Gil, a que se denominou Gil Refazendo.

Enquanto, no Rio, a maior regularidade nas apresentações de dança contemporânea ficou, quase exclusivamente, com a Focus Cia de Dança que, entre reapresentações de seu repertório, surpreendeu com a proposta coreográfica de Alex Neoral titulada Carlota. No entorno de onze composições de Astor Piazzola em imersivo mergulho numa pulsante dramaturgia corporal, dimensionada a partir das sonoridades contemporâneas do tango.

Das cias independentes cariocas, vale ressaltar o bravo descortino sensorial/memorialista da coreógrafa Esther Weitzman em Breve, sob o compasso da dança na passagem do tempo.  Em conexo e singular ideário artístico reunindo, num mesmo propósito performático, a maturidade artística e profissional dela e de mais três nomes conceituados de nossos palcos dançantes - Frederico Paredes, Paulo Marques e Toni Rodrigues.

Mas os palcos coreográficos precisam urgente serem preenchidos novamente com aquelas cias independentes de reconhecida trajetória em temporadas de verdade e não apenas em apresentações isoladas e instantâneas. Como fazem falta espetáculos com obras inéditas da Renato Vieira Cia de Dança, do Renato Cruz e sua Cia Híbrida, da Sônia Destri Lie e sua Cia Urbana de Dança, da Márcia Milhazes Companhia de Dança, além do Márcio Cunha e Cia de Dança, sem deixar de lembrar também  a  especial singularidade social da Lia Rodrigues Cia de Danças junto ao Centro de Artes da Maré.  

A temporada de espetáculos internacionais, cada vez mais rara, foi iniciada pelo Momix, na comemoração de suas quatro décadas, numa seleção com maioria de peças que o público já conhecia, mas sempre privilegiando as tendências performáticas sinalizadas por psicodélicos efeitos virtuais, muitas vezes deixando a corporeidade gestual em segundo plano.

Sendo terminada com o Evolution Dance Theater, espetáculo que fica mais próximo de uma destas instalações virtuais/cinéticas das plataformas digitais e do universo tecnológico das exposições, que de uma considerável representação propriamente de dança. Intermediada apenas por uma interessante e digna de registro Compañia Colombiana de Ballet mostrando obras criadas por um destes talentos brasileiros com trajetória reconhecida no exterior - Ricardo Amarante.

Que abrilhantou também sob moldes neoclássicos em apresentação recente, o Balé do Theatro Municipal através de composições autorais como Love Fear Gloss e o seu Bolero de Ravel. Falando em BTM/RJ, este vem a cada dia, depois de tempos difíceis e controvertidos, retomando seu lugar ao sol como a mais tradicional companhia clássica do País.

O que pode ser constatado no qualitativo e elogiável resultado artístico, apresentado desde criações com um sotaque contemporâneo caso de Macunaíma, estreada em 2022, ou em clássicos do repertorio como O Corsário que, afinal, acabou fechando com chave de ouro as portas da restrita retrospectiva coreográfica 2023...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo


O Corsário/Balé do TMRJ. Hélio Bejani/Direção Concepcional. Dezembro/2023. Foto/Daniel Ebendinger.

EVOLUTION DANCE THEATER / BLU INFINITO: INCURSÃO COREOGRÁFICA/VIRTUAL SOB A ESTÉTICA HIGHTECH


Evolution Dance Theater/ Blu Infinito. Anthony Heinl/Diretor/Coreógrafo. Dezembro/2023. Fotos/Simone Di Luca.


Nas temporadas anteriores da cia italiana Evolution Dance Theater, respectivamente em 2015 e 2018, nos palcos brasileiros fizemos algumas considerações críticas sobre o ideário estético tecnológico que sinaliza suas criações. E que podem continuar servindo como referencial para seu mais novo espetáculo – Blu Infinito.

A começar do polêmico e complexo questionamento sobre até onde os avanços cinéticos e virtuais, sob prevalentes recursos tecnocráticos e digitais, podem levar ao risco de tornar quase invisível a corporeidade física presencial, elemento básico da criação coreográfica, seja ela sob a tradição clássica ou em moldes contemporâneos.

O que vem sendo discutido há mais de meio século desde as experiências pioneiras na especificidade deste tipo de performance, através do Nikolais Dance Theater, continuadas em bases diferenciais por intermédio de outras cias como o Pilobolus e Momix, ou daquelas mais recentes, caso da Evolution Dance Theater.

Onde nos deparamos com uma sempre instigante pergunta : até quando os efeitos eletrônicos, imagéticos e sonoros, são capazes de manter íntegra a relação corpo orgânico e corpo virtual sem que a dança fique num segundo plano ou deixe de ser uma expressão artística pura?...


Evolution Dance Theater/ Blu Infinito. Anthony Heinl/Diretor/Coreógrafo. Dezembro/2023. Fotos/Simone Di Luca.

O que, em contraponto naquela época, remetia a certo desinteresse do espectador e da critica preferindo, por um outro lado, aplaudir a inventividade absoluta de criadores  como Merce Cunninghan.  Sempre abrindo perspectivas vanguardistas em suas parcerias com a música concreta de John Cage, em reveladores experimentos da dança pela dança, privilegiando a força imanente do livre gestual coreográfico.

De qualquer maneira há que se considerar a expansão das tendências performáticas com um clima de instalação plástica/cinética no universo coreográfico e das exposições. E que vem alcançando inclusive as retrospectivas em tributo a artistas do naipe de Monet, Van Gogh ou Frida Kahlo, numa dialetação interativa e digital do público com a obra do artista longe de um habitual e próximo contato de admiração extasiante. 

Os sete integrantes do elenco da Evolution Dance Theater se caracterizam, aqui, não apenas como bailarinos mas por sua capacidade multimídia na conexão de habilidades circenses, ora como ginastas e acrobatas, ora via caracteres miméticos e ilusionistas possibilitando, assim,  um lúdico mergulho em mundo de fantasias virtuais.

Numa sequencialidade de peças de episódica duração, sob sonoridades pop/roqueiras, com instantâneas citações de ritmos latinos e ligeiras frases musicais impressionistas, capazes de transformar o espetáculo numa extensa, ainda assim envolvente, videoclipagem propiciada por psicodélicos efeitos luminares

Entre sombras e cores aquareladas, para descortinar os mistérios das profundezas oceânicas com seus seres aquáticos e sua flora marítima, num painel cenográfico onírico sustentado por projeções e recursos digitais que elevam às alturas ou ampliam metaforicamente a dimensão corporal dos seus multifacetados intérpretes.

Valendo registrar uma curiosa observação de seu idealizador, coreógrafo e diretor concepcional Anthony Heinl, diante da inesperada ocorrência de qualquer eventual acidente no percurso cênico desta parafernália hightech :

“Tudo tem que ser preparado com muito cuidado. Cada dançarino tem sua própria caixa com a luz para as fantasias. Afinal, ele terá um grande problema se deixar cair uma luva ou máscara preta num palco totalmente escuro. Nunca mais a encontrará”...  


                                                  Wagner Corrêa de Araújo

 


Blu Infinito/Evolution Dance Theater está em cartaz no Teatro Casagrande/Leblon, dias 19, 20 e 21 de dezembro, sempre às 20h. Seguindo para o Teatro Bradesco/SP, até o sábado, 23/12

O CORSÁRIO : EM ARTESANAL PERFORMANCE SOB EXOTISMO CÊNICO ORIENTALISTA, O BALÉ DO MUNICIPAL FECHA A TEMPORADA 2023

O Corsário/Balé do Theatro Municipal. Dezembro/2023. Fotos/Daniel Ebendinger.


O empenho técnico e artístico para fechar qualitativamente a Temporada 2023, com uma luminosa versão de O Corsário, mostra como o Balé do Theatro Municipal está no caminho certo para recuperar seu prestigioso lugar como a mais tradicional companhia clássica do País.

Depois de tantos descaminhos e crises nos últimos anos, já lá vão aparecendo os primeiros e sintomáticos bons frutos, como a surpreendente revelação destes novos talentos, resultado de uma criteriosa seleção temporária para preencher os defasados quadros do seu Corpo de Baile.

E da auspiciosa notícia de que aconteça finalmente, em 2024, o tão ansiado concurso em moldes oficiais, não só para assegurar a permanência dos que serão escolhidos entre os melhores, como de incentivar, ainda, outras descobertas, desta vez em caráter definitivo.

Devendo se estender o aplauso entusiástico do público ao ideário de seus realizadores - o diretor do BTM Hélio Bejani, também responsável, ao lado de Jorge Texeira, pela bela remontagem e adaptação a partir do original de Marius Petipa, inspirado apenas subliminarmente na temática da narrativa ficcional de Lord Byron, datada de 1814.


O Corsário/BTM. Montagem e adaptação idealizada por Hélio Bejani e Jorge Texeira. Dezembro/2023. Fotos/Daniel Ebendinger 

Além da convicta atuação da OSTM sob o comando do maestro Jésus Figueiredo que soube como dar conta de uma partitura fragmentária, com prevalência de energizados acordes ligeiros de vários compositores (Adolphe Adam, Cesare Pugni, Leo Delibes e Riccardo Drigo).

Onde a plasticidade da arquitetura cenográfica (Manoel dos Santos) ficou rigorosamente presa à tradição acadêmica, em suas referências pictóricas de uma ambiência orientalista. E na superposição do recurso de telões  que mostram desde o típico interior de um palácio otomano às cenas externas ora num mercado, ora entre rochas à beira mar no acampamento pirata.

Incluído aí um elegante figurino (Tania Agra), rico no detalhamento identitário da tipicidade exótica do Extremo Oriente, portentoso no brilho de bordados e entalhes nos corpetes e tutus, reluzente  nas vestes das escravas do harém de um paxá, às túnicas e turbantes equalizados nas cenas grupais masculinas. Tudo isto ressaltado pela predominância da funcionalidade de vazados efeitos luminares (Paulo Ornellas).

Embora se apoie numa trama rocambolesca de exploração sexual, no entremeio de disputas violentas pela venda e pela posse das escravas entre mercadores, paxás e piratas, flores envenenadas e delírios pelo ópio, uma  ancestral temática já não muito apropriada ao empoderamento feminista de hoje.

Paralela a uma romantizada paixão provocada por Medora, uma das escravas traficadas, pelo pirata e corsário Conrad. Tudo intermediado por agitadas danças de caráter principalmente masculinas, ao lado de gestos teatrais  miméticos ou solos e pas-de-deux mais líricos, na unicidade da entrega mostrada pelos solistas junto ao perceptível esmero do Corpo de Baile.

Dando chance aos diferentes elencos de protagonistas, a começar do casal enamorado Conrad e Medora, aos serviçais como Ali ou a odaliscas submissas como Gulnara. Do bonito alongamento, arabescos e pulsantes elevações de Filipe Moreira na première de O Corsário à impactante performance do escravo Ali (José Ailton), com seus vigorosos giros duplos que potencializam a sua altivez corporal e uma bravura técnica extasiante no celebrado Pas-de-Deux a Trois.

Sem deixar de destacar a envolvente tessitura estética gestual das bailarinas Marcella Borges (Medora) e Manuela Roçado (Gulnara) imprimida com ênfase estelar absoluta, havendo de se notar, com certeza, que ambas terão pela frente uma potencial trajetória. Vi também Manuela Roçado como Medora, em outra récita, mas aí torna-se difícil usar palavras isoladas para definir sua insuperável força carismática neste papel, sem conecta-la à integralidade desta outra representação, dimensionando-a devidamente como parte de um todo.

Para quem assistiu à noite de estreia foi um momento muito especial reunindo o apuro concepcional cenográfico ao apelo virtuosístico de seus intérpretes, em espetáculo imperdível cujas récitas se estenderão até a antevéspera das festas natalinas e, quem sabe, podendo mesmo ser sugestionado como um diferencial regalo afetivo àqueles que amam a dança clássica...


                                          Wagner Corrêa de Araújo



O Corsário/Balé do TMRJ, está em cartaz no Theatro Municipal, até o dia 23/12, às 19h; com sessões especiais em 17/12, às 17h, e 19/12, às 14h.

GENTE DE BEM : ÁCIDOS RECORTES COTIDIANOS DE UM PAÍS EM DECOMPOSIÇÃO

Gente de Bem. Dramaturgia inspirada em João Ximenes Braga. Adriana Maia/Direção. Dezembro/2023. Fotos/Bel Pedrosa.


Quando o jornalista, escritor e roteirista João Ximenes Braga publicou sua coletânea ficcional – Necrochorume  e Outros Contos – em 2021 quis, certamente, traçar um retrato sarcástico e sem nenhum atenuante dos dramas  e conflitos pequeno burgueses de um País à beira de um processo de decomposição política e retrocesso social.

Segundo seu ponto de vista, com a lúcida intenção não apenas de denúncia mas especialmente com o desejo de “entender e reconectar o Brasil” de um pós pesadelo sob o assédio de uma necropolítica. E que se estendeu dos círculos do poder à adesão irresponsável daquela gente voltada para seu mediocrizado "mundinho" e comprometida apenas com o seu próprio bem.

Nada surpreendente para um autor literário notabilizado por temas provocadores a começar da própria titulação de seus livros – “Porra”, “A Mulher Que Transou com o Cavalo”, “A Dominatrix Gorda” e este “Necrochorume e Outros Contos”, sem esquecer seu engajado olhar nas colunas da imprensa extensivo ao seu diferencial enfoque como roteirista de novelas.  

Sempre com seu ferino recorte no entorno da turbulência de uma época que, além do surto pandêmico, se caracterizou pelo conservadorismo negacionista e pelos riscos à democracia com declarados avanços neofascistas.

E que a Cia Comparsaria Teatral  retoma em boa hora de alerta para traçar um panorama cênico de assumida mordacidade crítica da classe média brasileira, segundo os ditames assumidos pela antenada direção concepcional de Adriana Maia para  Gente de Bem, esta peça nascida das páginas do livro de João Ximenes Braga.


Gente de Bem. Dramaturgia a partir do livro  Necrochorume e outros Contos. Cia Comparsaria Teatral. Dezembro/2023. Fotos/Bel Pedrosa. 

Onde ela própria integra os 13 atores de um qualitativo e compromissado elenco em dar este tão necessário recado teatral, na alternância de personagens que transitam em seis contos sinalizados por maus ou até suportáveis olfatos e sabores líquidos, em original procedimento narrativo/cênico com as nominações de Urina, Café, Whisky, Esgoto, Asco e Soro.

Sustentando-se na integralidade identitária de um convicto cast atoral, o que torna difícil citar apenas alguns sem falar dos outros (Adriana Maia, Anna Wiltgen, Cami Boer, Dadá Maia, Gilberto Goés, José Angelo Bessa, Mariana Consoli, Miguel Ferrari, Pamela Alves, Stefania Corteletti e Xando Graça).

Tal o empenho com que se entregam a esta representação investigativa de burlescos e inconsequentes casos cotidianos de segmentos sociais elitistas num caos urbano, sob o esteio dos preconceitos homofóbicos, misóginos e racistas (incluídos negros e indígenas), ao lado de um prevalente fanatismo, tanto político quanto religioso.

Havendo, é claro, inevitáveis destaques possibilitados por certos personagens mais incisivos como os de Xando Graça ou aqueles marcados pelo risível e não menos asqueroso comportamental recessivo, na dialetação performática em quadro feminino por Ana Achcar e Dadá Maia.

A caixa cênica despojada sendo preenchida apenas com o presencial dos atores e a interferência de poucos elementos materiais, como a maquete de um prédio, mesa e cadeiras. Com ocasionais mudanças de um funcional figurino (Nello Marrese) ancorado no cotidiano e ressaltado por tonalidades  psico ambientais propiciadas pelas luzes de Anderson Ratto.

Com metafóricos referenciais literários a tipos submissos às adversidades como o nordestino Fabiano (de Vidas Secas) ou ao escrivão mulato Isaías Caminha (Lima Barreto) no seu anseio de ser alguém entre os brancos. Ou à resistente vitimização das minorias indígenas, além dos gays aos negros, incluindo-se aí o crescente machismo homicida.

Tudo convergindo para uma reflexiva tragicomédia humana, entre o livro  e o palco, com um proposital olhar politizado sobre as eternas contradições de um Brasil de ontem e de hoje, refletido na corajosa exposição dramatúrgica desta “gente que se acha do bem”.

E, especularmente, extensiva ao compromissado descortino palco/plateia da urgente conscientização dos que pensam diferente do rancoroso e atávico preconceito de nossa última classe governamental...


                                       Wagner Corrêa de Araújo


Gente de Bem está em cartaz no Teatro III/CCBB, de sexta a segunda feira, às 19h. Até o dia 18 de dezembro.

CABARÉ CORAGEM / GRUPO GALPÃO: EM TRANSGRESSIVO IDEÁRIO POR UM TEATRO DE RESISTÊNCIA

Cabaré Coragem. Grupo Galpão. Júlio Maciel/Direção. Dezembro/2023. Fotos/Mateus Lustosa.


Na passagem de suas quatro décadas o Grupo Galpão retoma seu diálogo com o ideário politico e dramatúrgico de Bertold Brecht, iniciado em 1982, por intermédio da sua montagem inaugural - A Alma Boa de Setsuan.  E, agora, como o primeiro espetáculo pós surto pandêmico e num intuito, além do fator comemorativo, de advertência e de denúncia para que não se repitam os riscos antidemocráticos propugnados pelo nosso último (des)governo.  

Cabaré Coragem não deixa, assim, de mostrar em sua proposta a pulsão de resistência cultural e política que sempre marcou a trajetória do mais emblemático grupo teatral das Gerais. Em concepção cênica, musical e coreográfica, que se sustenta na prevalente interação palco/plateia, atores/espectadores. E numa empatia que é provocada desde a primeira canção com seu simbólico recado : “Teatro, no fundo és puro teatro, falsidade ensaiada, estudado simulacro”...

Contando, aqui, com o experiente elenco do Grupo Galpão, desdobrando-se numa dramaturgia coletiva sob a supervisão de Vinicius de Souza, onde a direção concepcional fica com Júlio Maciel. Em mais um tributo conceitual à estética brechtiana do distanciamento e por um “teatro épico” que leva à reflexão e ao engajamento na causa politico/social, contra o capitalismo e a favor dos menos favorecidos.  Enunciada já a partir da simbólica titulação da peça Cabaré Coragem, inspirada na carismática personagem Mãe Coragem e lembrada na instigante fala de Teuda Bara vivenciando esta personagem.


Cabaré Coragem. Grupo Galpão. Júlio Maciel/Direção. Dezembro/2023. Fotos/Mateus Lustosa.

Em espetáculo que reúne sete de seus incríveis e referenciais atores (Antônio Edison, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara) e uma equipe tecno-artística que vem sempre imprimindo sua qualitativa marca às criações do Grupo Galpão, desde os funcionais efeitos luminares (Rodrigo Marçal) à expressiva trilha sonora.

Esta última com uma banda ao vivo, sob os arranjos de  Luiz Rocha, com citações de um repertório que vai da ambiência de teatro musical da lavra Bertold Brecht/Kurt Weill (identificada em temas como Alabama Song) ao melodrama brega de Coração Materno (Vicente Celestino) ou de Perigosa, sucesso de Rita Lee com as Frenéticas. Com notável participação dos acompanhamentos do público, incitado pelos atores transitando quase sempre entre as mesas.

Ressaltando-se, ainda, a cenografia minimalista com um sotaque burlesco/circense e os figurinos aquarelados onde Márcio Medina procura reproduzir a ambientação típica daquelas casas de encontros e prazeres à base de muita música, dança, comédia, circo e bebida.

Tanto podendo se referir àquele espaço originário da Alemanha entre guerras, onde a dupla Brecht/Weill se notabilizou com suas operetas, à perceptível busca de tonalidades de uma brasilidade de escracho e decadência que chega a sugestionar uma certa similaridade deste Cabaré Coragem com aqueles bordéis de beira de estrada.

Com momentos potencializados em cenas diferenciais como a dialetação de um Ventríloquo (Eduardo Moreira) com uma Bonequinha (Inês Peixoto) tentando exemplificar em linguagem de aporte absolutamente fácil e sob tons irônicos, os mecanismos da luta de classes, no desafio à exclusiva concentração de riquezas e à exploração dos mais fracos pelos detentores do poder.

Tudo alternado com fragmentárias cenas de energizado exibicionismo acrobático por Eduardo Moreira e Antônio Edson ou debochadas incursões na idiotice de personagens políticos ou na intolerância de tipos femininos, bem característicos no último staff presidencial.

Para, afinal, no entremeio desta divertida e mordaz viagem teatral ao grotesco universo das hipocrisias  políticas e sociais, tornar cada vez mais  urgente a lição que este singular Cabaré Coragem acaba trazendo, a partir de um  expansivo pensar teórico do próprio Bertold Brecht:

Ele o ator deve representar tudo com prazer, especialmente o horrível, e mostrar o prazer que tira disso. Quem não ensina divertindo e não diverte ensinando não tem nada o que fazer no teatro”...


                                           Wagner Corrêa de Araújo

 

Cabaré Coragem está em cartaz no Teatro Rival/Cinelândia, de quarta a sábado, às 19h30m ; domingo, 18h30m. Até 10 de dezembro.

LA TRAVIATA : BELA CONCEPÇÃO CÊNICA/MUSICAL ENCERRA A TEMPORADA LÍRICA DO MUNICIPAL CARIOCA

La Traviata. André Heller/Direção Concepcional. Luís Fernando Malheiro/Regente. Novembro/2023. Foto/Daniel Ebendinger.


Se existe uma ópera com tanta simbologia é sem dúvida La Traviata, de Giuseppe Verdi, desde a sua malograda estreia (1853) veneziana no La Fenice, a um permanente êxito nos palcos mundiais. Emblematizada em sua trajetória de mais de século e meio, sendo capaz de manter intocável seu fascínio, entre os aficionados do gênero ao mais diversificado gosto popular.

Em 1982, esta magia se ampliando com o sucesso comercial, de público e de crítica, através da primorosa versão cinematográfica de Franco Zeffirelli, incentivando a atração pela saga de outras óperas fílmicas nas adaptações marcantes de mestres da sétima arte, como Ingmar Bergman (A Flauta Mágica), Francesco Rossi (Carmen), Joseph Losey (Don Giovanni).

E para quem teve o privilégio de assistir, ao vivo, no palco do Municipal carioca, final dos anos 70,  La Traviata sob o extasiante comando concepcional de Zeffirelli, fica difícil conseguir escapar do desafio estético comparativo daquela com outras montagens. Mas de lá para cá, vez por outra, acontecem surpresas em relação a esta ópera, como a direção de Jorge Takla no Municipal paulista, em 2018 ou, agora, em outra volta por cima, através da versão cênica de André Heller-Lopes.

Onde o primeiro grande destaque é a diferencial arquitetura cenográfica de Renato Theoblado à base de ferro fundido que remete a alguns espaços icônicos da capital francesa como a Gare d’Orsay e a Torre Eiffel ou o Palacio de Cristal em Petropolis, lembrando que há outro exemplar de sua potencial criatividade no musical Beetlejuice, atual cartaz na Cidade das Artes. Tendo ao seu lado o requinte habitual dos figurinos de época concebidos por Marcelo Marques, tudo ressaltado comme il faut sob os efeitos luminares entre sombras de Gonzalo Córdova.

Destacando-se, ainda, um grupo de bailarinos especialmente selecionados por Bruno Fernandes e Matheus Dutra que imprimiram à corporeidade dançante um subliminar sotaque entre o neoclássico e o contemporâneo. Sabendo como fugir à tradição mimética, numa alternativa performance masculina e feminina, longe de qualquer preconceito na personificação identitária seja de ciganas ou de toureiros no Ato III.


La Traviata. André Heller-Lopes/Direção Cênica. Ludmilla Bauerfeldt e Lício Bruno. Fotos/Daniel Ebendinger


A Orquestra Sinfônica do TMRJ, conduzida sempre com artesanal empenho pelo maestro Luiz Fernando Malheiro, um expert de longa data nas leituras operísticas. E que procurou evitar os habituais cortes na retomada da integralidade de partes da partitura original, principalmente no encontro da Provence/Ato II (Violeta, Giorgio e Alfredo), com certo prejuízo rítmico no andamento destas cenas.

Num momento em que a ópera cada vez mais vem experimentando um processo de renovação, com um olhar armado na contemporaneidade, não se pode assumir uma postura conectada apenas à rigorosa tradição. Estes ares novos alcançam diversos patamares da representação hoje de clássicos do repertório operístico, desde que se saiba como manter  a essência básica da obra no seu dimensionamento temático/musical.

No caso especifico desta montagem, pode soar como desnecessário o arroubo de violência que não condiz com o lado conciliador do personagem Giorgio Germont. Ou a transmutação da última cena numa imagética visão de uma Violeta Valéry post-mortem, incomodar aos que não aceitam qualquer quebra da narrativa consagrada. Mas, neste caso, realizada com tal esmero direcional por André Heller que o flashback da mente delirante de Violeta, não consegue impactar a prevalente continuidade de brilho cênico/musical alcançado por esta montagem.

A começar da precisa escolha de  um cast protagonista de primeiro nível. Do bonito e revelador timbre de um convicto tenor lírico (Matheus Pompeu), cativante mesmo com um toque discricionario em sua atuação atoral como Alfredo Germont, desde a envolvência da cena do brinde, ao apelo comovente do epílogo. Seguindo-se, o convincente presencial e o irresistível apuro vocal do Giorgio Germont de Lício Bruno, em sua reconhecida maturidade qualitativa como um dos nossos melhores expoentes na tessitura de baixo barítono.

De corpo, sangue e alma, sem dúvida é com o mais completo domínio vocal e cênico que a Violeta de Ludmilla Bauerfeldt é transmutada  na presença mais estelar desta Traviata, prima donna absoluta como soprano coloratura e esplendorosa em sua performance dramática de atriz. Capaz, assim, de provocar paixão enquanto cortesã, entre a elegância aristocrática e a sordidez da vida mundana, e lágrimas pela força emotiva com que assume seu trágico destino final.

Tudo, enfim, concorrendo para absorver desta La Traviata uma carismática manifestação interativa palco/plateia, fazendo com que seus calorosos aplausos sejam merecidamente extensivos à tão acertada iniciativa da atual direção artística do TMRJ...

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo


La Traviata está em cartaz no Theatro Municipal/RJ desde o dia 17 de novembro, com dois elencos e com as últimas récitas nesta quinta, sexta-feira e sábado, às 19h; até domingo, às 17h.

SÓ VENDO COMO DÓI SER MULHER DO TOLSTÓI : A DÚPLICE FACE DE UM ICÔNICO ESCRITOR EM SURPREENDENTE MONÓLOGO

Só Vendo Como Dói Ser Mulher do Tolstói. Ivan Jaf/Dramaturgia. Johayne Hildefonso/Direção. Novembro/2023. Fotos/Alberto Maurício.


Todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”... Esta é a simbólica frase no prólogo de Anna Karenina,  tocante tributo ficcional a uma protagonista titular emblematizada em sua resistência pela afirmação do feminino. E que, certamente, foi mais um dos manuscritos copiados com toda dedicação pela mulher de Leon Tolstói no seus quase cinquenta anos de conturbada união (1862-1910).

Estamos falando de Sophia Tolstói que em seus Diários, de um desalentador desabafo confessional, revela como um conceituado escritor tinha uma vida privada contraditória frente ao seu ideário de escritor, de místico e de defensor de causas humanitárias e sociais: “Todas as coisas que ele prega para a felicidade da humanidade apenas complicam a vida, a tal ponto que se torna cada vez mais difícil para mim viver”.

Embora fosse uma mulher culta para o padrão conservador da sociedade patriarcal russa, sob o domínio das rédeas da igreja ortodoxa, Sophia aliava seu carinho à admiração pelo ofício de escritor do marido. Ao transcrever a mão todos os seus longos romances, às vezes em cópias que se repetiam, tornou-se assim uma conhecedora profunda desta contradição nos desafetos  da prática comportamental do dia a dia.

E mesmo sendo tratada quase como uma serva submissa  aos caprichos machistas dele seguindo as regras abusivas  do Domostroi (“ordem na casa”), era ela quem ainda cuidava absolutamente de tudo referente aos seus negócios de proprietário rural. O que lhe causou enormes dissabores quando ele caiu na maléfica influência dos tolstoianos radicais como Chertkov, o que quase o levou à falência não fosse o corajoso empenho de Sophia.


Só Vendo Como Dói Ser Mulher do Tolstói. Ivan Jaf/Dramaturgia. Johayne Hildefonso/Direção. Rose Abdallah/Atriz. Fotos/Alberto Maurício.


Depois de duas versões fílmicas do cineasta americano Frederick Wiseman - um documentário e uma série da Netflix, a bela e guerreira trajetória de Sophia Tolstói perpetuada em seu sofrido relato cotidiano, inspira a mais que oportuna peça “Só Vendo Como Dói Ser Mulher do Tolstói”, com acurada dramaturgia de Ivan Jaf, sob energizada direção de Johayne Hildefonso para um monólogo diferencial, idealizado e interpretado por Rose Abdallah.

Onde tudo é pautado com prevalente capricho estético que se estende do inventivo dimensionamento cenográfico e indumentário, na realização conjunta de Giovanni Targa, Alessandra Miranda, Miguel Sasse e Ricardo Ferreira, aos ambientais efeitos luminares (Evelyn Silva) e às expressivas interveniências musicais da trilha autoral de André Abujamra.

A começar do singular boudoir à antiga, configurando um aposento intimista, dúplice de camarim onde a atriz vai ora colocando, ora despojando-se, as várias camadas de uma invernal e pesada veste russa. O que por si só já configura metaforicamente a opressiva situação da condição feminina na época.

Numa conexão da dor e da revolta de uma personagem na sua melancólica lembrança de quase mera reprodutora de seus 13 filhos com o escritor, enquanto o via em descaradas posturas sexuais com as criadas, carregando em si a amargura do suporte de um homem ao mesmo tempo santo e demônio.

Sem deixar de contextualizar seu olhar na contemporaneidade, tanto nos apelos verbais de uma atenta dramaturgia (Ivan Jaf) quanto em seu visionário comando direcional (Johayne Hildefonso). Em espetáculo revelador no descortino das extasiantes transmutações performáticas de Rose Abdallah, refletidas do transe de suas variações faciais aos nervosos impulsos psicofísicos que a atiram ao solo, no grito potencial de uma atriz para a representação da personagem.

Como se, aqui,  estivessem ecoando, num processo de reflexo especular, as considerações da escritora inglesa Dóris Lessing em prefácio da edição atualizada do livro : “Sonhando com Sofia, falando pessoalmente com ela, querendo desesperadamente alcançá-la e oferecer-lhe palavras de conforto para a sua dor. Que este registro das suas lutas seja um conforto para as gerações futuras e presentes”...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo


Só Vendo Como Dói Ser Mulher do Tolstói está em cartaz no Teatro Dulcina /  Cinelândia, quartas e quintas, às 19h. Até 7 de dezembro de 2023.

BEETLEJUICE : IRREVERENTE EXCURSÃO MUSICAL AO REINO DOS MORTOS E DAS SOMBRAS

 

Beetlejuice, O musical. Tadeu Aguiar/Direção Concepcional. Novembro/2023. Fotos/Leo Aversa.


Um filme de Tim Burton, que se tornou um cult do terrir gótico, além de grande sucesso comercial, desde seus lançamento em 1988 – Beetlejuice  (aqui subtitulado como Os Fantasmas se Divertem) - servindo de mote inspirador para o musical do circuito Broadway, em 2018/2019.

E que está chegando agora aos palcos brasileiros como Beetlejuice, O Musical, em mais uma das artesanais direções concepcionais de Tadeu Aguiar, sob um ideário de ousada criação cenográfica, para um grande elenco com luminosa protagonização titular de Eduardo Sterblitch.

Onde o sobrenatural no afrontamento do desconhecido, por trás do post-mortem, é tratado com instigante humor, subliminarmente ácido e burlesco, muito longe do sombrio e do mórbido no entorno do que habitualmente cerca a terminalidade fatalista da condição humana.

Abordado tematicamente, desde a grandiloquente cena de abertura do musical, com um suporte estético operístico na representação de um velório transmutado num show performático de teatro coreográfico entre a vida e a morte e onde já fica perceptível o apuro tecno-artístico que norteia esta produção.


Beetlejuice, O Musical. Tadeu Aguiar/Direção Concepcional. Em cena, Eduardo Sterblitch e Ana Luiza Ferreira. Novembro/2023. Fotos/Léo Aversa.

Inicializada a partir dos acordes melancólicos de um cântico de tonalidade gospel metamorfoseado em apoteótica aparição sobre um funéreo catafalco, com provocadora postura interativa de questionamento palco/plateia, e que vai se tornar sequencial nas quebras da quarta parede pelo personagem Beetlejuice (Eduardo Sterblitch).

Ao lado dele, se delineando as representações de um afinado elenco personificador de fantasmas ou mortos vivos, presencial da ambiência da ex-residencia de um jovem casal falecido - Adam (Marcelo Laham) e Barbara (Helga Nemetik) às cenas do submundo infernal, onde recorrem ao espírito malévolo de Beetlejuice para expulsar os invasores.

A tal casa, agora, ocupada por outra dupla amorosa – Delia (Flavia Santana) e Charles Deetz (Joaquim Lopes), mais a filha paterna – a adolescente Lydia Deetz (Ana Luiza Ferreira) incapaz de aceitar a substituta de sua mãe morta. Sucedendo-se, aos poucos, outros convictos atores em papéis básicos tais como Gabi Camissoti, Sylvia Massari, Pamella Machado, Jorge Maya, Erika Affonso e Tauã Delmiro, integrando um cast de 26 nomes.

Onde o palco é ocupado por uma das mais exponenciais arquiteturas cenográficas (Renato Theobaldo) dos últimos tempos capaz de lembrar, na sua conexão de elementos macabros com cores aquareladas, do universo fílmico da ficção cientifica à fantasia dos desenhos animados.

Sob uma sutil referência à plasticidade das pinturas de Beatriz Milhazes que se estende aos sugestivos figurinos da dupla Dani Vidal e Ney Madeira, aliada ao visagismo espectral de Anderson Bueno, entre as claridades psicodélicas e as sombras fantasmagóricas dos efeitos luminares (Daniela Sanchez).

Tudo complementado pelos acordes nada bucólicos ou românticos de uma trilha (Laura Visconti) que privilegia a agitação pop roqueira entremeada por recortes de ritmos latinos como o calypso, em citações composicionais de Harry Belafonte. Ampliada numa envolvente corporeidade gestual dançante através de Sueli Guerra, paralela ao brilho vocal dos atores/bailarinos.   

O sotaque atoral de Eduardo Sterblitch como Beetlejuice soando entre o humor negro e uma certa selvageria lúbrica com seu vocabulário obsceno pleno de sarcasmo mordaz, mas  sempre num timing irretocável, enquanto lamenta a sua dor de um ser espectral sonhando, mesmo assim, em ser abraçado e amado.  

Num musical irreverente que a alguns pode incomodar mas que ao ser caricato sobre a instantaneidade da trajetória existencial, não deixa de ser lúdico e reflexivo, pois afinal, segundo seu idealizador Tadeu Aguiar, no uso das palavras certas para horas incertas : “É um espetáculo que fala de morte, celebrando a vida. Tem coisa melhor?’’...

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo


Beetlejuice, O Musical está em cartaz na Cidade das Artes/Barra, quinta e sexta, às 20:30; sábado, às 16 e 20:30; domingo, às 16:00. Até 10 de dezembro.

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