O MOTOCICLISTA NO GLOBO DA MORTE : INSTIGANTE DRAMATURGIA QUESTIONA NOSSA RELAÇÃO DIÁRIA COM A VIOLÊNCIA



O Motociclista no Globo da Morte. Leonardo Netto/Dramaturgia. Rodrigo Portella/Direção Concepcional. Du Moscovis / Protagonista. Outubro/2025.Catarina Ribeiro/Fotos.


Desde a ancestralidade, através do teatro grego clássico, passando pelas tragédias shakespearianas, indo da proposta artaudiana até as representações cênicas da contemporaneidade, há claras demonstrações como o teatro pode, antes de tudo, desafiar a condição humana  denunciando sua intrínseca proximidade com a violência.

Este é o tema da mais recente peça de Leonardo Netto, um dos mais significativos nomes da última geração teatral brasileira - numa singular e simbólica titulação, como O Motociclista no Globo da Morte, ecoando no surpreendente empenho performático por Du Moscovis, sob mais um dos viscerais comandos concepcionais de Rodrigo Portella.

Numa narrativa formatada como um monólogo confessional, capaz de provocar o desassossego do espectador com sua incitante narrativa no entorno de um personagem de assumido comportamental pacifista que, por imprevistas circunstâncias, se transforma num emissário da violência homicida.

O ideário da sequencial transmutação psicofísica, a começar por uma textualidade conectada à crua revelação do desalento de um personagem antiviolência que, aos poucos, vê sua verdade interior sendo desmontada e substituída por ascendente niilismo existencial. Ao se deparar, numa espécie similar de botequim suburbano, com a tipicidade machista de um cliente, por ironia, tendo o mesmo nome dele - Antônio.


O Motociclista no Globo da Morte. Leonardo Netto/Dramaturgia. Rodrigo Portella/Direção Concepcional. Du Moscovis / Protagonista. Outubro/2025.Catarina Ribeiro/Fotos.


Que, depois de umas e outras doses alcoólicas, faz provocações eróticas, entre palavrões e gestos, à simples garçonete que traz as cervejas e os petiscos. Repelido por ela, sua raiva se volta contra um vira-latas esfomeado, na pulsão de uma crueldade sanguinária.

Enquanto a radicalidade de sua insensatez direciona-se, também, para a incômoda quietude do outro Antônio, ao sentir que este, atônito, fixa nele seus olhos de espanto e revolta pela violência empregada contra o indefeso animal. Iniciando-se, então, um delirante processo metafórico de ambígua identificação psicanalítica, entre o real e o imaginário, do bem para o mal.

Diante de tudo em que acreditou ou repeliu como inaceitável, sempre estremecido ao ver imagens dos matadouros de gado, suínos e aves, naquele súbito assombramento de sua condição humana, pela usurpada pureza do “eu” original confrontado, é convertido, então, num “anjo vingador”.

Numa concepção cenográfica (Rodrigo Portella), assumidamente minimalista, onde o ator protagonista, com indumentária (Gabriella Marra) cotidiana, está sentado numa cadeira no centro do palco, único elemento material visível. Já no inicio do espetáculo, Du Moscovis ao ficar em silêncio, numa absoluta quietude, movimentando nervosamente as mãos, até começar a falar com discricionária projeção verbal.

Sob uma vazada iluminação (Ana Luiz de Simoni) que chega até os espectadores, em performance intimista do personagem sugestionando estar diante de um encontro confessional, cara a cara, com cada um deles. Como se representassem, ali, o papel de um psiquiatra ou participassem de um interrogatório policial.

Ouve-se uma quase imperceptível interferência de acordes sonoros (André Muato) ao longe. O clima psicológico mudando quando o ator imprime, de forma consciente, desconforto e insegurança para revelar a continuidade de fatos brutalizantes, personalistas ou em âmbito global (referenciados pelo verismo de citações documentais).

As luzes se tornando sombreadas pela ascendente gravidade das descrições vão precipitando o retorno ao silencio inicial do ator, até o pleno escurecimento. Em subliminar dimensionamento alegórico do pânico cotidiano levando o espectador a indagar-se sobre seu próprio convívio com a violência num mundo cada vez mais desumanizado.

A vigorosa expressão expressão performática do ator (Du Moscovis), a irradiante contundência da linguagem teatral (Leonardo Netto), a envolvência sensorial palco/plateia alcançada por arrebatadora direção/concepcional (Rodrigo Portella) contribuindo para, afinal, fazer de O Motociclista No Globo da Morte um transcendente instante da arte de representar...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 

O Motociclista no Globo da Morte está em cartaz no Teatro Poeira / Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h; até o dia 14 de dezembro.

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